Eram cinco da manhã e o galo cantava insistente, para anunciar o raiar do dia. Estava há um ano no local e não havia me acostumado com a ideia de morar em frente a uma casa, na cidade, que, além dos cachorros e gatos, era marcada por ser a morada de tantos bichos; um verdadeiro sítio. O dono do estabelecimento, quando me encontrava, acenava para buscar algum amparo, como se estivesse, humilde, se desculpando pelas inconveniências. Ele devia ter sessenta ou setenta anos. Com a magreza substancial, não dava para inferir a idade. E aí eu me perguntava por que essa selva a céu aberto. A outra vizinha, mais chegada e comedida, me alertara que o homem morava só; que havia perdido a mulher num acidente de carro e, por isso, pensava que compensaria a amargura com os bichos. Eu não tinha a cara de chegar e reclamar as noites mal dormidas. Minha mulher, num acesso de raiva, quando o carro do dito cujo não parava de alarmar, parou na porta de casa, enquanto ele caminhava pelo quarteirão, e o abordou com rispidez, para determinar que ele cessasse os barulhos: “Todos!”; que não conseguíamos trabalhar, quanto mais dormir; e, principalmente, cuidar dos nossos filhos. Foi, com essa deixa, que ele a alertou sobre a tremenda solidão: “Minha filha, se não fosse assim, eu já teria me jogado de uma ponte… Não sei viver olhando para as paredes, impregnadas de nada”. Minha esposa achou exageração, ameaça velada, mas não quis pagar para ver o pior. A mesma vizinha, compadecida, nos infligiu uma culpa sem tamanho: “Olha, antes de vocês chegarem aqui, ele tentou o suicídio. É um homem, sempre, no limiar da loucura”. Bom, falando em loucura, emendei que faltava pouco para que nós, os de minha casa, entrássemos nalguma paranoia, com a enormidade de sons que vinham dali. Mas, ao entrar em casa, ligar o computador para trabalhar, notei a força do egoísmo que me dominava. Ainda estávamos em plena pandemia, e temos um arcabouço completo de afeto para superar os dias de clausura. Dia sim, dia não, minha mãe vinha nos visitar, com quitutes variados, “para adoçar a vida!”; uma vez por semana, era a oportunidade da minha sogra, que não poupava esforços para nos fazer felizes. A alegria que reinava em casa era ver os nossos filhos saudáveis, contentes, rebentando a opacidade e a nuvem densa de uma calamidade que rondava e levara, no último mês, seis pessoas conhecidas. Claro, trabalhando em casa, mantínhamos todos os protocolos. Nossos encontros não se davam com toques, contatos ou coisa que o valha. A distância de dois metros era respeitada. E, numa quinta-feira de setembro, pensei no homem que, em vários momentos, havia me carregado de uma raiva que nem ao menos sabia que fosse capaz de suportar. Pensei que ele, no auge de sua solidão, não teria, por vontade própria, provocado qualquer inconveniente. Era, como declarou a vizinha, “um pobre coitado”. Depois, com o passar dos dias, me inteirei, mais atento, que a vizinha ia regularmente à casa do morador solitário. Acompanhei as entradas furtivas cinco vezes, no período da manhã, logo cedo. Seria um amor que se formou na quarentena? Bom, não teriam nada a perder. Sim, perderiam se quedassem apáticos, dois solteiros, cada um em sua redoma. Estava seguro de que poderia, ali, brotar um amor. Percebi que a vizinha o defendia com a força de uma mãe, que protege o filho miúdo, contra as desventuras do mundo. Daí em diante, sobreveio uma sensação de alívio e de condescendência. O amor se faz nas formas mais imprevisíveis.
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