(Uma tragédia brasileira)
O teatro está cheio — o espetáculo promete. Aguarda-se com expectativa uma peça moderna, em moldes clássicos, intitulada “Escola sem partido”, que conta com o famoso Coro Belsonar, aplaudido em palcos seletos de todo o país. Os espectadores, inquietos e ruidosos, demoram algum tempo a acomodar-se; por fim aquietam-se e faz-se um silêncio atento. Um minuto depois, ouvem-se as pancadas de aviso.
ESCOLA SEM PARTIDO
(As luzes de palco acendem-se progressivamente, como em alvorecer, e o coro avança — uma fila vinda da esquerda, outra da direita, como panos de cena que se fechem —, alinhando-se em duas filas compactas no fundo do palco. Na esquerda baixa, uma secretária e um quadro escolar. É o cenário de uma sala de aula.
Pela direita alta, entra o professor, um homem de uns quarenta anos, barbudo, óculos de massa, de saco de lona a tiracolo.)
CORO — Já fede esse negócio de professor e alunos. A gente não precisa de professores, não precisa!
(Não dando atenção ao coro, o docente atravessa o palco, coloca o saco sobre a secretária e, de pé, enfrenta o público.)
PROFESSOR — Bom dia, galera!; tudo bem? Aproveitando a descoberta de um fóssil de dinossauro no Brasil, a aula de hoje vai ser sobre esse grande cientista que foi Charles Darwin e os seus contributos inestimáveis para a Ciência.
CORIFEU — Fala Português, cara!
PROFESSOR (ignorando o dito) — Darwin foi um cientista inglês do século XIX que, enquanto jovem, viajou pelas costas da América do Sul e aqui se deslumbrou com a variedade e a especificidade morfológica das espécies, conforme o ambiente de oportunidades e de ameaças que cada uma enfrentava.
CORO — Não entendemos porra nenhuma! Não entendemos porra nenhuma!
PROFESSOR — A certa altura, percebeu que cada espécie proliferava se encontrasse alimento suficiente, e definhava se enfrentasse condições adversas, quer por falta de alimento, quer por ameaças de predadores.
CORIFEU — Qu'isso interessa? Vai logo onde tu quer chegar!
PROFESSOR — Como cientista, recolheu centenas ou milhares de espécimes e foi anotando e desenhando tudo o que observava. Cinco anos depois, de volta a Inglaterra, dedicou-se a estudá-las e a fundamentar a famosa “Origem das Espécies”, em que defendia que todas as espécies evoluíram de um tronco comum por um mecanismo autorregulado — a seleção natural.
CORIFEU — Deus é que criou o mundo, em seis dias, e todos os animais, os que voam, os que rastejam, os que nadam. Cala essa boca comunista!
CORO (apontando os dedos em pistolinha ao professor) — Cala a boca! Cala a boca!
PROFESSOR — Esta tese, simples e elegante, mostrava que o meio ambiente favorecia as características que melhor estivessem adaptadas a ele e castigava com o desaparecimento as menos bem adaptadas. Uma pequena diferença positiva de um indivíduo, ao dar-lhe maiores possibilidades de sobreviver e de procriar, acabava por se disseminar por um maior número de indivíduos e, ao longo de milhões de anos, estender-se a toda a população dessa espécie. Quando as diferenças da nova variante se acumulavam e tornavam impossível o cruzamento com a variante antiga, estava originada uma nova espécie. Daí, a enorme variedade de espécies.
CORO — Deus é que criou todos os animais de uma só vez. Diz a Bíblia. A Bíblia.
PROFESSOR — Exatamente! A narrativa bíblica foi um dos maiores entraves a este novo conhecimento. Até a comunidade científica, que não estava isenta de preconceitos míticos, demorou muito tempo a aceitar a verdade desta tese. Mas a origem das espécies pela seleção natural revelou-se certeira, até para explicar os fósseis que desde sempre impressionaram os Homens. A Bíblia explica-os dizendo que em tempos antigos existiam gigantes...
CORO — A Bíblia fala a verdade. Essas teorias são bobagem, disse o pastor. O pastor.
PROFESSOR — Um choque intransponível eram as eternidades necessárias para que o planeta tivesse originado tantas e tão afastadas espécies, quando da Bíblia decorre que o mundo foi criado cerca de quatro mil anos antes de Cristo, uma parcela ínfima da verdadeira idade da Terra. Hoje sabe-se que há vida na Terra há muito mais de seiscentos milhões de anos, e o registo fóssil traz à luz inúmeros testemunhos de espécies que desapareceram há muito, como a do nosso dinossauro encontrado há um ano no interior de Minas, que viveu há uns 65 ou 70 milhões de anos.
CORIFEU — Deus criou o mundo há menos de seis mil anos; onde você foi buscar esses milhão de anos? Cê é burro, cara?
CORO — Cê é burro? Cê é burro?
PROFESSOR — Esta é a resposta da Ciência, uma resposta racional, muito diferente da resposta mítica, supostamente revelada por Deus aos Homens. É tempo perdido discutir a existência ou não de Deus, porque não se pode provar, ou refutar, uma entidade que, por definição, é sobrenatural, fora da Natureza, e portanto não pode ser objeto de experiências reproduzíveis, como são as da Ciência. Além do mais, costuma ofender as convicções dos intervenientes na discussão.
CORIFEU — Deus, o Senhor Jesus, não tem discussão — é!
PROFESSOR — Toda a gente pode e deve ler a Bíblia. Se a ler com olhos racionais, poderá ter um vislumbre de como os povos antigos explicavam o mundo. Desde então, muito fizeram os Homens para fazer recuar a fronteira da ignorância.
CORIFEU — Deixa eu iluminar essa tua mente confusa: A Ciência, ela mexe com teorias e hipóteses; a Bíblia fala verdades reveladas por Deus. Então, se você tem um bom conhecimento da Bíblia, isso vale mais que um curso superior! Pra que serve essas besteira que você tá falando?
CORO — Pra que serve? Pra que serve?
PROFESSOR — O conhecimento guia-nos em muitas circunstâncias da vida e pode salvar-nos. Vou contar-vos uma história: Aquando do tsunami de 2004, que arrasou as praias do sudeste asiático, uma menina inglesa, de uns dez anos, de férias com a família numa praia da Tailândia, reparou que o mar recuara uns cem metros. Recordada que na escola a tinham ensinado de que esse era um sinal provável de tsunami, avisou os pais, que, felizmente lhe deram crédito e alertaram os outros cem veraneantes que estavam na praia. Assim se salvaram cem vidas. Pelo conhecimento científico.
CORIFEU — O nosso Salvador é o Senhor Jesus. Ele guia a gente pelo vale das sombras e salva os justos das iniquidades dos perversos. Ele abomina o Mal e caras como você que doutrinam a juventude com ideias comunistas e que o melhor era acabarem no pau de arara.
PROFESSOR — A religião ainda nos há de matar a todos.
CORIFEU — Todos, não. O Senhor ama seus filhos e exerce vingança terrível sobre os que tentam corromper eles. Você vai pro inferno!
CORO (novamente apontando os dedos em pistolinha ao professor) — Cê vai pro inferno! Cê vai pro inferno!
(De cenho feroz, o Corifeu aproxima-se do professor, de trás da cinta saca um revólver e dispara dois tiros à queima-roupa. O professor desaba, em sangue. O Corifeu corre o olhar pelo público e profere, solene:)
CORIFEU — O tempo da limpeza chegou! Vamo limpar a Escola de professor comunista.
(Guarda o revólver, dirige-se para o fundo do palco e encabeça a procissão das duas filas do coro que abandona o palco cantando.)
CORO — Vamo limpá. Vamo limpá. Vamo limpá à Escola!
(A iluminação diminui para um crepúsculo de luz negra.)
FIM
O público irrompe em palmas, mas o coro não regressa a agradecer, nem a personagem professor se levanta. Passado um minuto, os espectadores olham-se atónitos, os murmúrios passam a gritos, há telemóveis a ligar para a Polícia, a pedir ambulâncias. A Polícia responde que os efetivos estão em missão nos bairros problemáticos; o Hospital diz que não tem meios, depois da expulsão dos médicos cubanos e da contenção de despesas.
Joaquim Bispo
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Imagem: Francisco de Goya y Lucientes, Saturno devorando um filho, 1819–1823.
Museu do Prado, Madrid.
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7 comentários:
É caso para dizer, "à!Santa Clara, Santa Clara" eu tenho uma voz/fala
tão linda e a tua não se entende.
Um abraço.
Obrigado, Anónimo, mas o texto não é sobre diferenças linguísticas do falante comum, mas sobre o fundamentalismo de certas franjas religiosas que, quer nos EUA, quer no Brasil, tentam proibir o ensino do darwinismo e de outras teorias aceites pela Ciência, como sendo marxismo cultural.
Abraço!
Gostei muito, Joaquim! um excelente exemplo do que tem sido a luta entre a Ciência e o obscurantismo supersticioso das crendices religiosas.
Beijinho da
julia
Obrigado. Gosto de o ler, desde logo porque nem sempre tenho tempo, e os seus contos se lêem de um fôlego. Além disso, aprecio muito a sua escrita e as mensagens que passa nela. Obrigado. Parabéns! João
Obrigado, Júlia!
Manter a defesa radical da interpretação literal do texto bíblico é uma temeridade que não se apoia na racionalidade, mas na rigidez monolítica do instinto.
Abraço!
Obrigado, João! Gostei muito das suas palavras, sobretudo porque elenca três características que a minha escrita conterá e que considero essenciais.
Abraço!
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