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sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Manteiga com Marmelada


Embora estivesse preparado para isso, a porta quase o atingiu. De todas as mulheres que conhecera, Maria Helena era a melhor a bater com a porta na cara das pessoas. Uma verdadeira artista.

Suspirando, virou-se e abriu a porta do elevador. Viera de tão longe, e para nada. Não conseguia entender a atitude de Maria Helena, como não entendera a de Susana, ou a de Gabriela, ou a das muitas outras mulheres que tinham passado pela sua vida.

Ao penetrar no forno que era a rua apercebeu-se subitamente de que era agora um homem totalmente livre. Sem emprego, sem relacionamentos e, a partir do dia seguinte, sem ter onde morar. O mundo abria-se à sua frente, com miríades oportunidades e destinos que podia escolher à sua inteira vontade, sem estar dependente de nada nem de ninguém. Mas ao contrário do que lhe era habitual não se sentia esperançoso nem excitado com este panorama, mas assustado e, até, um pouco só.

Precisava de pensar muito a sério nos passos seguintes, a começar pelo mais premente, a habitação. Era ridículo que uma pessoa com o seu estilo de vida não tivesse dinheiro nem sequer para ir passar umas noites a um hotel ou para a renda do primeiro mês de um novo apartamento alugado. Não sabia como, mas o dinheiro escoava-se-lhe pelos dedos e era raro o mês em que não se via aflito para pagar todas as despesas em que se metia.

Ao seu desconforto moral juntava-se agora uma sensação de fraqueza. Era tarde e ainda não almoçara. Por sorte estava perto de um dos seus restaurantes favoritos, mas que Maria Helena sempre detestara. Achava-o uma mistura sem sentido, cozinha chinesa e francesa no mesmo menu. Estava já à porta quando se lembrou de que não podia usar os dois cartões de crédito enquanto não pagasse parte do saldo. Meteu a mão ao bolso e contou rapidamente o pouco dinheiro que trazia consigo. Talvez desse para um café e uma sandes.

Não conseguia ultrapassar a atitude de Maria Helena. Ou a do patrão, que o despedira há duas semanas. Ou a da senhoria, que não lhe renovara o contrato de aluguer. Ou a de Gracinda, que também o abandonara. Que se passava com essa gente? Seria assim tão impossível compreender a sua filosofia de vida, o seu modo de estar no mundo?

O patrão, por exemplo. “Não cumprimento de funções!” Não esperava, com certeza, que passasse o dia inteiro enfiado num escritório a olhar para fiadas de números, quando havia tantas outras coisas para fazer. Estudar, jogar (não que fosse muito bom em desporto, mas o importante era tentar um pouco de tudo), dar passeios, eu sei lá. Produzia de facto menos que os outros, nunca cumpria as cotas, apesar de terem sido reduzidas várias vezes, mas, pelo menos, nunca lhe faltavam assuntos de conversa.

Despedido! A ideia causava-lhe tantas náuseas como a sandes meia amachucada que comprara a um vendedor ambulante.

Até custava a acreditar! Mas ontem fora o seu último dia de trabalho. E o que o chocara mais fora a completa indiferença dos colegas quando se despedira. Sempre pensara ser popular, ou, pelo menos, um deles. Ficara, contudo, com a impressão de que não deixava saudades.

A princípio recebera a notícia com indiferença. Até se divertira à custa dos ares pomposos do patrão durante o jantar com Gracinda e, mais tarde, com Maria Helena. Rapidamente arranjaria algo melhor e mais bem pago. Infelizmente os patrões em perspetiva não ficavam entusiasmados com os cursos abandonados a meio, os vários empregos de que fora despedido sem carta de recomendação, as ideias meio alinhavadas e a completa falta de capacidades comprovadas. Passara-se um mês e nada tinha conseguido.

O pior era que os credores sabiam da situação e fora obrigado a gastar todo o dinheiro que recebera para pagar algumas dívidas urgentes. Nem dinheiro lhe ficara para comer e no fim do mês tinha o problema dos cartões de crédito. Não deixava de ser irónico. Ontem, marisco e vinhos caros no melhor restaurante da cidade. Hoje, pior que um mendigo) estes, pelo menos, não devem a toda a gente).

Sentindo-se pior deitou fora o resto da malfadada sandes. Não chegara, sequer, a descobrir de que era. O melhor era voltar para casa, enquanto ainda tinha uma.

Esse era um outro ponto que não compreendia. Mudara-se para aquele apartamento de luxo porque era exatamente o tipo de local onde sempre sonhara viver. Carote, é claro, mas do melhor. Porteiro (dia e noite), piscina, ginásio, serviço de limpeza, enfim, uma vida descansada. Havia regras, é claro, dúzias delas. Nada de animais, festas só depois de informar os vizinhos, informar o porteiro sobre possíveis visitantes, código de vestuário em público, enfim, um nunca acabar de imposições. Concordara com a senhoria quando esta lhe dissera que eram essas regras que mantinham o nível do prédio. Mas...

Mesmo assim não havia razões para não lhe renovarem o contrato. Só porque quebrara uma ou outra regrazita (a megera da senhoria insinuara que tinham sido todas e algumas em dose repetida) não via porque não podia continuar por ali. Não tinha dinheiro para a renda, é claro, mas isso só viria a ser problema depois de seis ou, com alguma sorte, sete meses. Em vez disso estava na rua. Literalmente. Incrível!

Apesar do calor apressou o passo. Ainda não começara a empacotar as coisas e precisava, pelo menos, das roupas se tinha esperanças de encontrar um quarto algures sem pagamento prévio. O resto teria de ficar, pois não tinha onde guardar a tralha que acumulara num ano. Ainda se ao menos pudesse vender algumas coisas! Faria bom dinheiro, pois era tudo da melhor qualidade e de um bom gosto impecável. Ou o melhor, ou nada, era o seu lema. Mas nada estava totalmente pago e não precisava de acrescentar problemas legais à longa lista das recentes desgraças.

Distraído com os seus pensamentos por pouco não era atropelado por um camião. Insultou vagamente o motorista, embora a culpa fosse totalmente sua. Mas insultar motoristas sempre o pusera de boa disposição, embora ficasse furioso quando o insultavam de volta. Mas desta vez não resultou.

Que ideia tão parva tivera em visitar Maria Helena. Depois da última conversa, ou antes, discussão, as hipóteses de reconciliação eram diminutas. Mesmo assim tivera esperanças de a conseguir convencer a aceitá-lo de volta. Ensaiara discursos, olhares suplicantes e expressões contritas. Mas não tivera tempo de os experimentar. Assim que vira quem ali estava, Pum! O prédio até estremecera com o vigor daquele bater de porta!

E gastara a última nota no táxi em que atravessara meia cidade. Agora nem para o autocarro tinha.

Maria Helena estava fora da equação. E Gracinda? Sempre lera que as mulheres em vias de se divorciarem passam por fases de sentimentalismo, de anseio pelos “bons velhos tempos”. E se falasse com ela? Talvez fizessem as pazes e arranjasse um tecto para os dias seguintes. Havia, é claro, a ordem do tribunal mantendo-o afastado da casa da em breve ex-mulher. Nunca percebera bem porquê. Serenatas às duas da manhã, telefonemas contínuos, súbitas aparições no emprego, nos restaurantes ou no médico talvez pudessem ser considerados um pouco excessivos, mas, uma ordem do tribunal? Tudo o que pretendera era que a mulher desistisse da ideia do divórcio e que voltassem a viver juntos.

Divorciarem-se por causa de Maria Helena! Francamente! Sempre tivera uma amante, desde a primeira semana de casados. Nessa altura amava perdidamente Gracinda mas isso não o impedira de se entender com Odete, a empregada da loja de vídeos. E essa fora apenas a primeira. Não era promíscuo, nada de escapadelas momentâneas, por muito desejável que fosse a mulher. Uma de cada vez, e durante o máximo de tempo possível.

Mulher, amante, as duas faces do casamento, pelo menos do modo como o entendia. Cada uma tinha o seu cantinho na sua vida e nada lhe dava mais satisfação do que passar de uma para a outra. Pena que as coisas não durassem. Mais cedo ou mais tarde a amante começava a exigir mais, (mais tempo, mais disponibilidade, mais compromisso), e a relação acabara.

Mas Gracinda só agora descobrira não ser a única mulher naquele casamento. Felizmente só soubera de Maria Helena. Fora o suficiente para exigir o divórcio. Estranhamente, isso levara à rutura com Maria Helena. Sempre soubera que era casado e nunca o pressionara sobre esse ponto. Parecia que finalmente conseguira a tão desejada estabilidade, com a mulher em casa, satisfeita com o casamento, e a amante na outra casa, contente com a sua situação. O divórcio estragara tudo. Não só perdera a mulher como começara a ser pressionado pela amante para se casarem, “agora que estás livre”. Daí a discussão e a rutura.

Chegara, finalmente, a casa, cansado, suado e esfomeado. Ignorando os olhares de soslaio do porteiro de serviço entrou no elevador e subiu até ao seu andar. Colado à porta estava um aviso da senhoria lembrando-lhe que devia sair até ao meio-dia seguinte. Irritado, amarfanhou-o e atirou-o para o chão, quebrando mais uma regra.

Chuveiro ou comida? Sentia-se esfomeado, mas não seria capaz de gozar o que quer que fosse antes de se lavar e mudar de roupa. Tresandava.

Foi de espírito mais feliz que se dirigiu para a cozinha em busca de alimento. Não esperava grande coisa, pois sempre comera em restaurantes (pelo menos até ter problemas com os cartões). Mas sempre devia haver pão e qualquer outra coisa.

O pão era de há dois dias, mas uma passagem pela torradeira e ficaria ótimo. Enquanto tratava disso abriu a geleira. Estava quase vazia. Retirou o pacote de manteiga, quase no fim, e pôs-se em busca de mais qualquer coisa que lhe pudesse adicionar. Era um hábito que sempre irritara Gracinda e também Maria Helena e as outras. Nunca se satisfizera com uma simples fatia de pão com manteiga. Tinha de lhe pôr algo mais: fiambre, queijo, azeitonas, enfim, o que houvesse à mão. Às vezes saíam as misturas mais estranhas. Mas só manteiga é que não.

Sempre fora assim. Em miúdo era a avó, uma mulher enérgica e despachada, que tratava dos lanches dos inúmeros netos quando estes saíam das respetivas escolas e esperavam em sua casa que os pais os viessem buscar. Sentavam-se todos em torno da bem polida e enorme mesa da cozinha, já decorada com os copos de leite que tinham de beber até à última gota. Depois vinha a pergunta sacramental: “Queres o teu pão com manteiga, ou com marmelada?” Marmelada feita em casa, já se sabe, que a avó Cremilde não gostava “dessas mistelas que se vendem por aí e que nem sabemos de que são feitas”.

O mais velho respondia e recebia a dose pretendida, preparada mesmo ali à sua frente. Um a um todos indicavam a sua preferência. Havia-os de todos os tipos. Os fanáticos da manteiga, os fanáticos da marmelada, os que variavam, com regra fixa (um dia uma, no seguinte a outra) ou ao sabor da ocasião.

Os problemas começavam sempre quando chegava a sua vez. Em vez de escolher, dizia sempre: ”Quero manteiga com marmelada”. E rebentava a habitual tempestade, a que já nem prestava atenção. Segundo parecia querer as duas coisas denunciava mau caráter, egoísmo, ganância, e muitas outras coisas do mesmo género. “Hás de acabar preso (ou assassinado, conforme a disposição do momento)”.

As consequências também eram sempre as mesmas: ficava só com o leite!

Nunca conseguira perceber porque era um crime tão grande escolher manteiga com marmelada. Ainda hoje não entendia o problema. Se havia das duas coisas, porquê limitar-se só a uma delas?

Agarrando na sandes de manteiga com sardinhas de conserva que entretanto preparara dirigiu-se para a que ainda era a sua sala. Estava na hora do seu concurso televisivo favorito e não tencionava perdê-lo. Emalaria as suas coisas antes de se deitar ou durante a manhã. Ou até durante a tarde, dando uma desculpa qualquer à senhoria. Sim, não havia pressas. Alguma coisa se havia de arranjar.

Luísa Lopes


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