Embora
estivesse preparado para isso, a porta quase o atingiu. De todas as mulheres
que conhecera, Maria Helena era a melhor a bater com a porta na cara das
pessoas. Uma verdadeira artista.
Suspirando,
virou-se e abriu a porta do elevador. Viera de tão longe, e para nada. Não
conseguia entender a atitude de Maria Helena, como não entendera a de Susana,
ou a de Gabriela, ou a das muitas outras mulheres que tinham passado pela sua
vida.
Ao
penetrar no forno que era a rua apercebeu-se subitamente de que era agora um
homem totalmente livre. Sem emprego, sem relacionamentos e, a partir do dia
seguinte, sem ter onde morar. O mundo abria-se à sua frente, com miríades
oportunidades e destinos que podia escolher à sua inteira vontade, sem estar
dependente de nada nem de ninguém. Mas ao contrário do que lhe era habitual não
se sentia esperançoso nem excitado com este panorama, mas assustado e, até, um
pouco só.
Precisava
de pensar muito a sério nos passos seguintes, a começar pelo mais premente, a
habitação. Era ridículo que uma pessoa com o seu estilo de vida não tivesse
dinheiro nem sequer para ir passar umas noites a um hotel ou para a renda do
primeiro mês de um novo apartamento alugado. Não sabia como, mas o dinheiro
escoava-se-lhe pelos dedos e era raro o mês em que não se via aflito para pagar
todas as despesas em que se metia.
Ao
seu desconforto moral juntava-se agora uma sensação de fraqueza. Era tarde e
ainda não almoçara. Por sorte estava perto de um dos seus restaurantes
favoritos, mas que Maria Helena sempre detestara. Achava-o uma mistura sem
sentido, cozinha chinesa e francesa no mesmo menu. Estava já à porta quando se
lembrou de que não podia usar os dois cartões de crédito enquanto não pagasse
parte do saldo. Meteu a mão ao bolso e contou rapidamente o pouco dinheiro que
trazia consigo. Talvez desse para um café e uma sandes.
Não
conseguia ultrapassar a atitude de Maria Helena. Ou a do patrão, que o
despedira há duas semanas. Ou a da senhoria, que não lhe renovara o contrato de
aluguer. Ou a de Gracinda, que também o abandonara. Que se passava com essa
gente? Seria assim tão impossível compreender a sua filosofia de vida, o seu
modo de estar no mundo?
O
patrão, por exemplo. “Não cumprimento de funções!” Não esperava, com certeza,
que passasse o dia inteiro enfiado num escritório a olhar para fiadas de
números, quando havia tantas outras coisas para fazer. Estudar, jogar (não que
fosse muito bom em desporto, mas o importante era tentar um pouco de tudo), dar
passeios, eu sei lá. Produzia de facto menos que os outros, nunca cumpria as
cotas, apesar de terem sido reduzidas várias vezes, mas, pelo menos, nunca lhe
faltavam assuntos de conversa.
Despedido!
A ideia causava-lhe tantas náuseas como a sandes meia amachucada que comprara a
um vendedor ambulante.
Até
custava a acreditar! Mas ontem fora o seu último dia de trabalho. E o que o
chocara mais fora a completa indiferença dos colegas quando se despedira.
Sempre pensara ser popular, ou, pelo menos, um deles. Ficara, contudo, com a
impressão de que não deixava saudades.
A
princípio recebera a notícia com indiferença. Até se divertira à custa dos ares
pomposos do patrão durante o jantar com Gracinda e, mais tarde, com Maria
Helena. Rapidamente arranjaria algo melhor e mais bem pago. Infelizmente os
patrões em perspetiva não ficavam entusiasmados com os cursos abandonados a
meio, os vários empregos de que fora despedido sem carta de recomendação, as
ideias meio alinhavadas e a completa falta de capacidades comprovadas.
Passara-se um mês e nada tinha conseguido.
O
pior era que os credores sabiam da situação e fora obrigado a gastar todo o
dinheiro que recebera para pagar algumas dívidas urgentes. Nem dinheiro lhe
ficara para comer e no fim do mês tinha o problema dos cartões de crédito. Não
deixava de ser irónico. Ontem, marisco e vinhos caros no melhor restaurante da
cidade. Hoje, pior que um mendigo) estes, pelo menos, não devem a toda a
gente).
Sentindo-se
pior deitou fora o resto da malfadada sandes. Não chegara, sequer, a descobrir
de que era. O melhor era voltar para casa, enquanto ainda tinha uma.
Esse
era um outro ponto que não compreendia. Mudara-se para aquele apartamento de
luxo porque era exatamente o tipo de local onde sempre sonhara viver. Carote, é
claro, mas do melhor. Porteiro (dia e noite), piscina, ginásio, serviço de
limpeza, enfim, uma vida descansada. Havia regras, é claro, dúzias delas. Nada
de animais, festas só depois de informar os vizinhos, informar o porteiro sobre
possíveis visitantes, código de vestuário em público, enfim, um nunca acabar de
imposições. Concordara com a senhoria quando esta lhe dissera que eram essas
regras que mantinham o nível do prédio. Mas...
Mesmo
assim não havia razões para não lhe renovarem o contrato. Só porque quebrara
uma ou outra regrazita (a megera da senhoria insinuara que tinham sido todas e algumas
em dose repetida) não via porque não podia continuar por ali. Não tinha
dinheiro para a renda, é claro, mas isso só viria a ser problema depois de seis
ou, com alguma sorte, sete meses. Em vez disso estava na rua. Literalmente.
Incrível!
Apesar
do calor apressou o passo. Ainda não começara a empacotar as coisas e
precisava, pelo menos, das roupas se tinha esperanças de encontrar um quarto
algures sem pagamento prévio. O resto teria de ficar, pois não tinha onde
guardar a tralha que acumulara num ano. Ainda se ao menos pudesse vender
algumas coisas! Faria bom dinheiro, pois era tudo da melhor qualidade e de um
bom gosto impecável. Ou o melhor, ou nada, era o seu lema. Mas nada estava
totalmente pago e não precisava de acrescentar problemas legais à longa lista
das recentes desgraças.
Distraído
com os seus pensamentos por pouco não era atropelado por um camião. Insultou
vagamente o motorista, embora a culpa fosse totalmente sua. Mas insultar motoristas
sempre o pusera de boa disposição, embora ficasse furioso quando o insultavam
de volta. Mas desta vez não resultou.
Que
ideia tão parva tivera em visitar Maria Helena. Depois da última conversa, ou
antes, discussão, as hipóteses de reconciliação eram diminutas. Mesmo assim
tivera esperanças de a conseguir convencer a aceitá-lo de volta. Ensaiara
discursos, olhares suplicantes e expressões contritas. Mas não tivera tempo de
os experimentar. Assim que vira quem ali estava, Pum! O prédio até estremecera com
o vigor daquele bater de porta!
E
gastara a última nota no táxi em que atravessara meia cidade. Agora nem para o
autocarro tinha.
Maria
Helena estava fora da equação. E Gracinda? Sempre lera que as mulheres em vias
de se divorciarem passam por fases de sentimentalismo, de anseio pelos “bons
velhos tempos”. E se falasse com ela? Talvez fizessem as pazes e arranjasse um
tecto para os dias seguintes. Havia, é claro, a ordem do tribunal mantendo-o
afastado da casa da em breve ex-mulher. Nunca percebera bem porquê. Serenatas
às duas da manhã, telefonemas contínuos, súbitas aparições no emprego, nos
restaurantes ou no médico talvez pudessem ser considerados um pouco excessivos,
mas, uma ordem do tribunal? Tudo o que pretendera era que a mulher desistisse
da ideia do divórcio e que voltassem a viver juntos.
Divorciarem-se
por causa de Maria Helena! Francamente! Sempre tivera uma amante, desde a
primeira semana de casados. Nessa altura amava perdidamente Gracinda mas isso
não o impedira de se entender com Odete, a empregada da loja de vídeos. E essa
fora apenas a primeira. Não era promíscuo, nada de escapadelas momentâneas, por
muito desejável que fosse a mulher. Uma de cada vez, e durante o máximo de
tempo possível.
Mulher,
amante, as duas faces do casamento, pelo menos do modo como o entendia. Cada
uma tinha o seu cantinho na sua vida e nada lhe dava mais satisfação do que
passar de uma para a outra. Pena que as coisas não durassem. Mais cedo ou mais
tarde a amante começava a exigir mais, (mais tempo, mais disponibilidade, mais
compromisso), e a relação acabara.
Mas
Gracinda só agora descobrira não ser a única mulher naquele casamento.
Felizmente só soubera de Maria Helena. Fora o suficiente para exigir o
divórcio. Estranhamente, isso levara à rutura com Maria Helena. Sempre soubera
que era casado e nunca o pressionara sobre esse ponto. Parecia que finalmente
conseguira a tão desejada estabilidade, com a mulher em casa, satisfeita com o
casamento, e a amante na outra casa, contente com a sua situação. O divórcio estragara
tudo. Não só perdera a mulher como começara a ser pressionado pela amante para
se casarem, “agora que estás livre”. Daí a discussão e a rutura.
Chegara,
finalmente, a casa, cansado, suado e esfomeado. Ignorando os olhares de soslaio
do porteiro de serviço entrou no elevador e subiu até ao seu andar. Colado à
porta estava um aviso da senhoria lembrando-lhe que devia sair até ao meio-dia
seguinte. Irritado, amarfanhou-o e atirou-o para o chão, quebrando mais uma
regra.
Chuveiro
ou comida? Sentia-se esfomeado, mas não seria capaz de gozar o que quer que fosse
antes de se lavar e mudar de roupa. Tresandava.
Foi
de espírito mais feliz que se dirigiu para a cozinha em busca de alimento. Não
esperava grande coisa, pois sempre comera em restaurantes (pelo menos até ter
problemas com os cartões). Mas sempre devia haver pão e qualquer outra coisa.
O
pão era de há dois dias, mas uma passagem pela torradeira e ficaria ótimo.
Enquanto tratava disso abriu a geleira. Estava quase vazia. Retirou o pacote de
manteiga, quase no fim, e pôs-se em busca de mais qualquer coisa que lhe
pudesse adicionar. Era um hábito que sempre irritara Gracinda e também Maria Helena
e as outras. Nunca se satisfizera com uma simples fatia de pão com manteiga.
Tinha de lhe pôr algo mais: fiambre, queijo, azeitonas, enfim, o que houvesse à
mão. Às vezes saíam as misturas mais estranhas. Mas só manteiga é que não.
Sempre
fora assim. Em miúdo era a avó, uma mulher enérgica e despachada, que tratava
dos lanches dos inúmeros netos quando estes saíam das respetivas escolas e
esperavam em sua casa que os pais os viessem buscar. Sentavam-se todos em torno
da bem polida e enorme mesa da cozinha, já decorada com os copos de leite que
tinham de beber até à última gota. Depois vinha a pergunta sacramental: “Queres
o teu pão com manteiga, ou com marmelada?” Marmelada feita em casa, já se sabe,
que a avó Cremilde não gostava “dessas mistelas que se vendem por aí e que nem
sabemos de que são feitas”.
O
mais velho respondia e recebia a dose pretendida, preparada mesmo ali à sua
frente. Um a um todos indicavam a sua preferência. Havia-os de todos os tipos.
Os fanáticos da manteiga, os fanáticos da marmelada, os que variavam, com regra
fixa (um dia uma, no seguinte a outra) ou ao sabor da ocasião.
Os
problemas começavam sempre quando chegava a sua vez. Em vez de escolher, dizia
sempre: ”Quero manteiga com marmelada”. E rebentava a habitual tempestade, a
que já nem prestava atenção. Segundo parecia querer as duas coisas denunciava
mau caráter, egoísmo, ganância, e muitas outras coisas do mesmo género. “Hás de
acabar preso (ou assassinado, conforme a disposição do momento)”.
As
consequências também eram sempre as mesmas: ficava só com o leite!
Nunca
conseguira perceber porque era um crime tão grande escolher manteiga com
marmelada. Ainda hoje não entendia o problema. Se havia das duas coisas, porquê
limitar-se só a uma delas?
Agarrando
na sandes de manteiga com sardinhas de conserva que entretanto preparara
dirigiu-se para a que ainda era a sua sala. Estava na hora do seu concurso
televisivo favorito e não tencionava perdê-lo. Emalaria as suas coisas antes de
se deitar ou durante a manhã. Ou até durante a tarde, dando uma desculpa
qualquer à senhoria. Sim, não havia pressas. Alguma coisa se havia de arranjar.
Luísa Lopes
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