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quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

OS BENZIMENTOS DE MINHA AVÓ

 



 

         Miúda, serena, calma e doce. Mulher extremamente dócil. Submissa como nenhuma outra.

         Assim era minha avó. Silenciosa e terna. Não me lembro de sua voz alterada. Soava sempre no mesmo tom de cantiga de ninar.

         Mulher de movimentos leves e precisos. Criou nove filhos na escassez de recursos, gerenciando o pouco ou quase nada, e deu conta. E ainda deu conta de dar amor a todos os netos, a muitos que, de bando a cada ano, chegavam ao mundo.

         Leveza na lida dos afazeres domésticos. Casebre de barro, depois de tábuas, chão de terra batida. Sempre limpa. Amorosa e cuidadosamente limpa. E cheirosa. De manhã, quando passava pelos cômodos borrifando água com as pontas dos dedos no chão, antes de passar a vassoura, o cheiro da terra molhada lembrava a chuva. E depois, durante todo o dia era cheiro, cheiro... Do pão assado, do café coado, do feijão com alho, do arroz com cebola, da carne de panela, da linguiça frita, da pele de porco crocante, do pepino cortado, do limão espremido... E, no comecinho da tarde, o cheiro do bolinho de chuva, do bolo de fubá com erva doce, do biscoito de polvilho, do arroz doce com açúcar queimado e paus de canela, do doce de abóbora, de chá de folhas de laranjeira...

         Tudo doce e aconchegante, no mesmo sabor de uma infância bem vivida.

         E minha avó ainda benzia. Era a benzedeira da vila. Sempre arrumava tempo para atender quem batesse em sua porta.

         Seu benzimento, sua reza, tudo era brando. Igual a ela. Uma alquimia de sons e palavras que embalava os pensamentos e adormecia os pequenos. Crianças chegavam gritando e saíam dormindo. Isso eu presenciei inúmeras vezes.

         E o benzimento era feito. As orações eram sussurradas enquanto suas mãos costuravam um paninho. Isso mesmo! Dobrava um pequeno retalho de pano, colocava uma linha comprida na agulha, fazia o nó e começava a costurá-lo apenas em uma lateral. Conforme rezava, subia e descia a agulha com delicadeza, inúmeras vezes, costurando sempre de baixo para cima. Rezava, de vez em quando parava a costura, e docemente perguntava à pessoa que estava benzendo, ou ao seu responsável:

         - O que eu coso?

         A pessoa respondia com a explicação do mal que a afligia: dor nas costas, cólica, dor de cabeça, dor de garganta, tosse, fraqueza, noites mal dormidas, cansaço, rouquidão...

         Então minha avó, pacientemente, explicava para a pessoa que sempre que ela lhe perguntasse, por repetidas vezes: “o que eu coso?”, que ela respondesse: “carne quebrada”.

         E assim era feito.

         Depois que ela ouvia a pessoa falar: “carne quebrada”, juntava estas palavras à reza e respondia:

         - Carne quebrada, osso essssss...

         Por mais que eu apurasse meus ouvidos, chegando mesmo a prender a respiração, isso era tudo o que eu conseguia ouvir. Depois ia sussurrando palavras e as juntava às preces, e por aí seguia. Minutos e minutos de reza sussurrada. Cansei de perguntar o que ela dizia, mas ela nunca me contou.

         Esse ritual da costura deveria ser feito por três dias para a mesma pessoa, e o mesmo paninho seria usado até que a beirada costurada formasse um caseado firme, tantos os pontos feitos nos mesmos lugares. Cada pessoa benzida por ela levava seu retalhinho costurado, com agulha e tudo, e deveria voltar com ele nos outros dois dias. A linha só seria cortada no último benzimento, e o paninho costurado deveria ser jogado em água limpa e corrente ou queimado.

         E as pessoas voltavam, e as queixas dos males se esvaíam.

Um dia, depois de muito perguntar sobre o que ela dizia durante os seus benzimentos sussurrados, ela me pegou pela mão, colocou-me sentada diante dela, e docemente inquiriu:

- Por que quer saber o que eu falo quando estou benzendo? Quer seguir o ofício?

Fiquei tão assustada com a pergunta que respondi prontamente:

- Não!

Naquele ‘não’ quase gritado, eu deixei claro que nunca havia pensado nisso. Eu sabia que aquilo não era um ofício. Minha avó não ganhava absolutamente nada com as benzeduras. Era uma missão, um dom. Enquanto ela benzia e aliviava as dores e inquietudes das outras pessoas, ela abrandava o seu próprio coração, alimentava a sua serenidade. Benzer era vital para ela. Era uma doação sem medida, era uma entrega. Mas não para mim!

Desse dia em diante, nunca mais perguntei sobre o que falava enquanto benzia. Eu a respeitei, e nunca mais apurei meus ouvidos para tentar desvendar os seus sussurros sibilantes.

Não havia na vila criança ou adulto que não tivesse passado pelo benzimento de minha avó. Não tinha dia em que não atendesse os que a procuravam.

         Benzia enquanto havia a luz forte do dia. Mas, depois das seis horas da tarde, nem adiantava chegar. Não atendia em circunstância nenhuma.

         Havia duas coisas que não fazia depois das seis. Não benzia e não varria a casa. Mesmo que fosse da maior urgência, era perda de tempo insistir.

         E mesmo com a insistência de muitas pessoas, não se alterava para dizer não. Dizia mansamente uma, duas, quantas vezes precisasse negar o atendimento.

         Um dia chegou um senhor, e perguntou se ela poderia benzer um cavalo que estava doente. Minha avó se espantou. Não benzia animais, só benzia pessoas. Se bem que muitas vezes eu a vi passando as mãos carinhosas nos nossos gatinhos e cachorrinhos, e mexendo os lábios, como fazia nas rezas do benzimento! Mas, oficialmente, nunca ninguém trouxe bicho para que ela o benzesse.

         Receosa e surpresa com o pedido, ela explicou ao homem que não benzia animais. Mas, diante da insistência e da aflição do pobre coitado, penalizada com a situação, disse a ele que iria pensar e lhe daria uma resposta.

         Na verdade, ela não precisaria pensar. Ela pediu um tempo para conversar sobre isso com o meu avô. Tudo que fosse fora do combinado teria de passar pelo crivo dele.

         Se até mesmo o benzimento de pessoas que ela fazia ele não encarava muito bem, não acreditava naquilo, criticava o feito como uma perda de tempo da benzedeira e do benzido! Quando minha avó lhe falou sobre a benzedura do cavalo, ele ficou transtornado. Esbravejou, vociferou...

         O homem do cavalo era conhecido dele. Ambos trabalhavam como charreteiros da vila. Vida dura. E pobre.

         Minha avó, apesar de saber que ele não concordaria com a ideia desde o momento em que o homem lhe fez o pedido, ficou sem jeito de dizer não, e agora estava apavorada porque teria enfim que dar a negativa ao homem.

         Ficou tão aflita que não conseguiu pregar os olhos durante toda a noite. De manhã estava um bagaço... E tinha ainda a dura missão de dizer não ao homem do cavalo.

         Passado das quatro horas da tarde, ela ouviu as palmas vindas do portão.

         Chegou a estremecer. Era chegada a hora...

         Abriu a porta na certeza de que era o homem do cavalo. E era. O homem e o cavalo!

         Minha avó ficou tonta, as pernas tremiam. A visão que tinha era ainda mais assustadora. O cavalo estava com uma aparência horrível, muito inchado, nem entendia como ele havia chegado até ali.

         O sol estava muito forte, e aquele homem com aquele cavalo ali, diante dela, do lado de fora da cerca de balaústres... Nem sabia o que fazer.

         A primeira coisa que lhe veio à cabeça foi abrigá-los do sol, colocá-los no quintal, na sombra da mangueira. E foi custoso fazer com que o cavalo andasse mais um pouco, que passasse pelo estreito portão e se ajeitasse na sombra.

         Quando tudo se acalmou, minha avó, toda sem jeito, tentou explicar ao homem que não benzeria o cavalo, mas ele insistia tanto que ela achou melhor fazer uma oração, uma reza pedindo a Deus que tivesse compaixão do sofrimento do bicho.

         Fazendo isso, rezaria com fé, poderia ser que o animal melhorasse, e o intuito principal dessa reza mais ligeira era que eles iriam embora antes do meu avô chegar! Tudo ficaria resolvido rapidamente.

E ela não faria de qualquer jeito, não! Rezaria com muita fé, mas rapidamente.

         Pensando assim foi para perto do animal. O coitado estava de pé, arrepiado, imenso de inchado, e mantinha os olhos fechados. Estava exausto com a caminhada até ali.

         Minha avó colocou a mão na testa dele, e nem assim o bicho abriu os olhos. Ajeitou o braço de maneira que toda a palma da mão tocasse no animal, e começou a rezar. E se entregou à reza. Mesmo aflita, com pressa, rezou serena.

         De repente, em meio à reza, o animal foi se movendo de mansinho, tremelicando, e tombou de lado.

         Foi um espanto danado!

         Minha avó deu um passo para trás e não conseguia entender o que estava acontecendo. Agachou-se perto da cabeça do animal, os olhos continuavam fechados. Correu os olhos pelo pescoço do bicho e parou na barriga. O cavalo não estava respirando, a barriga estava imóvel. O animal todo estava imóvel. Morto!

         Isso mesmo, o bicho estava morto. Estirado, imenso no seu inchaço.

         E minha avó, ali. Incrédula, apavorada, embasbacada, sem ação. Não demoraria nada e meu avô chegaria...

         Seria o caos! O que fazer com aquele animal caído?

A cada olhada que ela dava para o bicho, parecia que ele se agigantava. Um elefante no tamanho! E como tirá-lo dali?

O dono do cavalo permanecia calado. E imóvel. Não tinha o que fazer. Tinha de pensar. Pensar numa maneira de levar o animal dali.

E ficaram pensando. O homem, no cavalo, e minha avó, no meu avô. Aflitos...

E meu avô chegou.

Ainda na rua, desatrelou o cavalo da charrete, amarrou a corda comprida no cabresto e soltou o animal na data do outro lado da rua, um terreno vazio onde havia touceiras e touceiras de colonião. A charrete ficava ali mesmo, na calçada em frente da casa. Não havia risco. Não havia ladrão.

E entrou...

Em poucos segundos, o mundo veio abaixo. Ele gritou, esbravejou, amaldiçoou, praguejou, destratou... Foi um tendepá! E minha avó, calada. O homem do cavalo, petrificado. Parecia uma estátua!

Esgotados os desaforos e desacatos proferidos pelo meu avô, ele e o homem do cavalo decidiram pedir ajuda a um sitiante que morava perto da vila. Lá havia um trator muito velho, mas com boa vontade, poderia arrastar o animal dali para longe.

E foram atrás do socorro... E ele veio.

Parte da cerca de balaústres precisou ser derrubada para a operação da retirada do animal. E minha avó ouviu...

Quando, enfim, o cavalo foi retirado, a noite já ia alta. E minha avó ainda ouvia...

E ouviu por muitos dias...

Era uma pessoa resignada com a vida, submissa ao marido, e muitas vezes eu imaginava que um dia ela perderia essa resignação e faria o maior escarcéu, a maior gritaria, colocando fora toda a gama de desaforos que recebera da vida.

Eu sempre pensava que não era possível ser tão cordata, tão sem réplica. Uma hora a coisa ia descambar...

Fiquei na espera.

Ela se foi, e eu não vi esse espetáculo. Ela era assim. Era de boa têmpera. Tinha bom cerne, alma nobre, coração manso. Aliás, ela era só coração. Coração nas mãos que benziam, nos dedos que nos acarinhavam, nos braços que nos embalavam, na placidez do rosto que nos acalmava. Coração nas cantigas doces que nos faziam dormir, na serenidade da fala que chegava aos nossos ouvidos, nos olhos que nos enterneciam, e nos lábios que tanto rezavam por nós.

Era o coração que ela entregava nos benzimentos, nas rezas sussurradas.  

 

                      Regina Ruth Rincon Caires

 

 

 

 

                                              

                                                                                  

               

 

 

 

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