Miúda, serena, calma e doce. Mulher extremamente
dócil. Submissa como nenhuma outra.
Assim era minha avó. Silenciosa e
terna. Não me lembro de sua voz alterada. Soava sempre no mesmo tom de cantiga
de ninar.
Mulher de movimentos leves e precisos.
Criou nove filhos na escassez de recursos, gerenciando o pouco ou quase nada, e
deu conta. E ainda deu conta de dar amor a todos os netos, a muitos que, de
bando a cada ano, chegavam ao mundo.
Leveza na lida dos afazeres domésticos.
Casebre de barro, depois de tábuas, chão de terra batida. Sempre limpa. Amorosa
e cuidadosamente limpa. E cheirosa. De manhã, quando passava pelos cômodos borrifando
água com as pontas dos dedos no chão, antes de passar a vassoura, o cheiro da
terra molhada lembrava a chuva. E depois, durante todo o dia era cheiro,
cheiro... Do pão assado, do café coado, do feijão com alho, do arroz com
cebola, da carne de panela, da linguiça frita, da pele de porco crocante, do
pepino cortado, do limão espremido... E, no
comecinho da tarde, o cheiro do bolinho de chuva, do bolo de fubá com erva
doce, do biscoito de polvilho, do arroz doce com açúcar queimado e paus de
canela, do doce de abóbora, de chá de folhas de laranjeira...
Tudo doce e aconchegante, no mesmo sabor
de uma infância bem vivida.
E minha avó ainda benzia. Era a
benzedeira da vila. Sempre arrumava tempo para atender quem batesse em sua porta.
Seu benzimento, sua reza, tudo era
brando. Igual a ela. Uma alquimia de sons e palavras que embalava os
pensamentos e adormecia os pequenos. Crianças chegavam gritando e saíam
dormindo. Isso eu presenciei inúmeras vezes.
E o benzimento era feito. As orações
eram sussurradas enquanto suas mãos costuravam um paninho. Isso mesmo! Dobrava
um pequeno retalho de pano, colocava uma linha comprida na agulha, fazia o nó e
começava a costurá-lo apenas em uma lateral. Conforme rezava, subia e descia a
agulha com delicadeza, inúmeras vezes, costurando sempre de baixo para cima. Rezava,
de vez em quando parava a costura, e docemente perguntava à pessoa que estava
benzendo, ou ao seu responsável:
- O que eu coso?
A pessoa respondia com a explicação do
mal que a afligia: dor nas costas, cólica, dor de cabeça, dor de garganta,
tosse, fraqueza, noites mal dormidas, cansaço, rouquidão...
Então minha avó, pacientemente, explicava
para a pessoa que sempre que ela lhe perguntasse, por repetidas vezes: “o que
eu coso?”, que ela respondesse: “carne quebrada”.
E assim era feito.
Depois que ela ouvia a pessoa falar: “carne
quebrada”, juntava estas palavras à reza e respondia:
- Carne quebrada, osso essssss...
Por mais que eu apurasse meus ouvidos,
chegando mesmo a prender a respiração, isso era tudo o que eu conseguia ouvir.
Depois ia sussurrando palavras e as juntava às preces, e por aí seguia. Minutos
e minutos de reza sussurrada. Cansei de perguntar o que ela dizia, mas ela
nunca me contou.
Esse ritual da costura deveria ser
feito por três dias para a mesma pessoa, e o mesmo paninho seria usado até que
a beirada costurada formasse um caseado firme, tantos os pontos feitos nos
mesmos lugares. Cada pessoa benzida por ela levava seu retalhinho costurado,
com agulha e tudo, e deveria voltar com ele nos outros dois dias. A linha só
seria cortada no último benzimento, e o paninho costurado deveria ser jogado em
água limpa e corrente ou queimado.
E as pessoas voltavam, e as queixas dos
males se esvaíam.
Um
dia, depois de muito perguntar sobre o que ela dizia durante os seus
benzimentos sussurrados, ela me pegou pela mão, colocou-me sentada diante dela,
e docemente inquiriu:
-
Por que quer saber o que eu falo quando estou benzendo? Quer seguir o ofício?
Fiquei
tão assustada com a pergunta que respondi prontamente:
-
Não!
Naquele
‘não’ quase gritado, eu deixei claro que nunca havia pensado nisso. Eu sabia
que aquilo não era um ofício. Minha avó não ganhava absolutamente nada com as benzeduras.
Era uma missão, um dom. Enquanto ela benzia e aliviava as dores e inquietudes
das outras pessoas, ela abrandava o seu próprio coração, alimentava a sua
serenidade. Benzer era vital para ela. Era uma doação sem medida, era uma
entrega. Mas não para mim!
Desse
dia em diante, nunca mais perguntei sobre o que falava enquanto benzia. Eu a
respeitei, e nunca mais apurei meus ouvidos para tentar desvendar os seus
sussurros sibilantes.
Não
havia na vila criança ou adulto que não tivesse passado pelo benzimento de
minha avó. Não tinha dia em que não atendesse os que a procuravam.
Benzia enquanto havia a luz forte do
dia. Mas, depois das seis horas da tarde, nem adiantava chegar. Não atendia em
circunstância nenhuma.
Havia duas coisas que não fazia depois
das seis. Não benzia e não varria a casa. Mesmo que fosse da maior urgência,
era perda de tempo insistir.
E mesmo com a insistência de muitas
pessoas, não se alterava para dizer não. Dizia mansamente uma, duas, quantas
vezes precisasse negar o atendimento.
Um dia chegou um senhor, e perguntou se
ela poderia benzer um cavalo que estava doente. Minha avó se espantou. Não
benzia animais, só benzia pessoas. Se bem que muitas vezes eu a vi passando as
mãos carinhosas nos nossos gatinhos e cachorrinhos, e mexendo os lábios, como
fazia nas rezas do benzimento! Mas, oficialmente, nunca ninguém trouxe bicho
para que ela o benzesse.
Receosa e surpresa com o pedido, ela explicou
ao homem que não benzia animais. Mas, diante da insistência e da aflição do
pobre coitado, penalizada com a situação, disse a ele que iria pensar e lhe
daria uma resposta.
Na verdade, ela não precisaria pensar.
Ela pediu um tempo para conversar sobre isso com o meu avô. Tudo que fosse fora
do combinado teria de passar pelo crivo dele.
Se até mesmo o benzimento de pessoas que
ela fazia ele não encarava muito bem, não acreditava naquilo, criticava o feito
como uma perda de tempo da benzedeira e do benzido! Quando minha avó lhe falou
sobre a benzedura do cavalo, ele ficou transtornado. Esbravejou, vociferou...
O homem do cavalo era conhecido dele.
Ambos trabalhavam como charreteiros da vila. Vida dura. E pobre.
Minha avó, apesar de saber que ele não concordaria
com a ideia desde o momento em que o homem lhe fez o pedido, ficou sem jeito de
dizer não, e agora estava apavorada porque teria enfim que dar a negativa ao
homem.
Ficou tão aflita que não conseguiu
pregar os olhos durante toda a noite. De manhã estava um bagaço... E tinha
ainda a dura missão de dizer não ao homem do cavalo.
Passado das quatro horas da tarde, ela ouviu
as palmas vindas do portão.
Chegou a estremecer. Era chegada a
hora...
Abriu a porta na certeza de que era o
homem do cavalo. E era. O homem e o cavalo!
Minha avó ficou tonta, as pernas
tremiam. A visão que tinha era ainda mais assustadora. O cavalo estava com uma
aparência horrível, muito inchado, nem entendia como ele havia chegado até ali.
O sol estava muito forte, e aquele
homem com aquele cavalo ali, diante dela, do lado de fora da cerca de balaústres...
Nem sabia o que fazer.
A primeira coisa que lhe veio à cabeça
foi abrigá-los do sol, colocá-los no quintal, na sombra da mangueira. E foi
custoso fazer com que o cavalo andasse mais um pouco, que passasse pelo
estreito portão e se ajeitasse na sombra.
Quando tudo se acalmou, minha avó, toda
sem jeito, tentou explicar ao homem que não benzeria o cavalo, mas ele insistia
tanto que ela achou melhor fazer uma oração, uma reza pedindo a Deus que
tivesse compaixão do sofrimento do bicho.
Fazendo isso, rezaria com fé, poderia
ser que o animal melhorasse, e o intuito principal dessa reza mais ligeira era que
eles iriam embora antes do meu avô chegar! Tudo ficaria resolvido rapidamente.
E
ela não faria de qualquer jeito, não! Rezaria com muita fé, mas rapidamente.
Pensando assim foi para perto do
animal. O coitado estava de pé, arrepiado, imenso de inchado, e mantinha os
olhos fechados. Estava exausto com a caminhada até ali.
Minha avó colocou a mão na testa dele,
e nem assim o bicho abriu os olhos. Ajeitou o braço de maneira que toda a palma
da mão tocasse no animal, e começou a rezar. E se entregou à reza. Mesmo
aflita, com pressa, rezou serena.
De repente, em meio à reza, o animal
foi se movendo de mansinho, tremelicando, e tombou de lado.
Foi um espanto danado!
Minha avó deu um passo para trás e não
conseguia entender o que estava acontecendo. Agachou-se perto da cabeça do
animal, os olhos continuavam fechados. Correu os olhos pelo pescoço do bicho e
parou na barriga. O cavalo não estava respirando, a barriga estava imóvel. O
animal todo estava imóvel. Morto!
Isso mesmo, o bicho estava morto.
Estirado, imenso no seu inchaço.
E minha avó, ali. Incrédula, apavorada,
embasbacada, sem ação. Não demoraria nada e meu avô chegaria...
Seria o caos! O que fazer com aquele
animal caído?
A
cada olhada que ela dava para o bicho, parecia que ele se agigantava. Um
elefante no tamanho! E como tirá-lo dali?
O
dono do cavalo permanecia calado. E imóvel. Não tinha o que fazer. Tinha de
pensar. Pensar numa maneira de levar o animal dali.
E
ficaram pensando. O homem, no cavalo, e minha avó, no meu avô. Aflitos...
E
meu avô chegou.
Ainda
na rua, desatrelou o cavalo da charrete, amarrou a corda comprida no cabresto e
soltou o animal na data do outro lado da rua, um terreno vazio onde havia
touceiras e touceiras de colonião. A charrete ficava ali mesmo, na calçada em
frente da casa. Não havia risco. Não havia ladrão.
E
entrou...
Em
poucos segundos, o mundo veio abaixo. Ele gritou, esbravejou, amaldiçoou, praguejou,
destratou... Foi um tendepá! E minha avó, calada. O homem do cavalo,
petrificado. Parecia uma estátua!
Esgotados
os desaforos e desacatos proferidos pelo meu avô, ele e o homem do cavalo
decidiram pedir ajuda a um sitiante que morava perto da vila. Lá havia um
trator muito velho, mas com boa vontade, poderia arrastar o animal dali para
longe.
E
foram atrás do socorro... E ele veio.
Parte
da cerca de balaústres precisou ser derrubada para a operação da retirada do
animal. E minha avó ouviu...
Quando,
enfim, o cavalo foi retirado, a noite já ia alta. E minha avó ainda ouvia...
E
ouviu por muitos dias...
Era
uma pessoa resignada com a vida, submissa ao marido, e muitas vezes eu
imaginava que um dia ela perderia essa resignação e faria o maior escarcéu, a
maior gritaria, colocando fora toda a gama de desaforos que recebera da vida.
Eu
sempre pensava que não era possível ser tão cordata, tão sem réplica. Uma hora
a coisa ia descambar...
Fiquei
na espera.
Ela
se foi, e eu não vi esse espetáculo. Ela era assim. Era de boa têmpera. Tinha
bom cerne, alma nobre, coração manso. Aliás, ela era só coração. Coração nas
mãos que benziam, nos dedos que nos acarinhavam, nos braços que nos embalavam,
na placidez do rosto que nos acalmava. Coração nas cantigas doces que nos
faziam dormir, na serenidade da fala que chegava aos nossos ouvidos, nos olhos
que nos enterneciam, e nos lábios que tanto rezavam por nós.
Era
o coração que ela entregava nos benzimentos, nas rezas sussurradas.
Regina Ruth Rincon Caires
1 comentários:
Escreves com a alma e nos inundas com seu traquejo com nossa Língua. Parabéns!
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