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domingo, 20 de dezembro de 2020

O QUE ACONTECEU AQUI É PRA FICAR SÓ AQUI




Elisa espetou os cravinhos no tender, depois de uma noite banhado 

no caldo de abacaxi com gin. Celebrava tal ritual há anos, quando 

50 minutos depois retirava o assado pincelado de melado 

de um forno brando e paciente, na intenção de espalhar o aroma de 

Natal da infância por todos cantos da casa. Cumpria a liturgia com 

esmero, pois sabia que filha, filho, genro, nora e netos 

chegariam ainda a tempo de respirar o perfume de Natal caramelizado 

e saudarem a festa, dessa vez, no jardim de uma casa em Araras, num 

dezembro atípico, fresco e estrelado como uma quebra da tradição dos 

Natais acalorados e chuvosos. A chegada da família era o estopim da 

alegria programada. As roupas novas, a agitação das crianças em volta 

da árvore natural iluminada que emergia de uma montanha de presentes, 

os gulosos em volta da mesa, o espocar das rolhas de prossecos pescados 

em baldes de gelo eram sinais de uma festa igual mas diferente. 

Naquela noite, pela primeira vez em décadas de tender no ar, 

Elisa não estava ali. 


Maria Cristina espetou os cravinhos no tender, depois de uma noite banhado 

no caldo de abacaxi com gin. Celebrava tal ritual há anos, quando 50 minutos 

depois retirava o assado pincelado de melado de um forno brando e paciente, 

na intenção de espalhar o aroma de Natal da infância por todos cantos da casa. 

Cumpria a liturgia com esmero, pois sabia que filha, filho, genro, nora e netos 

chegariam ainda a tempo de respirar o perfume de Natal caramelizado e saudarem 

a festa, dessa vez, no jardim de uma casa em Nogueira, num dezembro atípico, 

fresco e estrelado como uma quebra da tradição dos Natais acalorados e chuvosos. 

A chegada da família era o estopim da alegria programada. As roupas novas, a 

agitação das crianças em volta da árvore natural iluminada que emergia de uma 

montanha de presentes, os gulosos em volta da mesa, o espocar das rolhas de 

prossecos pescados em baldes de gelo eram sinais de uma festa igual mas diferente. 

Naquela noite, pela primeira vez em décadas de tender no ar, 

Maria Cristina não estava ali. 


Os tempos eram outros. A pandemia havia obrigado o mundo a novos hábitos e as 

máscaras, o distanciamento prudente e os abraços subjetivos regiam o tom do 

Novo Natal. Mas Elisa e Maria Cristina não estavam ali. Estavam em outro tempo, 

que o acaso cuidou de revirar. 


Numa loja de brinquedos na serra, um dia antes. 

- Você? Elisa!

- Você, Maria Cristina!

- Estou boba! O olhar em cima da máscara não disfarça.

- Nem o seu. Continua o mesmo. 

- Tem casa por aqui?

- Alugamos uma em Nogueira.

- A minha é em Araras. Alugada também. Pra fugir da chatice do isolamento.  

- Netos?

- Cinco.

- Coincidência. Eu também. 


Houve um instante eterno de silêncio. Os olhos das duas as transportaram a tempos 

onde os relógios deveriam ter parado em reverência a um tempo que não merecia passar, 

tempos em que nada importava além do tempo a ser vivido. Estavam no casarão no Alto da Boa Vista 

da família uma amiga comum. Festão de casamento. Champanhe, música e jovens interessantes e 

interessados, gente bonita e feliz povoavam os jardins e as mesas bem decoradas. Elisa e Maria 

Cristina se esbarraram ao ar livre, uma derrubando sem querer espumante no vestido da outra. 

- Desculpe, mil desculpas. 

- Eu chamaria de sorte. 


E emendaram ali mesmo, naquele instante desastrado, uma conversa ilimitada e divertida, que 

gerou uma aproximação tão forte, que foram levadas de mãos dadas à pista de dança 

no salão estroboscópico. Começaram se esbaldando numa dança separadas, mas por conta da entrada 

de um DJ romântico, colaram-se. Rosto no rosto, mãos se conhecendo, olhos fechados enxergando 

sensações inusitadas. Ameaçaram um beijo transgressor, talvez inadequado. Tremeram pernas que se 

roçavam ao som de “Je t’aime, mois non plus”, suaram mãos agora entrelaçadas, sentiram perfumes 

mútuos e encharcaram calcinhas.  Sem que combinassem, fugiram para penumbra frondosa do ipê mais 

longe do jardim, o esconderijo mais protegido da efervescência da festa e dos possíveis olhares 

escandalizados. 


E ali mesmo se beijaram sôfregas, se desnudaram como podiam, subiram saias, abriram decotes, 

se conheceram uma por dentro da outra. Gozaram num tempo só, como se únicas fossem, princesas, 

soberanas, bruxas, molecas, genuínas, purificadas. Ofegantes e perplexas, juraram como se ensaiadas:

-  O que aconteceu aqui é pra ficar só aqui. 


E cumpriram a jura. Os tempos não permitiam avançar no tempo. E constituíram dívidas de um 

tempo não vivido, mas nunca anistiadas. Como credoras uma da outra, foram levadas a viver 

outros tempos, outros mundos, outras vidas, até que se encontraram por acaso, na tal loja

de brinquedos. Talvez num tempo tardio, talvez num tempo que não fosse o tempo do mundo onde 

o tempo gira com a normalidade do tempo ordinário como é.  


E assim se viram pairando na celebração familiar do Natal, nas mesas postas em cada um de 

seus jardins, tão pertos, tão distantes, com cada fundo do peito dizendo por um momento 

que não pertenciam ao tempo daquele aqui e agora, preenchido pela algazarra dos netos, 

do rasgar dos presentes, das palavras gentis, dos votos de felicidade dos maridos.  

Elisa e Maria Cristina não estavam ali.


Estavam juntas, no beijo que outros tempos não permitiram, nos abraços não acontecidos, 

nas calcinhas secretamente molhadas, nos corpos nus entrelaçados, no êxtase que ficou 

com gostinho de quero mais. 


Foi o que sentiram ao mesmo tempo Elisa e Maria Cristina 

na hora de fatiar o tender diante da família feliz.  


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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