"(...) ‘homem nenhum bate em mulher, Hilda, eles batem na própria verdade quando ela não é o que eles querem’ (...) ‘Antônia, eles batem na mentira, mas é a gente quem apanha’ (...)
Os homens daqui são assim mesmo, (...) dão nome pra tudo o que é nosso. (...) São só homens, filha, homens obrigados a fazerem exatamente o que querem’.”
(Trechos do romance Meu corpo ainda quente, de Sheyla Smanioto)
O Reinaldo me chamou pro velório. Ligou
hoje às 7 da manhã. “Estou muito triste, Carlão. É o amor da minha vida.” Quase
não venho ao cemitério e não queria sair de casa tão cedo, ainda mais no último
domingo do ano, durante o meu recesso; mas tive de vir dar uma força.
Meu amigo está mesmo abalado. Fica
o tempo todo junto da urna mortuária. Óculos escuros, lágrimas salpicadas na
camiseta preta, barba por fazer. Assoa o nariz de vez em quando, como que limpando
a dor que escorre. Só se afasta um pouco do corpo morto da Gilda quando vai
receber o carinho vivo dos amigos.
Vejo vários homens no velório. Quase
todos conhecidos. Geralmente nos encontramos na empresa, no campinho de futebol
ou no bar. Às vezes na saída da igreja. Nós nos comportamos bem durante o
velório. Estamos e parecemos todos sóbrios. Entre o viúvo e os amigos, são
permitidos abraços calorosos. Eu mesmo, quando cheguei, afaguei as costas dele um
tempão. Nossos rostos ficaram bem próximos. Aqui não xingamos, falamos baixo,
não zoamos. Por enquanto, não ouvimos nem contamos nenhuma piadinha machista. Acho
que o enterro também vai ser contrito, civilizado.
De mulher, até agora só vejo a
Gilda mesmo, que talvez nem quisesse ter vindo. Ela está bem no centro da
capela para que possamos prestar esta última homenagem. Precisamos consolar nosso
querido Reinaldo, que agora está só e chora a perda.
A morte da esposa parece ter despertado
novas rugas no rosto dele. Dizem que o sofrimento envelhece mesmo,
principalmente os homens bons. Pelo menos a mulher continua estampada nas duas filhinhas,
ambas muito parecidas com a mãe.
Lembro que há menos de um mês a Gilda
e o Reinaldo dançavam juntos, animados, na festa de um ano das gêmeas. Ensaiaram
passos de um funk engraçado e
apresentaram pras meninas, que davam pinote no carrinho de bebê. Uma família
tão bonita! Agora desfeita. Como é que uma mãe jovem, atleta, estudada, servidora
da Justiça, foi capaz de morrer de repente e deixar órfãs tão pequenas? Será
que o Reinaldo vai conseguir cuidar delas sozinho, coitado?
Nunca tinha visto um defunto nu. É
a primeira vez. Gilda está sem nenhuma roupa. Rosto à mostra e intimidades
expostas sob o tampo de vidro. É um caixão com fundo e lados de madeira, mas a
frente toda transparente.
— Quem preparou a Gilda, Reinaldo?
Você acha certo ela ser enterrada desse jeito? — pergunto.
— Linda, né, Carlão? A mulher mais
linda que já tive e, pra ser bem franco, a mais gostosa e a mais especial.
Nunca vou esquecer essa mulher. Pena ela ir embora tão cedo.
— Pelo menos joga um manto em cima
do caixão, cara. Cobre a sua mulher.
— Não. Sempre gostei mais dela
assim do que vestida. O que é bonito tem que ser exibido, não é mesmo? Pensei
em cada detalhe.
— Estranho. A funerária não foi
contra expor a finada assim?
— A empresa faz o que o cliente
manda. É só pagar. Eu pedi pro moço da funerária, e ele atendeu tudo. Passou o
batom rosa nos lábios de cima e até aparou os pelos dos lábios de baixo. Só não
raspou as axilas dela. O sujeito disse que é porque a posição estava
meio difícil. A morte deixa as bonecas com articulação prejudicada. Ah, deixa
pra lá. Ninguém vai ver os tais sovacos. E eu nunca mais vou poder nem tocar. Nunca mais.
— Nunca pensei que você pudesse...
— Experimenta enterrar a Tânia peladona
também — ele brinca, parecendo esquecer o sofrimento por alguns instantes e até
esboçando um sorriso.
Que bobagem. A minha mulher é
forte e não vai querer morrer cedo, assim como fez a Gilda.
Quero ir embora, mas preciso ficar
um pouco mais. Acho que vou ter que acompanhar
o sepultamento. Sinto pena do meu amigo. Será que vai suportar a solidão?
O Reinaldo não sabe, mas no
passado, há muitos anos, a Gilda dele já foi minha. Conheci a falecida bem de
perto, por cima, por baixo, dentro e muito e fundo. Ela era quente mesmo e
tagarela e espontânea, lembro bem. Me incomoda ver essa mulher nua de novo,
só que nesta situação inerte. Murchou muito nova e está completamente nua. Coisa esquisita.
Não pretendo ficar fitando o corpo
da morta. Respeito o meu amigo. Mas enquanto o Reinaldo recebe o Beto e o
Muniz, lá na entrada da capela, aproveito para olhar, pela última vez, o rosto,
os seios e os braços da minha ex-amante. Essa diaba continua linda. Só não encaro suas partes mais
secretas porque, desculpe a franqueza, periga eu armar a barraca em pleno
velório.
Eita. Há pequenas marcas roxas no
pescoço e — será que só eu acho estranho? — três sulcos profundos perto do
peito, embatumados/camuflados por muitas florezinhas brancas miúdas.
— São miosótis brancos, mais
conhecidos como não-me-esqueças. O nome da planta não é sugestivo? Claro que eu
nunca vou esquecer essa mulher, Carlão. Nunca.
Uma cor gelada e mais escura vai
tomando o corpo da Gilda. Logo estará guardado na terra. A Gilda morreu mesmo
de quê? Ainda não sei.
— Reinaldo, você seria capaz? Você tem alguma culpa nessa
história?
Ele não responde. É um homem de
bem. Só sofre, abatido. Será que só eu acho estranho? Sereno e resignado em sua
desgraça, o viúvo continua velando o corpo nu de sua amada.
Maria Amélia Elói
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