Tendo ficado viúvo
bastante novo, ainda lhe passou vagamente pela mente a ideia de voltar a casar,
sobretudo para ter alguém que o ajudasse com os filhos. Mas não conhecia ninguém
que o tentasse e, a avaliar pelo que sucedera com alguns conhecidos seus, a
combinação de uma nova esposa com filhos antigos dava muitas vezes mais problemas
do que os que resolvia, sobretudo se ela insistisse em ter filhos ou, pior
ainda, se já os tivesse.
Contratou, pois, uma
empregada para cuidar da casa e das refeições e meteu os filhos num bom
colégio, onde tinham aulas de manhã e à tarde, não havendo pois o problema de
onde os deixar fora do horário escolar. E apesar de ter um horário de trabalho
muito sobrecarregado, fazia questão de sair a tempo de os ir para casa à hora
em que eles saíam do colégio e libertava totalmente os fins de semana para os
levar às inúmeras atividades desportivas e artísticas que eram a paixão do
momento e que, infelizmente para o Sr. Jeremias, estavam sempre a mudar. Tudo
isto implicava, claro, muitas noitadas para conseguir pôr o trabalho em dia,
mas não queria que os filhos fossem como muitos dos seus amigos, crianças criadas
praticamente sozinhas porque os pais estavam sempre ausentes no emprego ou em
distrações.
Ganhou até uma certa fama
de misantropo por recusar a maior parte das saídas que lhe propunham, pelo
menos até os filhos terem idade suficiente para saírem também com os respetivos
amigos.
E apesar de uma certa inconstância
nos seus gostos, que se calhar até era normal, foram crianças sem problemas e
bons alunos. Após os estudos universitários da praxe, concluídos sem demasiado
brilho mas com notas razoáveis e sem terem arranjado grandes problemas, ambos
arranjaram logo um bom emprego e saíram prontamente de casa para apartamentos de
que lhes ofereceu o valor da entrada.
E o Sr. Jeremias ficou,
pois, sozinho, pela primeira vez em muitos anos. Começou por estranhar a
solidão no amplo andar que sempre lhe parecera demasiado pequeno, graças em
grande parte ao corrupio constante dos amigos dos filhos. Mas em breve se
habituou e apesar das indiretas – e às vezes mais do que diretas – dos filhos
para que vendesse o andar ou o alugasse, uma vez que estava agora numa zona
privilegiada da cidade e renderia bom dinheiro, deixou-se ficar no seu cantinho,
criando novos hábitos e rotinas. Limitou-se apenas a remodelar a casa, ao fim
de tantos anos e com um uso tão intenso estava um pouco estafada e a precisar de
uma modernização. E como a empregada de muitos anos decidira deixar de
trabalhar, contratou uma nova por apenas umas horas por semana para a limpeza e
roupa, comendo fora ou mandando vir as refeições.
Os anos foram passando,
os filhos casaram, vieram os netos e sem que desse por isso foi surgindo um
certo distanciamento entre eles. A filha sempre fora mais chegada à mãe em
miúda e depois da sua morte nunca se chegara do mesmo modo ao pai. Por isso, mesmo
quando ainda vivia em casa, pouco ou nada conversavam, limitando-se a dizerem o
indispensável. E tinha muito pouco em comum com o filho, muito amigo de
desporto e da farra desde jovem, atividades que não lhe interessavam
grandemente.
De reuniões em grupo por
ocasião de eventos festivos, como anos, Páscoa e Natal, passaram gradualmente a
uma mera visita rápida uma vez por mês e à ceia do dia de Natal dada à vez por cada
um dos filhos, uma vez que os netos preferiam festejar com os amigos fora de
casa e os pais não alinhavam muito em festas tradicionais.
Como tudo o mais na sua
vida, o Sr. Jeremias habituou-se rapidamente à nova realidade, passando os seus
dias contente e feliz a ler, a ver alguma televisão, a dar uns passeios “higiénicos”
pelo bairro e a organizar a coleção de selos que tinha desde miúdo.
Infelizmente, e como bem
disse o poeta, a vida é feita de mudanças e uma queda desastrada na cozinha
resultou na fratura de uma anca e garantiu ao Sr. Jeremias uma longa estadia no
hospital e o uso de uma bengala para o resto da vida. Mas não foi só isso. Os
filhos uniram-se e com o apoio do médico de família convenceram-no de que não
poderia continuar a viver sozinho. Até lhe arranjaram um lugar num lar bastante
razoável, numa vila dos arredores.
Mas ao contrário do que
imaginavam, tendo-o “atacado” num momento em que estava com bastantes dores e
deprimido, o Sr. Jeremias não se deixou ficar, apesar de saber que até tinham bastante
razão no que diziam – e aqui para nós, temia vir a morrer sozinho em casa,
sendo encontrado apenas quando fosse o dia da empregada. Ou pior ainda, ter
nova queda e ficar para ali estendido sem ter quem lhe acudisse sabe-se lá por
quanto tempo.
Mas se tinha de acabar a
vida num lar, então seria um à sua escolha. E foi o que fez. Optou por uma
residência luxuosa em plena cidade, onde, a troco da sua substancial reforma, tinha
direito a uma suíte de quarto, sala e banho, que podia mobilar à sua vontade,
fisioterapia, refeições à escolha (dentro dos limites definidos pelas dietas
atribuídas a cada residente, claro), enfim, materialmente era quase tão bom
como se estivesse em casa.
O filhos ficaram
desiludidos, claro, já imaginavam um bom excedente mensal a cair na conta do
pai, que um dia seria deles. Pior ainda, com o pretexto de que o lar era afastado
do bairro onde sempre vivera e de que tinha saudades, o Sr. Jeremias contratou
os serviços de um carro com motorista para o levar semanalmente à sua zona e
que estava também disponível para outros passeios, longos ou curtos, que lhe
apetecesse dar. A sua intenção era passar o menos tempo possível em contacto
com os outros residentes do lar, achava-se demasiado velho para criar novas
ligações. E usava, para essa e outras despesas adicionais, como um bom vinho às
refeições, por exemplo, as suas chorudas poupanças.
Mas há um limite para os passeios
que se podem dar. Por isso, muito a contragosto, inicialmente, o Sr. Jeremias lá
foi passando alguns momentos na sala de convívio do lar, sobretudo quando o
tempo estava mau e não apetecia mesmo nada sair. E pouco a pouco, quase sem dar
por ela, passava ali várias horas por dia.
Para isso muito contribuiu
a Sra. Emília, a decana lá do sítio, uma pessoa muitíssimo ativa apesar dos
seus 80 e muitos anos, que adotara como missão pessoal fazer com que os “novatos”
criassem novas amizades e interesses. Uma pessoa menos simpática seria
considerada mandona e metediça. Mas era impossível alguém zangar-se com ela e
aos poucos o Sr. Jeremias lá foi convivendo mais, acabando mesmo por fazer
parte do núcleo íntimo da Sra. Emília, uma grande honra não concedida a
qualquer um.
Começou até a oferecer
esporadicamente uma saída ao grupinho, alugando para isso uma espécie de
miniautocarro. E descobriu, com alguma surpresa, que se divertia bem mais
acompanhado do que sozinho.
E chegou finalmente o
primeiro Natal desde que abandonara a sua casa. Nessa época do ano o lar dividia-se
claramente em dois grupos mais ou menos antagónicos, os que iam passar as
Festas a casa, ou seja, com a família, e os que, por terem a família longe,
estarem sós na vida ou desavindos com os seus, passavam ali a Consoada. Era uma
época de grande azáfama para a Sra. Emília, ocupadíssima a tentar acalmar as inevitáveis
tensões entre os que saíam e os que ficavam.
O seu grupinho era totalmente
constituído por “permanentes”, a única possível exceção poderia ser o Sr.
Jeremias que ainda não decidira o que iria fazer. O filho, a quem calhava a vez
de recebê-lo para a ceia de Natal, só costumava convidá-lo oficialmente uns
dias antes.
E teve de facto a visita
do filho umas duas semanas antes da grande data. Estranhou vê-lo entrar com um
presentinho nas mãos, costumavam trocar as prendas depois da ceia de Natal, mas
podia até nem ser para ele. Mas era.
Com alguns rodeios, o
filho acabou por lhe dizer que não o poderia receber para a ceia uma vez que
decidira tirar uns dias de férias na neve. Mas a irmã ficara encarregue de o
convidar, apesar de não ser a sua vez. Enfim, nada de especial, só uma ligeira
alteração de planos.
Uns dias depois, quase em
cima do acontecimento, apareceu finalmente a filha para o convidar para o
Natal. Começou logo por lhe dizer que os filhos não estariam presentes, iam
passar uns dias fora com amigos. Mais ainda, não seria exatamente uma festinha
familiar, tinham decidido juntar-se a dois casais amigos e fazerem uma ceia melhorada
para que todos contribuiriam. O pai era bem-vindo, claro, mas não devia
admirar-se se o ambiente não fosse muito a seu gosto. Para além de ser a única pessoa
de idade presente, só dificilmente teria algo em comum com os outros convidados.
Mas a comida, apesar de diferente do tradicional nessa noite festiva, seria certamente
boa, encomendada a uma das melhores empresas de catering da cidade. E podia
vir-se embora quando quisesse, chamariam simplesmente um Uber.
O Sr. Jeremias deixou-a
falar à vontade, sem qualquer comentário ou pergunta, mesmo em alturas em que
se via claramente que a filha estava à espera de o ouvir queixar-se ou dizer
algo contra os seus planos. Mas nem uma palavra disse sobre o assunto,
limitou-se a descrever os seus últimos passeios e a perguntar por um ou outro
dos seus antigos vizinhos, apesar de saber perfeitamente que a filha nunca se
lembraria de os contactar, achava-os abaixo do seu nível.
Já a filha estava de
saída, tendo combinado mandar buscá-lo ao início da noite, quando o Sr. Jeremias
surpreendeu ambos ao dizer-lhe que não valia a pena incomodar-se, não iria. Tinha
sido convidado por uns novos amigos para uma festa de Consoada e tencionava
aceitar o convite. E não pôde impedir-se de notar o ar de alívio da filha, que
prontamente disfarçou e lhe disse que ficava bem feliz por o pai estar a criar
amizades.
E foi assim que o Sr.
Jeremias se viu à porta da sala de convívio de um lar de idosos na noite de
Natal, decidido a fazer boa cara ao que viesse a acontecer. Mas quando entrou e
foi acolhido com grandes sorrisos de satisfação e muito carinho e viu a
decoração que ajudara a criar e as caras alegres que enchiam quase metade da
sala, teve a maior surpresa de toda a sua vida: sentiu-se em casa! Sentiu-se em
família!
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