Os
que sabiam da sua prisão, incluindo o advogado bem pago que usava para os seus
negócios, achavam que era mais uma questão política ou que se esquecera de
“untar” as mãos certas, sendo uma mera questão de tempo – e de dinheiro – até
tudo voltar à normalidade. O advogado garantira-lhe que estava tudo encaminhado
para daí a uns dois dias no máximo voltar ao seu sumptuoso apartamento,
possivelmente até com um pedido de desculpas por aquele lamentável
“mal-entendido”.
Mas
ele sabia que não seria bem assim. É que advogado, noiva, amigos e conhecidos
desconheciam um facto fundamental: Henrique Gonçalves não existia!
Não,
não era uma dúvida existencial, a pessoa naquela cela era de carne e osso e estava
bem viva. Mas não era Henrique Gonçalves, personagem inventado num outro país
juntamente com toda a documentação que lhe dera origem.
Passo
a explicar. A pessoa que todos conheciam como Henrique Gonçalves nascera e
vivera muitos anos como António Gomes numa outra cidade, num outro país, até
num outro continente.
De
uma família modesta mas dotado de uma inteligência aguçada para o negócio, cedo
pôs a uso as táticas do pai, vendedor de chaços, perdão, de carros usados, mas
com mais estilo e muito mais subtileza. As “vítimas” do pai suspeitavam desde o
início que havia fortes hipóteses de serem enganadas, as dele nunca o chegavam
a saber e quando as coisas corriam mal culpavam tudo e todos exceto ele,
agradecendo-lhe até frequentemente os esforços que fizera para inverter a
situação.
Aos
25 anos era já milionário, pelo menos no papel, e vivia num luxuoso e caríssimo
apartamento na melhor zona da cidade, frequentando a alta sociedade financeira
– porque para a outra não passava de um arrivista.
Na
inauguração de uma ala de um museu para que fora convidado graças a um chorudo
donativo viu pela primeira vez a jovem mais apetecida da verdadeira elite, a
tal que lhe virava as costas, tendo decidido de imediato a sua conquista. E
como tudo a que se dedicava, em breve teve êxito, graças sobretudo a ter
descoberto que, apesar dos ares que se dava, a família da jovem tinha mais
estatuto que dinheiro.
Não
se pode dizer que o casamento fosse feliz nem era esse o seu propósito. Mas
abrira-lhe as portas a todo um setor da sociedade que sempre lhe estivera
vedado e, graças ao seu “faro”, a novos alvos para as suas negociatas.
Os
anos foram passando, assistindo ao nascimento dos dois filhos da praxe – um
rapaz e uma rapariga – educados nos melhores colégios e que mal conhecia,
exceto quando era altura de pagar um capricho ou tentar apagar um pecadilho. A
vida profissional decorria o melhor possível, num verdadeiro malabarismo de
novos clientes que ajudassem a acalmar os antigos e a fazer face às suas cada
vez maiores despesas.
Sabia
que isto não poderia durar para sempre, bastaria uma pequena crise nos mercados
para fazerem desmoronar os vários castelos de cartas que ia mantendo de pé, mas
isso estaria no futuro e António vivia exclusivamente para o presente.
Mas
um pequeno ataque cardíaco que o enviara por uns dias para uma clínica
caríssima onde lhe foi vedada qualquer tipo de atividade forçou-o a meditar na
vida que levava e que julgava ser a que queria. Confrontado pela primeira vez
com a sua mortalidade, António meditou muito a sério na futilidade da sua vida,
no casamento sem amor, na mulher e filhos que viam nele apenas um modo de
sustento de luxos e caprichos, enfim, na finalidade do que fazia. O facto de os
mercados andarem tremidos e de saber que lhe seria cada vez mais difícil manter
no ar as muitas bolas que manuseava também ajudou.
Resumindo,
António decidiu que era altura de recomeçar do zero. Nos dias que se seguiram à
estadia na clínica pôs em marcha todo o processo que lhe daria uma nova
identidade, permitindo-lhe iniciar uma nova vida longe dali, quem sabe, uma
vida mais autêntica e feliz.
Recebeu
a documentação da sua nova identidade e saiu do país mesmo a tempo, uma queda
na Bolsa pôs a nu as muitas falcatruas que cometia há anos e o facto de os bens
da sua empresa não chegarem para cobrir nem um décimo do que devia aos
investidores. O resto dissipara-se em despesas loucas e no aparato da vida que
a família levava. Foi emitido um mandato de captura internacional, a mulher
voltou para a família e os filhos passaram de repente de meninos “bem” que
todos adulavam a filhos de um trafulha.
O
mandato não deu resultados, António Gomes parecia ter-se evaporado. Não admira,
vivia agora como Henrique Gonçalves na modesta capital de um pequeno país do
outro lado do mundo, um lugar nada provável para quem sempre vivera de
manipular fundos e mercados.
Inicialmente,
foi realmente um recomeço. António, perdão, Henrique arranjou um modesto
emprego de diretor financeiro de uma pequena empresa – bom, era mais um
faz-tudo nas áreas comerciais, financeiras e de marketing da empresa – e
investiu uma pequena parte dos fundos que conseguira levar consigo num pequeno
apartamento numa zona razoável, mas não de luxo da cidade.
Frequentava
cafés e restaurantes modestos, vestia-se em lojas medianas, enfim, vivia como
nunca tinha vivido. Fez até alguns amigos com quem ia ao futebol e outros
desportos – nas bancadas, não nos camarotes da presidência ou outros locais
destinados a gente importante. Começou até um pequeno namoro com a irmã de um amigo,
uma rapariga modesta e trabalhadora, razoavelmente bonita, que nunca lhe
chamaria a atenção na sua antiga vida.
Podia-se
até dizer que era feliz, apesar de não ter exatamente um termo de comparação:
passara toda a vida a almejar algo que ainda não possuía e que desprezava assim
que o alcançava.
A
mudança começou de um modo quase inócuo. Um amigo anunciou um dia no café que
ia passar uns dias a uma estância de luxo graças a um pequeno investimento que
fizera. Curioso, foi ver de que se tratava e uma coisa levou a outra e em menos
de nada estava ocupadíssimo a comprar e a vender ações e participações de todo
o tipo, ganhando e perdendo quantias cada vez maiores e descuidando cada vez
mais o emprego.
Ao
fim de algum tempo decidiu que essa vida dupla não podia continuar e
despediu-se com o pretexto de que iria trabalhar por conta própria em
investimentos. E assim fez.
Aos
poucos, hábitos antigos e que julgara esquecidos voltaram à tona. O modesto
apartamento em que vivia deixou de o satisfazer, os amigos davam-lhe tédio, a
namorada era demasiado corriqueira, enfim, tudo na nova vida deixou de lhe
agradar.
Mas
mesmo num país com um custo de vida bem menor os seus rendimentos honestos não
chegavam para o pôr no topo. Rapidamente aprendeu a movimentar-se no mundo de
subornos, trocas e pequenas desonestidades da sua nova pátria. Com o muito que
sabia, em breve se tornou um tubarão rei num mundo de pequenos tubarões, com
uma vida de luxo de fazer inveja a qualquer um.
Talvez
fosse esse o problema. Alguém não devia ter gostado de ser suplantado por um
estrangeiro, daí a sua prisão por algo que fizera milhares de vezes com total
impunidade. E sabia que assim que metessem as suas impressões digitais na rede
o velho mandato em nome de António Gomes, que ainda não prescrevera, viria à
tona e seria o seu fim.
Mas
talvez não estivesse tudo perdido. Se conseguisse que o soltassem, mediante uma
avultada fiança, claro, antes do aparecimento do mandato, poderia dar a volta à
situação. É que quando comprara a identidade de Henrique Gonçalves, num ataque
de paranoia comprara uma outra a um outro intermediário. Assim teria sempre uma
identidade de reserva caso um dos fornecedores fosse apanhado antes de ele sair
do país.
Levara
consigo toda a documentação dessa segunda identidade, por isso, se conseguisse
sair daquela cela poderia ir à socapa até à cidade mais próxima, embarcar com
novo nome e recomeçar num outro país.
Sim,
daria instruções ao advogado para que pagasse o que fosse preciso para ele sair
dali. Já antevia até, com prazer, a nova vida que teria, modesta, discreta, sem
voos altos que pudessem atrair as atenções para um tal Ricardo Costa!
Luísa Lopes
Imagem de Reimund Bertrams por Pixabay
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