Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

O equívoco




O professor passou o enunciado: “Você está na areia da praia. 

O mar está revolto e você percebe um braço que aparece e desaparece 

entre as ondas. Inspire-se”. Eu tinha uma hora e meia para a prova de redação. 

E saí escrevendo.   


“O dia amanheceu morno, bom para uma corrida na areia da praia. 

O sol tímido logo foi engolido por nuvens cinzentas, que por alguma 

implicância, começaram soltar pingos grossos, ao sabor dos ventos 

cruzados, os mesmos que deixaram as ondas batendo cabeça. Lembro do 

meu tio oficial de Marinha dizendo que, quando esse fenômeno se dá, 

chama-se de mar encarneirado, tamanha a semelhança das espumas brancas 

com um rebanho de ovinos à solta. 


O espetáculo da natureza me paralisou. De tanto contar carneirinhos, 

tal numa noite insone, vejo algo se debatendo. Uma onda subversiva? 

Um peixe voador? Uma arraia em sofrimento? Um golfinho arteiro? 

Um sinal do sobrenatural?


Não. Um braço. Uma pessoa se afogando, dizem minhas certezas, quando 

já estou com água pela cintura, apanhando da arrebentação, mas decidido 

a por em prática minha breve vivência de escoteiro do mar. E disposto, 

parto a nadar em direção ao reboliço que aparece e desaparece entre os 

inquietos carneirinhos, até que some de vez, me fazendo girar o olhar em 

quase desespero pela frustração. 


Mas eis que uma força me surpreende e me submerge, levo uns tapas, sinto 

arranhões no pescoço quase sufocado, mas ainda guardo forças para emergir 

com uma pessoa pendurada em mim. Instintivo, consigo dominar o que não era 

um peixe grande, um polvo de Júlio Verne, uma lula gigante desembestada. 


Era uma moça loura aparentando pouco mais do que minha idade. Do jeito 

que deu, consegui levá-la à areia, com meu braço direito fazendo uma gravata 

suave no seu pescoço e o outro vencendo ondas furiosas e a arrebentação. 

Chegamos exaustos, ela pior, com evidentes sinais de afogamento, porém viva, 

pulsando, pupilas com diâmetros normais. 


A praia estava vazia. Arrisquei a respiração boca a boca, tapinhas no rosto 

e massagem no peito. Instantes depois ela jorrou um aguaceiro. 

E eu me senti um herói. 


Àquela altura os salva-vidas haviam chegado, e ao colocá-la na maca, viva e 

assustada, travamos os primeiros contatos verbais. Com forte sotaque, ouvi 

que era uma austríaca, de nome Brigitta, estudante em Campinas 

e que viera conhecer as areias desertas da Barra da Tijuca. No rápido percurso 

da maca, tentei dizer o meu nome, João Pedro, mas acho que ela não entendeu. 

No entanto, o sorriso que me disparou antes de fechar a porta da ambulância 

foi desconcertante.”

 

O professor me chama à sua mesa vetusta.

- João Pedro, certo?

- Sim, senhor.

- Pois bem, meu rapaz. Sua redação é um grande equívoco. 

- Sim, professor.

- Você não prestou atenção no enunciado da questão. 

Olhe aqui: não é braço que está escrito. É barco. Bar-co. Sabe o que é barco?

- Sim, é verdade, professor. Errei. 

- Errou feio. E acabou escrevendo essa xaropada.


Não sei se as palavras do professor foram determinantes para que não escolhesse 

a escrita imaginária na minha vida profissional. Sei lá. 


Hoje tenho Pós Doutorado em Geografia, sou professor de Climatologia, palestrante 

mundo afora e ativista de uma ONG focada nas ameaças do ser humano ao meio 

ambiente, e suas consequências desastrosas para o planeta. 


Não há um dia sequer que não tenha uma vontade danada de saber 

como vai Brigitta.   


Share


José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20