O professor passou o enunciado: “Você está na areia da praia.
O mar está revolto e você percebe um braço que aparece e desaparece
entre as ondas. Inspire-se”. Eu tinha uma hora e meia para a prova de redação.
E saí escrevendo.
“O dia amanheceu morno, bom para uma corrida na areia da praia.
O sol tímido logo foi engolido por nuvens cinzentas, que por alguma
implicância, começaram soltar pingos grossos, ao sabor dos ventos
cruzados, os mesmos que deixaram as ondas batendo cabeça. Lembro do
meu tio oficial de Marinha dizendo que, quando esse fenômeno se dá,
chama-se de mar encarneirado, tamanha a semelhança das espumas brancas
com um rebanho de ovinos à solta.
O espetáculo da natureza me paralisou. De tanto contar carneirinhos,
tal numa noite insone, vejo algo se debatendo. Uma onda subversiva?
Um peixe voador? Uma arraia em sofrimento? Um golfinho arteiro?
Um sinal do sobrenatural?
Não. Um braço. Uma pessoa se afogando, dizem minhas certezas, quando
já estou com água pela cintura, apanhando da arrebentação, mas decidido
a por em prática minha breve vivência de escoteiro do mar. E disposto,
parto a nadar em direção ao reboliço que aparece e desaparece entre os
inquietos carneirinhos, até que some de vez, me fazendo girar o olhar em
quase desespero pela frustração.
Mas eis que uma força me surpreende e me submerge, levo uns tapas, sinto
arranhões no pescoço quase sufocado, mas ainda guardo forças para emergir
com uma pessoa pendurada em mim. Instintivo, consigo dominar o que não era
um peixe grande, um polvo de Júlio Verne, uma lula gigante desembestada.
Era uma moça loura aparentando pouco mais do que minha idade. Do jeito
que deu, consegui levá-la à areia, com meu braço direito fazendo uma gravata
suave no seu pescoço e o outro vencendo ondas furiosas e a arrebentação.
Chegamos exaustos, ela pior, com evidentes sinais de afogamento, porém viva,
pulsando, pupilas com diâmetros normais.
A praia estava vazia. Arrisquei a respiração boca a boca, tapinhas no rosto
e massagem no peito. Instantes depois ela jorrou um aguaceiro.
E eu me senti um herói.
Àquela altura os salva-vidas haviam chegado, e ao colocá-la na maca, viva e
assustada, travamos os primeiros contatos verbais. Com forte sotaque, ouvi
que era uma austríaca, de nome Brigitta, estudante em Campinas
e que viera conhecer as areias desertas da Barra da Tijuca. No rápido percurso
da maca, tentei dizer o meu nome, João Pedro, mas acho que ela não entendeu.
No entanto, o sorriso que me disparou antes de fechar a porta da ambulância
foi desconcertante.”
O professor me chama à sua mesa vetusta.
- João Pedro, certo?
- Sim, senhor.
- Pois bem, meu rapaz. Sua redação é um grande equívoco.
- Sim, professor.
- Você não prestou atenção no enunciado da questão.
Olhe aqui: não é braço que está escrito. É barco. Bar-co. Sabe o que é barco?
- Sim, é verdade, professor. Errei.
- Errou feio. E acabou escrevendo essa xaropada.
Não sei se as palavras do professor foram determinantes para que não escolhesse
a escrita imaginária na minha vida profissional. Sei lá.
Hoje tenho Pós Doutorado em Geografia, sou professor de Climatologia, palestrante
mundo afora e ativista de uma ONG focada nas ameaças do ser humano ao meio
ambiente, e suas consequências desastrosas para o planeta.
Não há um dia sequer que não tenha uma vontade danada de saber
como vai Brigitta.
2 comentários:
Ótimo equívoco! Conheço uma Brigitta que se equivocou na hora do embarque para a Suíça, dormiu de bêbada o vôo inteiro, e chegou a Roma sem querer ver o Papa.
Salvem nossos sonhos! E o romantismo, caro mestre!
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