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quinta-feira, 19 de novembro de 2020

84ª Carta ao Além.

 



Estou sentada, me retorcendo ao avesso, querida Deusa; e até supus não conseguir escrever. Mas eis que me envolve uma vontade danada, e, para sair do lugar-comum, do marasmo em que me encontro, reúno – maldispostas, é verdade – essas porções de vontade, para não deixar que se dilacerem, por si mesmas, no fundo de meu ser.

***

Não calculo bem as horas, com essa idade toda; elas me fogem pelas mãos frias. Parece que tateei as linhas do caderno por toda a manhã. Ponderei esmiuçar aqueles dias ensolarados da mocidade; mas, talvez, deponham contra mim a memória. Tenho a cruel sensação de que não fiz o que devia.

Ontem, depois de alguns meses enclausurada, me surgiu, com um semblante de serenidade, o sempre simpático senhor Cipriano. Há tempos não nos víamos – desde, imagino, o começo do ano, quando ele andava com seu netinho do outro lado da rua e acenou para mim.

Nesse bendito encontro, ele me falou umas boas palavras, como se sentisse a minha intranquilidade – de fato, para bom apreciador dos traços humanos, não seria difícil perceber. Tratou de se chegar, sem dar a mão em cumprimento, claro; contudo, abraçava-me com os olhos e a voz. Nem sei em que tempo senti essa espécie de doçura, que tanto falam, da amizade. Logo, rindo, disse: “Eu me arrependo do que fiz, dona Creuza. Se fiz, posso ao menos me arrepender”. No contexto em que estávamos, notei que falava mais para puxar assunto. O pensamento, traiçoeiro, voou para a dita mocidade. Acho que ele alcançou a minha presença, não-presença, volátil e se despediu, colocando-se à disposição para o que fosse preciso; compras e afins, em mercados, etc. Sendo também do grupo de risco, pela idade avançada, bem se viu mais moço e preparado para enfrentar o tal do Covid.

Veja só, Deusa, minha amiga, jamais cogitei ultrapassar a solidão que já havia. Sei que, no tempo de mamãe, arrasou essa terra a gripe espanhola. Ela mesma contava, nos seus momentos de lucidez, o que teria suportado, com parentes e amigos vitimados da noite para o dia. Um clamor geral. Não existiam meios; compreendo que bem pior do que agora. Mas a morte em progressão arrasa os sentidos, desequilibra a razão para suplantar a dor.

A memória, como contei, me prega peças. Ia me esquecendo de dizer que o senhor Cipriano, no auge da pandemia, bateu em minha porta insistentemente. Na hora, não percebi a gravidade, e o cuidado que teria por mim. Depois de alguns minutos, talvez mais de meia hora, atendi-o, sem colocar meu corpo na varanda. Perguntou se eu estava bem e se precisava de algo. “Não, querido. A Maria, minha sobrinha, ficará comigo uns tempos. Ela está encarregada de comprar o necessário. Muito agradecida”.

Bem, na verdade, não sou de mentir; mas, dada a circunstância e a persistência, resisti por medo de ser invadida. Maria existe, não é invenção de minha cabeça. Ela mora a quilômetros daqui. Não ficou comigo; entretanto, mandava sempre os preparados: comidas congeladas e algum suprimento extra. É uma menina boa, prole de minha irmã falecida, a Hermelinda, mas, coitada, tem um filho doente e foi abandonada pelo marido. Devo ser fiel às palavras: seu marido, que não cheguei a conhecer a fundo, é um bandido perigoso. Somente depois de anos de casada, Maria soube dos trambiques, com a polícia na sua porta. Parece-me que o sujeito anda preso ou exilado. Maria, ainda assim, se refez, trabalha e cuida do filho, com a ajuda de uma amiga. Não posso ocupá-la com mais problemas. O que faço, e é pouco, conforme me permite a aposentadoria, é enviar-lhe uns trocados, que mal devem dar para a sustância da semana.

***

Desculpe-me por esses trechos picotados. Tenho dificuldade de alongar as ideias, que vêm escassas, ou às vezes não me sobra nada. Não sei se falei, em algum instante, do meu medo de ficar completamente esquecida, com a doença que comprometeu minhas duas tias e, especialmente, minha amada mãezinha.

O esforço para lhe escrever, amiga, tem o motivo de deixar algumas memórias registradas. Saiba que, na juventude, por muito pouco não fui freira. É, isso mesmo. Imagino que essa questão pode lhe causar surpresa. Como vivia em Missão Velha, e as oportunidades eram vazias, estudei e me formei como professora. Porém, aquilo não ia bem; as crianças, paupérrimas, chegavam à escola sem terem feito sequer a primeira refeição. Contorcia-me com o horror. Quantas vezes não comprei, de meu bolso, bolachas, farinha, mel etc., para fazer cessar as perturbações daqueles olhos ávidos. O ensino era secundário. Quando dava. E me brotou a fantasia de que, sendo freira, já que vivia na igreja, e não tinha pretensão de me casar, seria o jeito de mudar aquela situação. Cheguei a ir ao convento. A madre superiora, Irmã Dionísia, tinha o dom de olhar além; rejeitou não só a mim, mas uma porção de meninas da minha idade, declarando, resoluta: “Esse caminho não é para você, mocinha. Não podemos lhe receber”. Contentei-me, e foi o bastante, em ser professora, até quando pude.

Outro relato importante, ainda na esteira do que me provocou Cipriano, é que me ardiam ideias revolucionárias. Inteirei-me da política, de que não sabia nada, e conheci, pelos jornais e por livros, um moço chamado Ernesto Guevara. Papai cortou minhas asinhas, como disse; propriamente o dinheiro que me ajudaria a atravessar o Nordeste e, quiçá, engajar-me numa dessas trincheiras que se formavam por aí. Ouviam-se notícias de comitês, agremiações e congêneres, para lançar uma derrubada arrebatadora aos modelos do Norte. Papai, homem direito, mas fechado para o mundo, achava que nada fora de nossas divisas interessava, quanto mais para uma donzela bem criada como eu. Findou que, por medo, dei andamento às minhas atividades como professora, pensando que podia ajudar assim; ou mais, quando a revolução irrompesse. Não vingou a revolução. Então, a fiz do meu lugar, lutando pela igualdade.

Papai passou a me achar atrevida demais, me metendo em assunto de homem, que não competia a mim, quando pegou uns papéis escritos. Tive a pretensão de preparar um romance. No entanto, ele deu fim a essas folhas e consegui, somente após a sua morte, publicar dois livros, um de poesia e um de contos.

***

Tenho muito a dizer. Talvez o faça em outro momento, se sobrevierem forças. Digo que ainda me inquietam as palavras do senhor Cipriano, homem humilde, porém sábio. Não sei muito sobre a sua vida. Parece-me que gozou da liberdade. Tem um ar vigoroso, humano, de homem revolucionário. Pelo menos, para amainar essa perturbação em que me encontro, sei que promovi pequenas revoluções. Do lugar que saí, deixei sementes. Helena é uma delas. Vez por outra, vem à minha casa. Agradece por ter tido tão boa professora e julga que, por mim, entrou para a política. Para que não haja interpretações errôneas a meu respeito, digo que não tratava de minha ideologia nas aulas, mas, decerto, fazia com que os alunos elaborassem os seus pensamentos, para a causa da humanidade.

***

Deusa, minha querida, acho que já tomei bastante o seu tempo. É muito ocupada, disso eu sei. Acomoda tantos afazeres mundanos, importantes… Queira me permitir, nalgum dia, olhar a sua face e agradecer-lhe, como é devido, o dom da vida. Pude mais do que supunha, apesar da fraqueza, da mediocridade; coisas humanas, carnais, que atravancaram o meu caminho… Se considerar que fui uma boa menina, me conceda a derradeira e almejada paz.

 


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