— O dinheiro que o Estado já meteu nos bancos, desde a crise de 2008, dava para construir 100 hospitais — atirou Carlos, como quem bate um trunfo na mesa de sueca. — O Público diz que são dezoito mil milhões de euros.
Luís e Carlos costumam encontrar-se no regresso a Odivelas e, ao longo do tempo, criaram uma competição intelectual, para entreter a viagem de metro: ver qual consegue apresentar a notícia mais fantástica. O que também lhes permite ocupar as horas mortas no trabalho com pesquisas e cálculos. Luís dá apoio às fotocopiadoras da biblioteca da Faculdade de Letras e passou a apanhar o amigo Carlos que trabalha na casa de fotocópias da Faculdade de Ciências, no Campo Grande, logo ali.
— Catano! 100? Isso é escandaloso! — concedeu Luís.
— Se é! Um hospital médio, como o CUF Tejo, custa 180 milhões. Consegues imaginar o volume de dinheiro que representam 100 como ele?
— Deve dar para encher de notas até ao teto as salas de supervisão do Banco de Portugal — ironizou Luís.
— Eh, eh, acho que mais! Há bocado pus-me a fazer umas contas. Achei que imaginar uma passadeira de notas talvez fornecesse uma imagem elucidativa. Então, pensei num percurso de dezoito mil passinhos de meio metro — tantos quantos os milhões —, o que dá nove quilómetros. Assim, tomando como meta o Terreiro do Paço, os nove quilómetros começam mais ou menos no Lumiar. Agora, imagina, caminharmos calmamente do Lumiar até ao Terreiro do Paço, a um milhão de euros por passada. Um passeio de magnatas desaparafusados! É essa a quantia que o Estado tirou do bolso dos contribuintes para não deixar falir empresas incompetentes. Bancos! Não produzem, fazem negócios gananciosos com o dinheiro que nós lá pomos; e mesmo assim conseguem perdê-lo.
— Caramba! Isso é inacreditável! Fomos mesmo endrominados!
— Agora, escuta — sorriu-se Carlos, a consultar o telemóvel e a antecipar o efeito do aumento de nitidez da imagem que aí vinha. — Já tens a distância; mas... a espessura da passadeira? Imaginei uma base quadrada, com a amplitude de cada passo — meio metro. E forrada com notas de 500 euros. Sabendo as medidas da nota, cheguei à conclusão que se consegue ladrilhar esse quadrado com 18 notas de 500 euros. Como um milhão são 2000 notas de 500, são precisas 111 camadas para perfazer o milhão de euros… Eis uma imagem que já dá uma ideia da enormidade do escândalo: uma caminhada apoteótica sobre uma fofa passadeira de 111 camadas de notas de 500 euros desde o Lumiar ao Terreiro do Paço...
— Cuidado! — exclamou Luís.
Tão absorto ia Carlos, que quase tropeçava numa trotineta elétrica abandonada em frente ao Museu da Cidade. Um pano na fachada indicava que o piso térreo se encontrava encerrado para obras de remodelação.
— Se há dez anos me dissessem que andaria agora a tropeçar em trotinetas, dizia ao tresloucado para tomar os comprimidos…
— Bem, estou abismado — voltava Luís à conversa. Um milhão por passada é uma imagem incrível.
— Mas uma camada de 111 camadas de notas pareceu-me ainda pouco visual. Pensei antes numa única camada. Cheguei então a isto, escuta!: as 111 camadas, lado a lado, são equivalentes à largura de uma autoestrada de 15 faixas de rodagem de 3 metros e meio cada. Desde o Lumiar até ao Terreiro do Paço. Totalmente asfaltada de notas de 500 euros. Já imaginaste 15 faixas de carros em hora de ponta a esfarrapar notas de 500?
Entretanto tinham subido as escadas da estação e posicionavam-se no cais. Havia alguns olhares furtivos e gente a fingir que não estava a ouvir. Luís, percebendo o tamanho da audiência, aumentou ligeiramente o tom de voz:
— Uau! Não dá para acreditar! E o vento a levantar farrapos de notas e a levá-los pelo ar até caírem lá longe e apodrecerem durante uma dúzia de anos... — pegava Luís na sugestão. — Apresentado assim, parece ainda mais alucinante.
— Como foi possível, não é?
— Incrível! Fizeste o trabalho de casa... Agora escuta a minha, que apanhei no Expresso e confirmei na revista científica de origem. Uma equipa de investigadores, que tem estudado o aumento de temperatura dos oceanos, fez cálculos e chegou à conclusão que a energia fornecida aos oceanos pelas atividades humanas, nos últimos 25 anos, é tanta como se tivéssemos feito explodir 3600 milhões de bombas atómicas, iguais à de Hiroxima.
— Milhões? — era a vez de Carlos se admirar.
— Milhões! — reafirmava Luís. — Três mil e seiscentos milhões.
— Fiu! — assobiou Carlos.
Entretanto chegou o comboio, bastante cheio. Era por meados de janeiro; as pessoas ainda nem sonhavam com as terríveis alterações de vida que um vírus lhes traria, em breve. Arrumaram-se como puderam, envolvidos pela multidão cansada, mas agarrada a telemóveis.
— Parece que é o equivalente a bombardear os oceanos com cinco bombas semelhantes à de Hiroxima... por segundo... todos os segundos... 365 dias por ano. Durante 25 anos. Luís martelava os dados com pequenas pausas, para aumentar o efeito.
— Heich! Isso é horrível! Como é possível? Bate a minha aos pontos.
— Só para Portugal continental, dá mais de 250 bombas atómicas por dia, desde 1995. Fiz as contas.
— És sempre o mesmo, Luís! — ouviu-se atrás deles. — Só tu!
— Olha o Eugénio! Que é feito?
— Há quanto tempo! — saudou Carlos, que também o conhecia do secundário. — Por onde tens andado?
Ajeitaram-se, de modo a ficarem mais próximos.
— Eh, pá, em novembro estive na Flat Con, em São Paulo. Aquilo foi fantástico! — desvanecia-se o recém-aparecido.
— Flat Com? O que é isso? Imobiliário?
— Convenção Terraplanista! Não ouviram falar? Dah! Estive lá de pleno direito. Sou correspondente em Portugal da Federação Mundial da Terra Plana…
Carlos e Luís entreolharam-se. Em volta era possível detetar alguns sorrisos complacentes e uns poucos esgares de desaprovação.
— Ok! Já li sobre essa moda — concedeu Carlos. — A Terra é plana, está coberta por uma espécie de cúpula e é limitada por um rebordo de montanhas geladas que impedem que se caia no vazio. Não acreditam nas viagens à Lua, nem em nenhuma das provas tradicionais da esfericidade do nosso planeta. E esse pessoal juntou-se para quê?
— Ora, para reforçarmos as nossas convicções e falarmos do futuro. Eu próprio apresentei um projeto — empolgava-se Eugénio, ao perceber o interesse dos amigos. — Já viram esses cartazes todos que estão espalhados por aí, a dizer que não há planeta B? Foram eles que me deram a ideia principal. Não há planeta B? Pois parece-me evidente que há. E a minha ideia pode ser a solução dos nossos problemas e a salvação da Humanidade.
Eugénio calou-se a fazer render a expectativa e a saborear a curiosidade dos amigos, mas estes mantiveram uma atenção sóbria. Em volta apurava-se o ouvido, tentando contrariar o ruído do metro, naquele ponto do trajeto.
— A Terra é uma espécie de disco plano e grosso, como uma tarte, não é? Ora, o outro lado do disco o que é senão uma outra Terra plana? O tal planeta B! Claro como água. Só falta descobrir como vamos conseguir passar para lá. Ultrapassando a borda e virando para baixo? Ou furando o chão? De uma maneira ou de outra, quando o conseguirmos temos o problema resolvido.
Carlos e Luís estavam constrangidos. Em volta manifestavam-se sorrisos abertamente.
— Um furo parece-me o mais prometedor. Mesmo que a gente não consiga colonizar a outra face… por exemplo, se lá não existir este efeito a que chamam gravidade… nesse caso, o furo pode ser a solução para a subida dos oceanos, se ela for real. Foi a ideia que eu lancei lá na Convenção. Abre-se o furo e esvazia-se o excesso! Lógico, não?
A dois corpos de distância, alguém tentava conter uma gargalhada. Eugénio acusou o toque.
— Sempre houve grandes pensadores escarnecidos pelos seus contemporâneos, mas depois tiveram que lhes dar razão — declarou, solene. — Precisamos de um novo paradigma que denuncie a grande fraude com que nos têm enganado e prove a verdade da Terra plana, na sua simplicidade e beleza.
A chegada ao destino não deixou Eugénio continuar. Saiu na Ameixoeira, permitindo a vários passageiros alargarem os sorrisos, mas contristou outros que esperavam mais galhofa. Luís estava incomodado e levantou um pouco a voz, para afastar de si os mais que prováveis preconceitos circundantes.
— Isto não era possível antes do Youtube. Pelo menos com esta dimensão. Uma convenção… Os algoritmos, ao apresentarem inúmeros vídeos relacionados com a teoria maluca a que começámos a assistir, fornecem-nos mais e mais a ilusão de que toda a gente está de acordo com ela. É com a Terra plana e é com as milhentas teorias de pseudociência que são visionadas e difundidas sem reflexão, sem verificação, sem racionalidade.
— Olha, sabes que estive a ler exatamente sobre isso? — corroborou Carlos. — Todos os terraplanistas se tornam terraplanistas a ver outros terraplanistas no YouTube. É a força das imagens, com a sua potência emocional a influenciar o fenómeno cognitivo; e são outros mecanismos psicológicos, sociais e culturais. Muitas vezes, são pessoas com formação, mas a desconfiança em relação ao conhecimento especializado e uma maneira errada de entender o ceticismo leva-as a pôr em causa esteios bem firmados do conhecimento científico. E acabam por se convencer que eles é que pensam com lógica e raciocínio científico.
No Senhor Roubado saiu muita gente. Luís pegou na conversa, mas já em tom de voz normal.
— E não vale a pena argumentar com um terraplanista ou outro crédulo desse tipo. Nada os demove do seu erro. Agarram-se à sua ilusão com unhas e dentes; tudo o resto são manipulações da Grande Conspiração Global. Não há paciência!
— Eu fico possesso com teorias maradas e notícias falsas. Estou farto de apanhar com imbecilidades, desonestidades, fanatismos no Facebook. Às vezes, só me apetece desamigar toda aquela gente que prefere viver com os neurónios desligados. As pessoas não têm a mínima sensibilidade para detetar a treta, o disparate, a falsidade. Acreditam em tudo!
— Não é em tudo. Parece que têm uma preferência por histórias estapafúrdias. Se a história parece inverosímil, é certo e sabido que vai ser partilhada por muita gente. Mas não perdem uns segundos a tentar perceber se é falsa. Eu acho mesmo que, para eles, é irrelevante se é verdadeira ou falsa. Interessa é a espetacularidade. Como se a sua vida fosse tão desinteressante que precisasse de grandes ficções para lhe dar um pouco de animação. De vida real estão eles fartos. Só não os desamigo porque gosto de pensar que, enquanto forem meus “amigos”, posso influenciá-los. Mas acho que não consigo.
Saíram em Odivelas e encaminharam-se para o bairro Codivel, pelo túnel decorado pelo graffiter Styler. As pinturas murais de grande intensidade figurativa, do tema de Alice no País das Maravilhas, ilustravam, oportuna e ironicamente, a nossa grande apetência por mundos fantásticos, maravilhosos e mágicos.
Joaquim Bispo
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Imagem: Styler, Alice no País das Maravilhas (pormenor do Gato de Cheshire), 2016–2017.
Odivelas.
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2 comentários:
Saudades de tempos idos de partição de ideias em tus cá tus lá de rotina, interrompidos pelo afastamento voluntário ou obrigado pelas circunstâncias da vida! Gosto de ler as tuas sábias reflexões, também estou farto de histórias inverosímeis,imbecilidades, fanatismos e sobretudo das falsidades voluntárias suporte de populismos, a que o Facebook dá guarida! Sejam terraplanistas, criacionistas e agora muito em voga os negacionitas e outros que tais, põem-me os cabelos em pé, que apesar de serem em menor número ainda permitem que aos que tais que comigo se cruzem se aperceberem do meu estado de indignação!
Continua a tua saga de bem pensar e bem escrever, terás neste amigo um leitor atento e devotado! Um abraço, Joaquim !
Obrigado, Artur. Continuarei, sim. Ajuda-me a manter afastado “o alemão”.
Bons tempos. Muita conversa, alguma luta, muita azia política engolida. Agora vê-se muito incomodadinho, por nada. Como se as gorduras indigeríveis fossem a aspiração gastronómica da sociedade. E atiram-se para mundos de fantasia. Não sabem o que é digerir azia durante dezenas de anos.
Abraço!
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