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terça-feira, 20 de outubro de 2020

O CAMINHÃO DOS OLHOS

Toda segunda feira tem feira no Largo da Segunda Feira, na Tijuca. Esse mantra  me ecoa até hoje, sou capaz de ouvir a voz da minha avó, me apressando a pegar a sacolinha de minha propriedade (a primeira posse que tenho nos meus escaninhos) e partir com ela a sentir aromas, sons e emoções de uma feira livre que insistem em não abandonar minhas entranhas. 

Levava eu uma bolsinha micra, exatamente para caber o agrião que, diziam as boas línguas, minha mãe e meu pai não dispensavam na salada. Muita mãe, muita avó, muito pai, muito avô, muito carinho, muita feira livre que não me arredam pé das lembranças. Ainda bem. 

Muito bom não me desvencilhar dos tempos bem vividos, quando, na altura do meu campeonato, sou levado a frequentar a feira do Jardim Botânico no Rio, onde cheiros, atropelos, sons diversos e cores múltiplas me servem de gatilho a recordações. 

No Largo da Segunda Feira, onde toda segunda feira tinha feira, havia o português Seu Manoel, conhecido à boca pequena como Mané Feioso, que de tão feio não resistiu ao meu comentário sincero: “O senhor é feio mesmo, hein?”, para desconcerto da minha avó contida e gentil. 

Havia o Narciso, moleque descalço, pretinho hoje afrodescendente, que carregava com seu carrinho de bilha as compras até o edifício onde morávamos no quarto andar. A consciência antiescravagista não havia me envolvido, tanto que achava normal o menino subir quatro andares com as compras e entregar na nossa porta, em troca de uns meirréis e um copo d’água, que depois seria desinfetado com sabão de coco. Assim era o que era. 

Havia o feirante que colocava água com açúcar na faca, para provar que o abacaxi estava realmente doce. “Vai uma provinha aí, freguesa? Tá tão docinho que parece que saiu de uma colmeia”. Ficava imaginando o feirante com aquela roupa de astronauta tirando o abacaxi do antro de abelhas com seus ferrões impiedosos que saiam da bunda. 

Mas nada é tão vívido até hoje quanto o Caminhão dos Olhos. Explico. Nas ruas adjacentes do Largo da Segunda Feira, onde toda segunda feira havia uma feira, estacionavam vários caminhões que transportavam mercadorias em caixotes e barracas desmontadas. Um deles tinha um olhar especial. 

Era um Chevrolet dos anos 50, cuja frente apresentava um gradil de radiador cromado sobre o qual dois faróis me sorriam com contornos de traços disneyanos de pestanas, sobrancelhas e expressão generosa. Magia pura. Minha avó encerrava a função me levando a me despedir dele e ele estava lá, encostado numa esquina a retribuir meu encantamento com mais encantamento, como se aprovasse meu carinho em levar para a família a sacolinha com agrião dentro. 

Não havia segunda feira, onde sempre havia feira no Largo da Segunda Feira, que eu não celebrasse o olhar carinhoso de um caminhão para um menino sonhador. Era uma troca de cumplicidade, que até hoje, de olhos fechados, sinto o quanto de real perdura no meu eterno imaginário infantil, transportando a mais pura sabedoria.  

Numa recente segunda feira ousei em ir até o Largo da Segunda Feira, na torcida teimosa que houvesse uma feira e um caminhão que me olhava carinhoso na rua adjacente. Claro que encontrei nada. Não me deparei com feira alguma, apenas um amontoado de camelôs, pedintes, indigentes, passantes sem romantismo, excluídos, gente que importa aos olhos dos sensíveis, porém invisíveis ao cotidiano, vagando por sobrevivência, atenção, justiça, cuidado, oportunidade, comida, teto. 

Muito menos na rua adjacente havia um misero caminhão. Tudo tomado por carros sem personalidade, sacos de lixo semi abertos, mendigos, famílias embrulhadas em papelões e cobertores imundos, crianças sem calça, cachorros magros, vivendo ao relento dos dias de hoje. “A que pontos chegamos?”, diria minha avó simplória e católica se aqui estivesse. 

Contrariando a realidade dos fatos, consegui enxergar os olhos do Caminhão dos Olhos. Eu fechei os meus e vi o caminhão olhando para mim. E o fitei e ele me fitou, sim, o imaginário afetivo pode tudo. Seus olhos desenhados me disseram, com a eloquência de sempre, que o que a gente enxerga através da memória é o combustível para seguir vivendo. 

Olhar a vida com olhos felizes e inocentes do Caminhão dos Olhos não é um saudosismo paralisante. É um jeito maroto de não permitir que os arredores nos deixem cegos. E que o futuro não nos mate de medo.  

Não creio que o presente seja o instante absoluto da vida, "viver o presente é o que importa", dizem alguns, muitos, milhares manipulados pela cultura imediatista. Pois arrisco que o "aqui e o agora "só existe porque houve um "antes", que influenciará o "depois". 

É o passado que, através do presente, você evoca numa entrevista de emprego, na energia de um projeto futuro, lhe dá estofo para um desafio por vir, constrói a pessoa que você é, produz a auto estima do visionário, alimenta o sonhador.  

É provável que se queira apagar o passado. É provável não olhar para ele, jogá-lo para debaixo do tapete da cachola, fingir que o que passou, passou. Mas impossível negá-lo no inconsciente. E quando o inconsciente quer, não tem jeito: manda recados, sinais do que se bem ou mal viveu, sentimentos bons ou maus que podem ser administrados a ponto de não vestirem a carapuça dos manipuladores.  

Meus filhos e meus netos não conheceram o Caminhão dos Olhos. Mas estou certo de que outros Caminhões dos Olhos já habitam suas memórias tenras e lhes iluminam a vida para o que está vindo por aí, com suas dores, delicias, imprevisibilidades, sonhos, escolhas, frustrações, desejos, indignações, potências e impotências. E naturalmente torço que considerem conscientemente a bagagem emocional e objetiva, a tal da História individual que carregamos como aprendizado para lidar com o futuro. 

A vida é um piscar. Melhor aproveitar enquanto enxergamos a realidade, olhamos os arredores com indignação e percebemos que ainda podemos imaginar o Caminhão dos Olhos, sorrindo com esperança e afeto, servindo para alguma coisa agora e amanhã.

Não se trata de nostalgia doída, nem de expressão tardia pelo Dia das Crianças, muito menos do abominável e inerte “ah, no meu tempo...”. Mas é sinal de uma energia limpa da fonte da memória que faz a gente subir na boleia e seguir viagem. Temos sempre muito chão pela frente e um caminhão de lembranças carregado de vida.

Um brinde à memória que ilumina.  


 

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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