Acordado à beira da cama, suado, a um
palmo de se despregar, Nonato mirou o branco do teto, infinito; refletia o
vazio. Tem o ritual de passar, entre o limiar do sono e do despertar completo,
cerca de quinze a vinte minutos conjecturando sobre as dádivas de uma vida
digna. E isso lhe confere o significado da solidão, algo que alimenta há exatos
dez anos. E, também, qualquer coisa mínima, imperceptível para os demais, sente
um pouco de excitação nisso.
Depois da separação de Denise, a mulher
ideal, segundo seus sonhos, não havia sentido para mais tentativas vãs; perda
de tempo procurar dividir ou aplacar o que só cabia, de direito, à Denise.
Em dezoito de novembro de 2004, Denise
resolveu deixá-lo, sem sobreavisos. Levou consigo – o que não conseguia
discernir o porquê – dezoito pares de sapatos, três mudas de roupa e os gatos.
O resto, pelo que pareceu, poderia tocar fogo. Assim o fez.
O golpe dela está aí, pois que, sem
filhos, atribuía aos bichanos todo o amor que pudesse ter. Com o fetiche por
coxas torneadas, grossas, em sapatos altos, achou que, com isso, a leviana dera
a punhalada fatal, por mera implicância, despeito.
Não concorda com essas modernidades, de que
homem não pode ter uma, duas ou três à disposição. Ela, no entanto, havia
avisado: “Nonato, tu pensa que sou uma cadela vagabunda, que pegou no meio da
rua? Tu te prepara! Ou tu te ajeita, ou eu mesma dou um jeito nessa esbórnia!”.
Nonato acha, seguro, que é histeria de mulher; que mulher tem de dar chilique:
normal; que a ebulição hormonal depunha contra ela; que, desgraçadamente, já
que teria de passar o resto da vida assim, aturando-a, poderia ter uma, duas ou
três por fora: compensação.
Ainda convicto e magoado, e feliz pela
solidão forçada, gasta quase todos os rendimentos em compensações mundanas.
Fora o apartamento hipotecado; o vazamento que escorre para o apartamento de
baixo, como dilúvio, pelo banheiro; o débito do cartão de crédito, que soma a ninharia
de dez mil reais; problemas no fígado, saturado de gordura e de escárnio, e de
raiva, e de rancor; Nonato se considera um homem de sorte, porque seu
presidente anda bem, sua equipe ministerial anda bem; porque o Brasil anda bem,
e não há razão, portanto, fora os inconvenientes, para preocupações.
Ao tomar o café, lembra-se que a esquerda
foi dizimada, como prometera o presidente, e isso lhe conforta. Lembra que a
solidão é uma dádiva nesse mundo cão. Revigorado, pega um pedaço de pão, passa
manteiga, abre um sorrisão e degusta, com delicadeza e certeza, para comemorar
mais uma data de solidão e de autonomia.
Lembra, também, da Denise; sempre se
lembra da Denise, que tripudia de sua honra. Mas soube que ela é petista, e
deseja que vá para o quinto dos infernos. Congratula-se, ainda mais, com o fim
da mamata; e se prepara para exaltar a glória da pátria na igreja, logo à
frente, há um mês anunciada, a rigor, com paramentos militares. Sente-se pronto
e aliviado. Declara-se, batendo no peito tomado de orgulho: “Sim! Sou mais um guerreiro,
instrumento da paz nacional”.
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