No início da década de 1970, para tirar
o sossego dos pais dos garotos, a moda era cabelo longo.
Aloísio, embodocado na timidez dos seus
treze anos, filho mirrado de um negro e de uma cabocla, órfão de pai desde que
nascera, vivia com a mãe e mais um irmão.
Meio carapinha, ele dormia todas as
noites com a cabeça enfiada numa velha meia para tentar driblar a rebeldia dos
longos cabelos. Quando acabava de lavá-los, com a velha tesoura aparava as pontas
daqui e dali, ritual que fazia escondido, longe dos olhos da mãe e do irmão
mais velho. Os dois não aprovavam aquela profusa cabeleira que deixava Aloísio
com o semblante ainda mais franzino, disforme. Era uma cabeça desproporcionalmente
volumosa sustentada por um corpo minguado. Imagem triste.
Certo dia, Paulo, seu irmão,
ofereceu-lhe, de presente de aniversário, um
corte de cabelo na barbearia do Seu Alípio. Aloísio ficou todo cheio! Cortar o
cabelo numa barbearia era artigo de luxo. Desde que se dera por gente e até
certo tempo atrás, seu cabelo sempre fora cortado pela mãe. Sairia da barbearia
todo faceiro, cheirando a álcool, a talco ou à água Velva!
No dia combinado, Aloísio recebeu uma
cédula de dinheiro do irmão, e foi todo aprumado em direção à porta. Antes de
sair e temendo não saber o que dizer quando chegasse sozinho à barbearia,
perguntou:
-
Paulo, o que eu digo ao Seu Alípio?!
-Não fique avexado, oxe! É só chegar lá
e falar que quer fazer o corte “americano”! Vá logo, ande! –
respondeu Paulo.
Aloísio passou pelo portão, todo
garboso, metido num traje domingueiro, calças até o joelho, impecavelmente
passadas a ferro pela mãe. Caminhava quase aos trotes, tamanha a pressa, e com
as mãos nos bolsos, remexia alegremente a cédula de dinheiro, e o seu velho canivete,
inseparável companheiro. Logo estava diante da barbearia.
Cumprimentou Seu Alípio e, numa voz
quase sumida, disse a ele que queria cortar o cabelo, corte “americano”,
conforme a orientação do irmão.
Seu Alípio o colocou na velha poltrona,
mas Aloísio era tão miúdo, tão apoucado no tamanho, que não conseguia se olhar
no espelho colocado na parede de frente. A toalha foi colocada sobre os ombros,
e Seu Alípio começou o preparo da tesoura. Ao mesmo tempo em que começou a assobiar, iniciou também a dança
das tesouradas. Era uma rapidez de movimentos que Aloísio ficou imobilizado. O
medo de se mexer virou pânico quando ele pressentiu que, caso se movimentasse, poderia
levar uma tesourada nas pontas das orelhas. Orelhas, aliás, bem avantajadas,
muito mais que o desejado...
Aloísio, enquanto ouvia o assobio
ininterrupto do Seu Alípio soar cada vez mais estridente, via os tufos de
cabelo caindo da tesoura, passando pelo seu rosto, pelos seus ombros cobertos
pela toalha, pelos braços, e se esparramando pelo chão. Estava em choque! De
onde saía tanto cabelo? O que Seu Alípio estava aprontando na sua cabeça?!
Espavorido, nem conseguia se mover. E o zunido
da tesoura não cessava...
Atordoado, Aloísio fechou os olhos e,
silenciosamente, clamou por todos os santos para que aquilo acabasse logo. De
repente, Seu Alípio parando de assobiar e descansou a tesoura sobre o aparador.
E com a mesma rapidez de ação, pegou um instrumento que parecia um boticão
ampliado, tombou fortemente a cabeça de Aloísio para frente e começou a passar
aquela ferramenta da nuca para o alto da cabeça. E como doía! Conforme subia,
aquele aparelho ia puxando de maneira ríspida os fios de cabelo, roçando
asperamente a pele da cabeça. Uma sensação horrorosa. E Seu Alípio voltou a
assobiar...
Aloísio nem ousava abrir os olhos.
Tinha receio de olhar o chão e constatar que todo o seu cabelo estava ali. Só
queria que aquilo acabasse logo...
E Seu Alípio parou de assobiar. Guardou
aquela estrovenga no aparador, junto com a tesoura, e começou a retirar a
toalha.
Aloísio não queria saber de álcool, de
talco ou de água Velva. Nem aceitou a oferta de Seu Alípio para se olhar no
espelho, e nem se atreveu a passar a mão pela cabeça porque não queria constatar
o que já sabia. Não queria saber de nada. Queria ir para casa, e lá, sozinho,
olhar o que havia acontecido com os seus cabelos.
Pegou o troco dado pelo barbeiro, e foi
rapidamente rumo à porta. Não precisou chegar em casa para se certificar do ocorrido.
O vento que lhe batia na nuca, o sol que lhe ardia na cabeça e as orelhas
proeminentes esculpidas na sua própria sombra refletida na calçada foram
enchendo o seu peito de raiva, enchendo os seus olhos de água...
Aloísio, com a mão enfiada no bolso, comprimia
com força o velho canivete. Apertou o passo. Queria sair da vista de todos. Já diante
do velho portão, meteu o pé nos sarrafos já puídos, entrou em casa chorando em
silêncio. A mão, que tentava esmagar o canivete no bolso, desejava esmagar o
pescoço de Paulo.
Naquele momento, se não tivesse a mãe, e
se não fosse pecado, seguramente Aloísio teria furado o irmão.
Regina Ruth Rincon Caires
1 comentários:
Ah que judiaria ! Imaginei a raiva dele kkk, os cabelos cultivados com tanto carinho ! Seus textos me fazem rir e chorar ao mesmo tempo . Amei !
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