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sexta-feira, 23 de outubro de 2020

CORTE “AMERICANO”

 

                                    


 

         No início da década de 1970, para tirar o sossego dos pais dos garotos, a moda era cabelo longo.

         Aloísio, embodocado na timidez dos seus treze anos, filho mirrado de um negro e de uma cabocla, órfão de pai desde que nascera, vivia com a mãe e mais um irmão.

         Meio carapinha, ele dormia todas as noites com a cabeça enfiada numa velha meia para tentar driblar a rebeldia dos longos cabelos. Quando acabava de lavá-los, com a velha tesoura aparava as pontas daqui e dali, ritual que fazia escondido, longe dos olhos da mãe e do irmão mais velho. Os dois não aprovavam aquela profusa cabeleira que deixava Aloísio com o semblante ainda mais franzino, disforme. Era uma cabeça desproporcionalmente volumosa sustentada por um corpo minguado. Imagem triste.

         Certo dia, Paulo, seu irmão, ofereceu-lhe, de presente de aniversário, um corte de cabelo na barbearia do Seu Alípio. Aloísio ficou todo cheio! Cortar o cabelo numa barbearia era artigo de luxo. Desde que se dera por gente e até certo tempo atrás, seu cabelo sempre fora cortado pela mãe. Sairia da barbearia todo faceiro, cheirando a álcool, a talco ou à água Velva!

         No dia combinado, Aloísio recebeu uma cédula de dinheiro do irmão, e foi todo aprumado em direção à porta. Antes de sair e temendo não saber o que dizer quando chegasse sozinho à barbearia, perguntou:

         - Paulo, o que eu digo ao Seu Alípio?!

         -Não fique avexado, oxe! É só chegar lá e falar que quer fazer o corte “americano”! Vá logo, ande! – respondeu Paulo.

         Aloísio passou pelo portão, todo garboso, metido num traje domingueiro, calças até o joelho, impecavelmente passadas a ferro pela mãe. Caminhava quase aos trotes, tamanha a pressa, e com as mãos nos bolsos, remexia alegremente a cédula de dinheiro, e o seu velho canivete, inseparável companheiro. Logo estava diante da barbearia.

         Cumprimentou Seu Alípio e, numa voz quase sumida, disse a ele que queria cortar o cabelo, corte “americano”, conforme a orientação do irmão.

         Seu Alípio o colocou na velha poltrona, mas Aloísio era tão miúdo, tão apoucado no tamanho, que não conseguia se olhar no espelho colocado na parede de frente. A toalha foi colocada sobre os ombros, e Seu Alípio começou o preparo da tesoura. Ao mesmo tempo em  que começou a assobiar, iniciou também a dança das tesouradas. Era uma rapidez de movimentos que Aloísio ficou imobilizado. O medo de se mexer virou pânico quando ele pressentiu que, caso se movimentasse, poderia levar uma tesourada nas pontas das orelhas. Orelhas, aliás, bem avantajadas, muito mais que o desejado...

         Aloísio, enquanto ouvia o assobio ininterrupto do Seu Alípio soar cada vez mais estridente, via os tufos de cabelo caindo da tesoura, passando pelo seu rosto, pelos seus ombros cobertos pela toalha, pelos braços, e se esparramando pelo chão. Estava em choque! De onde saía tanto cabelo? O que Seu Alípio estava aprontando na sua cabeça?! Espavorido, nem conseguia se mover. E o zunido da tesoura não cessava...

         Atordoado, Aloísio fechou os olhos e, silenciosamente, clamou por todos os santos para que aquilo acabasse logo. De repente, Seu Alípio parando de assobiar e descansou a tesoura sobre o aparador. E com a mesma rapidez de ação, pegou um instrumento que parecia um boticão ampliado, tombou fortemente a cabeça de Aloísio para frente e começou a passar aquela ferramenta da nuca para o alto da cabeça. E como doía! Conforme subia, aquele aparelho ia puxando de maneira ríspida os fios de cabelo, roçando asperamente a pele da cabeça. Uma sensação horrorosa. E Seu Alípio voltou a assobiar...

         Aloísio nem ousava abrir os olhos. Tinha receio de olhar o chão e constatar que todo o seu cabelo estava ali. Só queria que aquilo acabasse logo...

         E Seu Alípio parou de assobiar. Guardou aquela estrovenga no aparador, junto com a tesoura, e começou a retirar a toalha.

         Aloísio não queria saber de álcool, de talco ou de água Velva. Nem aceitou a oferta de Seu Alípio para se olhar no espelho, e nem se atreveu a passar a mão pela cabeça porque não queria constatar o que já sabia. Não queria saber de nada. Queria ir para casa, e lá, sozinho, olhar o que havia acontecido com os seus cabelos.

         Pegou o troco dado pelo barbeiro, e foi rapidamente rumo à porta. Não precisou chegar em casa para se certificar do ocorrido. O vento que lhe batia na nuca, o sol que lhe ardia na cabeça e as orelhas proeminentes esculpidas na sua própria sombra refletida na calçada foram enchendo o seu peito de raiva, enchendo os seus olhos de água...

         Aloísio, com a mão enfiada no bolso, comprimia com força o velho canivete. Apertou o passo. Queria sair da vista de todos. Já diante do velho portão, meteu o pé nos sarrafos já puídos, entrou em casa chorando em silêncio. A mão, que tentava esmagar o canivete no bolso, desejava esmagar o pescoço de Paulo.

         Naquele momento, se não tivesse a mãe, e se não fosse pecado, seguramente Aloísio teria furado o irmão. 

 

 

                                                    Regina Ruth Rincon Caires

 

 

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1 comentários:

Ah que judiaria ! Imaginei a raiva dele kkk, os cabelos cultivados com tanto carinho ! Seus textos me fazem rir e chorar ao mesmo tempo . Amei !

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