Para
Duarte, domingo era dia de passeio cultural, fosse qual fosse a disposição de
ânimo. Desde que se separara da mulher, podia arrastar-se toda a semana pela casa,
de pijama e sem banho, mas, aos domingos, impunha-se arranjar-se e sair.
Naquele domingo de início de maio, resolveu ir até Belém e seguir o impulso do
momento. Começou por entrar no Centro Cultural de Belém. Percorria a exposição
temporária “1968: O Fogo das Ideias”, quando foi interpelado por uma morena
muito jovem — de talvez uns trinta e poucos anos — que não reconheceu de
imediato:
—
Duarte! Há quanto tempo! O que tens feito?
Era a
sua ex-colega Carla — Carla Souto Mendes, lembrou-se então, — que dera Educação
Visual e Tecnológica na EB2/3 da Ramada, onde ele também dera aulas de
Português, antes de se reformar. Era bastante magra na altura, o que não
impedira alguma atração nunca admitida. Agora estava mais cheiinha, mas com o
mesmo penteado liso e comprido. Estava de calças de ganga e uma t-shirt
rosa escuro justa. Ao rosto que ele ofereceu para o beijinho, devolveu-lhe ela
um abraço de corpo inteiro, a que o seu não ficou indiferente, apesar da idade.
Pergunta para cá, lembrança para lá, resolveram pôr a conversa em dia frente a
um prato de lulas à lagareiro, no Caniço — um dos muitos restaurantes
turísticos da zona.
—
Reformei-me há seis anos, já com quarenta de serviço, e divorciei-me há cinco —
lamentou-se Duarte, de alma aberta como outrora, quando trocavam frustrações
profissionais e confidências pessoais. Ambos partilhavam o gosto por policiais
e ficção científica e trocavam livros frequentemente. — Tanto tempo em casa,
sem nada que fazer, foi um choque a que não conseguimos dar resposta. Agora,
vejo filmes e navego na Internet. Hoje apeteceu-me dar uma volta nestes espaços
amplos e cheios de gente. E tu? Continuas a dar aulas?
—
Não... Ainda fui parar dois anos a Lamego, mas, depois, nem isso. Então,
agarrei-me àquilo que já fazia, a nível amador: artes plásticas, especialmente,
escultura. Fiz uns cursos de especialização no Ar.Co e agora vivo disso; mal,
mas vivo. Tive uma exposição individual na Magnum, há quatro meses.
— A
sério? Fantástico! Vendes bem? E que tipo de coisas fazes? — Duarte
desdobrava-se em perguntas.
—
Vendi umas peças pequenas — vinte, trinta centímetros. Interpretações de
Canova, Rodin, Bernini, lúbricas quanto baste. Mas, entretanto, apareceu-me uma
encomenda de uma peça para metro e meio.
Uma coisa já para uns milhares. Estou na fase final da modelagem.
—
Metro e meio? Isso não é para pôr na mesinha da entrada!
—
Não! — riu-se Carla. — É para um recanto romântico do jardim de um palacete,
ali para Azeitão. É um novo-ricaço que quer fazer figura.
—
Qual é o motivo? Uma daquelas donzelas em traje romano a verter uma ânfora? —
brincou Duarte, lembrando-se do que costumava ver em jardins com pretensões.
— Ah!
Posso mostrar-te! Quando sairmos daqui, vamos ali ao Jardim Botânico Tropical.
Existe lá uma escultura do século XVIII, com este tema. É a “Caridade Romana”,
não sei se conheces.
Com
programa agendado, a conversa evoluiu para as lembranças da escola onde ambos
tinham dado aulas, das intrigas, das figuras características, dos baldas, dos
emproados, dos que tinham voltado a encontrar, ou não, e dos sempre presentes
problemas dos professores, que agora já pouco diziam a Carla. Depois dos
cafezinhos, ela foi mostrar ao ex-colega a escultura de que tinham falado — um
conjunto de duas figuras: um ancião meio desnudado e com as mãos atadas atrás
das costas, que, de joelhos, chupava o seio que uma jovem de aspeto nobre lhe
oferecia.
—
Nunca pensei que fosse esta, quando falaste em “Caridade Romana”! Esta conheço
eu bem, mas nunca percebi o que representa. Só me lembra um ritual de
sadomasoquismo, o que é estranho, assim exposta no relvado de um jardim
fechado, mas público.
—
Também não te sei dizer como veio aqui parar, mas sei que foi feita por um tal
Bernardino Ludovice, que também fez peças sacras para a Igreja de S. Roque e esculturas
para o Convento de Mafra. Mas não é o arquiteto alemão Ludovice, que fez o
convento. Este é italiano e também fez umas peças para a Fonte de Trevi, em
Roma.
— Mas
isto é enorme! Tu consegues esculpir peças deste tamanho, em mármore? —
admirou-se Duarte.
—
Isso é outra história — riu-se Carla. — Eu sou uma escultora da nova geração!
Começo por modelar uma versão minha, em barro ou em papier mâché, mas
muito mais pequena do que esta. A seguir, encomendo, a uma empresa que já
fornece serviços de impressão 3D de grande formato, uma cópia ampliada, em
pasta de pó de mármore, camada a camada. Depois da montagem e dos meus retoques
finais, um leigo não consegue distinguir a diferença para uma peça trabalhada
num bloco de pedra. É a admirável tecnologia moderna!
—
Caramba, vivemos mesmo em tempos inesperados! Mas, explica-me cá: porque é que
esta carcaça de amante tem as mãos amarradas? Que cena perversa é esta, sabes?
— Já
leste a inscrição? — sorriu-se Carla, maliciosa.
Duarte
começou a articular o texto inscrito na face do pedestal que suportava o
conjunto escultórico: QVO/NON PENETRAT/AVT QVID/NON EXCOGITAT/PIETAS.
— Parece latim, mas não me serve de muito… Já
estou esquecido. O que é que isto significa?
—
Qualquer coisa como: “Aonde não chega a Piedade? O que não concebe ela?” Como
quem diz: a Piedade — neste caso, em versão de amor filial —, concebe e alcança
o que for preciso.
—
Filial?
—
Pois! Por estranho que pareça, esta rapariga é filha deste velho. Ela chama-se
Pero e ele Cimon. Como ele estava preso e em risco de morrer de fome, ela, mãe
de uma criança de peito, alimentava o próprio pai às escondidas do verdugo, na
visita diária que lhe fazia. A história foi colhida no livro “Factos e ditos
memoráveis”, de um tal Valerio Massimo, romano, do século I d.C. O livro
contava muitas histórias de vícios e virtudes e foi de lá que também foi tirada
a citação do pedestal. Esta história, lendária, tem impressionado muitos
artistas ao longo dos tempos. O próprio Rubens fez uma versão. Os antigos romanos
ficavam fascinados a olhar para as pinturas com este tema. O caso não era para
menos: aquilo que, em condições normais, podia ser considerado perverso e
contranatura, era aqui visto como uma virtude, uma obra de misericórdia,
“alimentar os famintos” avant la lettre, uma prova de que o amor aos
pais era a primeira lei da Natureza, ultrapassava pudores, constrangimentos,
ambiguidades.
—
Como é que tu sabes isso tudo? — interrompeu Duarte, acariciando o ego da
amiga.
—
Faço muita pesquisa. Tento ser profissional. Aliás, foi este conhecimento que
seduziu o meu cliente: das várias propostas que lhe apresentei, foi a história
desta que o impressionou. E, sabes por quê? Acho que sei por quê: ele tem uma
sobrinha, que é quase como uma filha. Tem-na ajudado muito, desde os estudos ao
dote para o casamento. Mas acho que ele tem medo de não ser retribuído, se um
dia a velhice o fizer precisar dela. A escultura e, sobretudo, o que ela
significa, terá essa função de lembrete dos deveres filiais.
Duarte
não respondeu de imediato, aparentemente imerso em meditações, enquanto se
afastavam calmamente para as sombras frescas de um recanto do jardim.
Sentaram-se num tronco da vedação que separava o carreiro público dos canteiros
floridos e das sebes de cedros. Por fim, conjeturou:
— A
mim parece-me mais que ele deve ter alguma paixão assolapada pela afilhada.
—
Sobrinha!
—
Isso, sobrinha. Não achas? Não te parece que o homem que encomenda, ou mesmo
apenas contempla embevecido, tão estimulante cena de amamentação efabula o quanto
ela é sensual, o quanto desejaria — relações familiares à parte — estar ele
próprio naquela intimidade física? Eu acho-a de uma sensualidade arrebatadora.
Não achas que devia ser por isso que os contemporâneos romanos ficavam babados
a olhar para a cena pintada?
— Não
sabemos. As diversas épocas têm mapas mentais específicos. Podemos pensar que o
homem é o mesmo, desde os primitivos Cro-Magnon, que os seus apelos sensuais
não diferem muito de época para época, mas não sabemos. No entanto, lendo as
obras de Ovídio e os jogos de enganos que homens e mulheres tecem para obter os
envolvimentos carnais que procuram, ainda que apenas fantasiados, podemos
especular que este é mais um caso de luxúria disfarçada de virtude. Aliás,
parece que foram encontrados em Pompeia vários afrescos e terracotas
representando este tema. Repara que os Romanos tinham como deus máximo Júpiter, um deus que usava todos os embustes e manhas para se envolver com as deusas e até com as mortais que lhe agradavam.
—
Claro; é evidente que a componente lúbrica da representação deve ter um papel
relevante na sua popularidade.
—
Pois! É provável que o velho venha a cismar em pôr os lábios nos seios da sobrinha,
se não o fantasiou já. E mais: sendo quase certo que a sobrinha, observando a
escultura, se reveja nela, é possível que repare no olhar da jovem representada
atirado para o alto — uma explícita mensagem para as mulheres, uma evidência de
que ela, como qualquer mãe, também tem prazer físico ao amamentar. Que, às
vezes, chega bem longe, diz-se à boca pequena. Mas isso é um segredo das
mulheres. Por outro lado, se se sentir muito agradecida — e bem sabemos como a
dádiva recebida gera complacência, ternura, empatia —, talvez chegue a
fantasiar em imitar a escultura: puxar a cabeça do tio para o seu seio,
acariciá-lo como um bebé, embalar aquele homem que tem sido tão generoso para
ela, há tanto tempo.
—
Hum! Achas? Que jovem, mesmo sentindo grande empatia, faria isso a um velho tão
ou mais passado que eu? — suspirou Duarte, cuja autoestima, percebia-se bem, já
tivera melhores dias.
Sabemos
pouco do funcionamento do cérebro, sobretudo quando opera no terreno
resvaladiço de uma das mais básicas pulsões do ser humano — a pulsão sexual.
Talvez por isso, nem Carla se admirou, nem travou o impulso que sentiu.
Soergueu-se, virou-se para o amigo, levantou a t-shirt e encostou um
seio ao rosto dele, que segurou entre as mãos. Apanhado de surpresa, Duarte
ainda demorou uns segundos a perceber o que lhe estava a acontecer. «O toque, a
densidade, a carnalidade de um mamilo! Há quanto tempo!» Nem iria quebrar a
magia do momento com exclamações ou perguntas. Agarrou a situação com ambas as
mãos mentais, enquanto levantava as físicas para as encher com aquela carne tão
suave e leitosa. Carla, porém, sem deixar de lhe prender a nuca, apertou-lhe o
nariz com dois dedos, como se faz aos bebés sôfregos, e sussurrou uma censura
terna:
—
Chh! Doucement!
Duarte
não se queixou. Um indigente aceita o que lhe dão. Talvez a pulsão dela não
fosse sensual, mas outra mais sofisticada, das que a hormona dos apaixonados e
das grávidas — a ocitocina —, desencadeia: apego, empatia, bondade, compaixão.
Apenas a boca dele se mostrou uma atenta anfitriã do bico moreno que Carla lhe
oferecia, e, mais além, do seu rotundo e marmóreo pedestal, enquanto ela lhe
afagava a rala cabeleira, em enlevos de amamentação. “Caridade romana”,
suspeitou Duarte, por fim.
Em
breve, descobria que há caridades que são verdadeiros tormentos, sem deixarem
de ser obras de misericórdia: aquele sorvo vinha salvá-lo da inanição
sensorial, mas acicatava-lhe uma carência de anos. Sem tentar ir mais além,
tratou de armazenar sensações. Aquela bucha poderia ter de servir de sustento
da sua solidão por muito tempo. Quem lhe dera eternizar o momento.
Se fosse tempo de deuses, podia ser que o lúbrico Júpiter, vendo, lá do alto, tão inspiradora cena carnal, quisesse perpetuá-la em
mármore. Retumbando um trovão, podia transformar o par em pedra instantaneamente.
E outros casais que passassem depois por aquele recanto do jardim iriam
enlevar-se com a elegante sensualidade do novo grupo escultórico em estilo
hiper-realista. Valerio Massimo talvez o intitulasse “Caridade lisboeta”.
Mas não. O par saiu do jardim pouco depois: Duarte com o ego recheado de sensações muito vivas, muito presentes; Carla intimamente satisfeita com a magnanimidade da atitude que acabara de tomar e inspirada para concluir o esboço da escultura, agora com conhecimento vivido de posições anatómicas e expressões faciais.
Joaquim Bispo
*
Este
conto foi o texto comentado na sessão de agosto de 2020 da comunidade de
leitores de Alcains, com a moderação da dinamizadora da comunidade e promotora
da leitura Elsa Ligeiro, da editora Alma Azul. O final foi, entretanto, objeto
de afinação.
*
Imagem:
Bernardino Ludovice, Caridade Romana, 1737.
Jardim Botânico Tropical, Lisboa.
* * *
0 comentários:
Postar um comentário