Senti desde muito novo uma grande
preocupação pela liberdade de ação, a minha, claro está. Ainda mal andava e já
me incomodava ouvir proibições ou, pior ainda, orientações para o que podia ou
devia fazer. Era até quase certo fazer exatamente o oposto do que me pediam que
fizesse, apesar de as consequências serem geralmente más.
Recordo ainda claramente a primeira vez
que exerci o meu direito de decidir por mim. A minha mãe tinha-me sentado no
balcão da cozinha, a uma distância considerável do fogão, claro, dizendo-me
claramente que não saísse dali e que não tocasse em nada. Palavras fatais! Mal
virou costas gatinhei logo balcão fora a todo o gás para tocar na panela que
começara a ferver. Escusado será dizer que o resultado não foi nada bom para
mim!
Durante a infância e boa parte da
adolescência a situação manteve-se assim, recusa total em aceitar conselhos ou
ordens e, paralelamente, fazer exatamente o contrário do que me tentavam
proibir. Tornara-se até uma espécie de obsessão, não me limitava a reagir aos
acontecimentos, procurava ativamente que me dessem orientações e proibições
pelo puro prazer de as ignorar e transgredir. Foi o período mais feliz da minha
vida, sentia-me totalmente livre, talvez até a única pessoa livre do mundo.
Os problemas começaram quando entrei para
a universidade. Como familiares e amigos me tinham aconselhado — a meu pedido,
claro — um curso mais prático e com boas saídas profissionais, como informática
ou medicina, escolhi filosofia por me parecer a opção mais oposta entre as que
me eram oferecidas, nem prático nem útil em termos de carreira futura, uma vez
que não tinha a menor intenção de me dedicar ao ensino.
Mas as coisas começaram a correr mal logo
nos primeiros dias. Por muito que tentasse — e acreditem, esforcei-me ao máximo,
a ponto de me chamarem o Sr. Intervenções! — nunca conseguia que professores ou
colegas se comprometessem com uma opinião para poder então escolher a oposta.
Nunca havia factos, se alguém citava uma fonte, logo meia dúzia de vozes se
erguiam a citar outras diferentes ou opostas. Um verdadeiro pesadelo!
Nem sei como consegui sobreviver ao
primeiro ano letivo, penso que não tive um único momento de felicidade exceto
nos poucos dias de férias de Natal e Páscoa que decidi passar em casa para
poder voltar à minha rotina. O verão chegou mesmo na altura certa, não sei se
resistiria a mais uma semana daquele ambiente profundamente perturbador para
alguém como eu. Nem imaginam o prazer que foi voltar à companhia de familiares
e conhecidos, todos muito opinativos e que me proporcionavam dezenas de ocasiões
diárias para exercer a minha liberdade de dizer e fazer o contrário.
Só voltei para o segundo ano da faculdade
porque todos esperavam que não o fizesse. E por uma vez na vida, devia tê-los
escutado.
Nem de propósito, um dos primeiros assuntos
a vir à baila no início do ano letivo foi o tema da liberdade. Já não recordo o
que foi dito, mas houve uma pergunta de um colega — amaldiçoado seja para
sempre! — que me marcou profundamente. Foi simplesmente esta:
“Ao fazermos o que nos é proibido não
estaremos a deixar-nos controlar por quem fez a proibição?”
Na altura, a pergunta até passou
despercebida, como muitas outras, aliás, naquelas aulas de discussão livre.
Infelizmente, eu tinha-a ouvido e nos dias que se seguiram não conseguia pensar
noutra coisa. Afetou-me tipo sismo de grau 9 na escala Richter ou como aquele
tsunami do dia após o Natal. Toda a minha existência, todo o meu conceito de
liberdade tinham como pedra angular o critério de fazer o oposto do que me
diziam. Mas quanto mais pensava no assunto, mais via que aquele colega maldito
tinha razão, eu fora sempre controlado pelos outros e a minha tão gabada
liberdade resumia-se a uma mão cheia de nada.
Profundamente deprimido, deixei de ir às
aulas, fechava-me no quarto alugado saindo apenas de vez em quando para
arranjar alguns mantimentos que fazia durar o mais possível. Quando a bolsa me
foi retirada por incumprimento escolar e o dinheiro acabou, comecei a fazer
pequenos roubos para me sustentar uma vez que a ideia de voltar para casa
naquele estado me enchia de pavor, o pavor de não saber como reagir ou que
dizer quando surgissem os inevitáveis conselhos e sugestões sobre o que fazer a
seguir. Acabei inevitavelmente por ser preso e condenado.
Os primeiros dias na cadeia devolveram-me
um pequeno grau de felicidade, com poucas opções não se punha muitas vezes o
dilema de fazer o que me mandavam — coartando assim a minha liberdade — ou de fazer
o oposto, com o mesmo resultado de acordo com o tal colega. Mas isso pouco
durou, era uma cadeia de baixa segurança e entre presos e guardas enfrentava
diariamente vários atentados à minha liberdade.
Mesmo assim, sempre era melhor que a vida
lá fora. Infelizmente, o meu crime não fora grave e a pena curta a que fora
condenado em breve terminaria, lançando-me de novo nas agruras de uma vida
repleta de decisões. Voltou a depressão, que nunca tinha desaparecido
totalmente, e só não passava os dias enfiado na cama porque não podia. Sabia ao
segundo o tempo que me restava naquele santuário, imperfeito, é certo, mas bem
melhor do que a alternativa.
Até que tive uma ideia brilhante. Ataquei
ferozmente dois guardas e num novo julgamento fui condenado a uma pena bem mais
severa e enviado para uma prisão de alta segurança e com regras bem mais
rígidas. Durante uns tempos as coisas melhoraram, mas o peso da meia dúzia de
decisões que tinha de tomar diariamente começou a ser esmagador. Repeti pois a
dose, atacando desta vez um dos outros presos.
Estou agora em solitária, ou o que passa
por ela neste país de brandos costumes. Fico simplesmente fechado na cela a
maior parte do tempo, com apenas uma hora diária de passeio solitário no pátio
e uma ida ao banho. Vejo apenas os guardas que me acompanham nessas saídas e os
que me trazem o indispensável à cela e não falo com ninguém. A comida é-me simplesmente
trazida, sem opções, e sei que se não a comer, azar, passo fome até à refeição
seguinte. Não há horas certas para dormir ou fazer seja o que for e como estou
proibido de ter visitas nem sequer tenho de decidir se as quero ou não ver, Enfim,
passo dias a fio sem enfrentar um único dilema, acatar ou ser contra.
Estou livre, finalmente!
Imagem de Tumisu por Pixabay
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