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domingo, 20 de setembro de 2020

A LÁGRIMA E O SÊMEN



“Narciso em férias”, o documentário do Caetano Veloso, ainda ecoava dentro de mim, quando lembrei do meu primeiro namorado: Rubens. Foi o primeiro amor, a primeira vez que um homem -  um menino afobado, atrapalhado e muito intenso - conhecia minhas entranhas em profundidade. Diferente da estreia das minhas amigas, foi bom, muito bom, bom demais. 

Por que Rubens sai do fundo do baú e encontra Caetano flanando pelas minhas veias? Estranho. Logo ele, o garoto bonito, que se esvaiu pelos destinos que o tempo e a vida cuidaram de dispersar.


 “Narciso em férias” me arrebatou, não com a inocência da minha primeira paixão pós adolescente, mas com maturidade de refletir sobre a vida. Durante um tempo que me soou eterno, as palavras de Caetano, seus silêncios, seus olhares, suas lágrimas e a clareza da sua fala baiana mansa e feroz me provocaram a assistir cenas reais. Nem precisei fechar os olhos. Bastou olhar bem para sua eloquência terna para ver o jantar do general torturante, o soldadinho incauto que lhe espetava o fuzil nas costas caminhando pelas alamedas pseudo bucólicas de um quartel, a imundície da solitária, as frases do jornal amarelo, o sargento que burlou o oficial do dia e permitiu que sua mulher Dedé passasse um tempo de amor e sexo com um prisioneiro que não sabia por que estava lá, a estupidez do relatório de tosca redação, o primeiro olhar para a foto da Terra tão distante daquela masmorra, o riso nervoso incontido, a lágrima transbordante, o sêmen jorrado. 

Tanta coisa a mexer comigo, tanta história bruta imaginada revelada tardia, tanta poesia, tanta tristeza, tanta ternura nos olhos de quem tanto sofreu sem mais nem porquê, porra, fui logo lembrar do Rubens.

No momento em que Caetano filosofa sobre a similaridade da lágrima e do sêmen, o choro e a ejaculação como duas explosões sinceras e expressivas do espírito que nos habita, o avesso do vazio a que ele fora submetido, lembrei que quando gozei logo na primeira vez, quando senti Rubens escorrendo para a fora de mim, melando meus pelos (afobado, não carecia tal precaução. Eu já andava com a pílula na bolsa), senti exatamente um incontido manifesto das entranhas imateriais, o chamado orgasmo compartilhado com um suposto grande amor. E cai em prantos na hora.

Hoje sinto que foi menos pelo Rubens, o menino bonito, estabanado e gostoso, meu troféu disputado pelas colegas da faculdade, e mais pelo divisor de águas que a vida tinha me apresentado.

Hoje acordei com saudade curiosa do Rubens. Tanto tempo. Tantas vidas se sobrepuseram sobre aquelas horas no motel. Mas eis que sou persistente. Eis que existe Facebook. Eis que uma avó cinquentona espera o marido e o filho que ainda mora em casa dormirem, para mergulhar no computador.

Rubens. De quê? Carvalho? Cardoso? Cordeiro? Cordeiro! Está aqui. Fartos cabelos prateados, fortão, malhadão, barba rente grisalha, rei leão afrodisíaco, cercado da mulher alourada, um casal e três crianças, netos, supus. Não me detive em detalhes, pedi para ser meu amigo. Ele topou na hora e, não demorou muito, apareceu no Messenger acenando com aquela mãozinha.

- Oi, Lucia!

- Lucinha, eu mesma.

- Tanto tempo!

- É, Rubens. A vida voa.

- Lu. Lulunática. Você me chamava de Bim.

- Isso. Bim. Bimbim.

- Lu, me diga. Por que de repente? A essa hora?

- Insônia.

- Também sofro disso.

- Como está você, Bim?

- Caramba! Mais de 30 anos. Não sei por onde começar.

- Tempo da faculdade.

-  Impressionante, Lulunática, estou sentindo uma coisa.

- Também estou sentindo a mesma coisa.

- O que?

- Uma volta no relógio. Uma vontade de sei lá o quê.

- Gozado. Parece que o tempo não passou.

- Onde foi que paramos mesmo, Bim?

- Sei lá. Acho que quando fui estudar em Boston.

- Me lembro. Choramos no aeroporto. Muito boba eu.

- Acabei ficando por lá. 

- Não tinha internet para achar os sumidos.

- Que pena. 

- Seguiu na Engenharia?

 - Não. Economia. Voltei pro Rio, abri um banco e vendi o banco.

- Tá rico.

- Modestamente. E você?

 - Jornalista.

- Você sempre escreveu bem.

- Modestamente.

 - Kkkkkkk.

 - Kkkkkkk.

- E agora?

- Ah, avó, escritora, professora, metida a cozinhar.

- O agora que eu disse foi sobre nós. Já que você me achou, quando a gente se encontra?

- Hummm... assim você me desconcerta.

- Muitas histórias deixamos passar. O que perdemos, o que ganhamos...

- Um balanço?

- Por aí. Mas, por que lembrou de mim?

- Ah, bobagem...

- Diz, Lulunática!

 - Acabei de ver “Narciso em Férias”. Tem uma passagem que me lembrou nossa primeira vez no motel.

- Nossa! Você é direta!

- Como direta? Foi só um flash, sem intenção de flashback. Só para arrumar as fotos

no baú.

 - Sei....

- Juro.

- Jura mesmo?

- Kkkk ... mais ou menos.

- Então... o que mesmo que você viu e lembrou da gente?

- “Narciso em Férias”. O documentário sobre Caetano Veloso preso pela ditadura...

- Caetano Veloso? Você vê aquele baiano viado subversivo comunista e lembra logo

de mim???

Não respondi. Bloqueei o sujeito e chorei de novo. Sou uma velha boba.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
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