Vociferei, com todos os ares do pulmão, a
quem quisesse ouvir: “Chega! Acabou a palhaçada! Vocês terão o que merecem!”. Quis
dizer mais, mas a educação me traiu. A atmosfera, sempre confusa, caótica,
fechou mais sobre mim.
Não queira saber a cara de espanto da
megera Carmina, declarando o descomunal ultraje; mas, atadas às convenções
sociais, tentou logo colocar panos quentes e abafar o princípio de incêndio. O
todo poderoso Demóstenes, um homem carrancudo, arrogante, com o qual troquei
ligeiras e precisas palavras, não contou pipoca e questionou a minha sobriedade,
fazendo pouco caso: “Esse daí virou a cabeça de vez; maluco beleza…”. E o
detalhe: falava sem olhar para mim, confirmando o fascínio pelo escárnio.
***
Para que possa entender, a cena se
desenrolou numa manhã de sábado, com o alvoroço de gente que não parava de
entrar: primos, tias, avós, todos com os seus respectivos companheiros e,
pasmem, amigos de amigos, sucessivamente, em plena pandemia. A situação, como
se pode perceber pela explosão que sucedeu, era comum, em quaisquer momentos,
manhã, tarde, noite e madrugada. E, convencidos de que eu não teria direito de
sequer reclamar, acochavam-me contra as paredes da casa; espremiam-me ao
extremo, a ponto de perder facilmente o fôlego.
Natália, à parte de se portar como boa
namorada, procedia segundo os ditames disformes da casa, ao deus-dará; jamais
se preocuparia comigo; ou não teria forças para lutar contra os acontecimentos.
De certa forma, tentava entender, porque, por mais complicada que fosse a zona,
era o ambiente possível, no qual estava acostumada a viver; não sabia, nem se
esforçava para saber, de outra vida.
Eu, claro, era uma mosca que ocupava,
temporariamente, como frisou seu pai, o ambiente sagrado. Desde que saí de
Itatinga, da casa de meus pais, para estudar e trabalhar, para dar cabo de
minha vida, com a esperança de ser independente, não seria capaz de supor a
desordem que se avizinhava. Não abria a boca para formular uma frase, pois que
era constantemente interrompido pelo irmão ciumento, o Daniel, que me testava
não só a paciência, mas também os conhecimentos, colocando-se num pedestal,
como sendo o aluno mais brilhante que havia em toda a história da grande
cidade. Exageração barata, egocentrismo, que me enojava. Repetia os passos do
pai, que não parava de se gabar a quem chegava; que havia trabalhado como alto
funcionário da Vale, desvinculando-se, óbvio, dos fatos recentes, “da época em
que havia gente séria…”.
A grande questão, o que a leitora já pode
inferir, é que o ambiente era hostil para um ser interiorano, acostumado à calmaria
– algo que não ajuizei enfrentar, assim, de cara – e lidar, também, com as
oscilações de humor de todos os entes que coabitavam o recinto. Ademais, a
leitora pode me achar um sujeito ingrato. Falo de coração que me culpei desde o
primeiro dia ali instalado; que seria problema meu; que deveria ser dócil,
paciente; que estavam me fazendo uma grande bondade. Mas, não, posso confirmar,
há áudios que gravei para não sair, no momento devido, como o ruim, mau,
propriamente mal-agradecido.
Logo no primeiro dia, Natália, que conheci
pela internet e que me ajudou a passar no vestibular para Medicina, na USP – na verdade, a ajuda resultou mútua –, me alocou
no quarto destinado a um funcionário que estava de férias, contando que, dentro
de um mês, no máximo, eu procurasse o meu lugar; esse era o decreto: “Pois é, Gustavo,
não somos acostumados a visitas demoradas… namoramos há pouco tempo, e o papai
não compactua muito com essa ideia de namorado em casa”.
Como cheguei no começo da tarde, esperava,
ansioso, o almoço, ou o que tinha sobrado deste; nunca tive besteira em comer
comida requentada. Carmina, mãe de Natália, mal tendo acomodado minhas coisas
no quarto, me alertou que o almoço era rigorosamente às 12h30min; que estava
deveras atrasado; e que não havia mais tempo de preparar algo, sobretudo porque
preparava o almoço “contado”, para não haver desperdício. Até então entendi,
com um pé atrás, porque poderia, se quisesse fazer uma gentileza, preparar um
ovo mexido, um sanduíche, etc. e tal. Contudo, sem cerimônias, despachou-me com
poucas palavras e fui, por isso, cansado e esfarrapado da noite mal dormida,
obrigado a buscar qualquer coisa no bairro; e me custou andar cerca de dois
quilômetros para encontrar um posto de conveniência com preços acessíveis.
No segundo dia, também descobri que o café
da manhã se dava, “rigorosamente”, às 6h30min, visto que se habituaram com os
horários do chefe de família; então, mais uma vez, passei por debaixo da mesa,
como diz a expressão. Comi duas bananas que Natália me deu, escondida, pelo
visto, pois que aparentava bastante nervosismo, como se me passasse um
contrabando.
No quarto emporcalhado, entre cupins e
mofos, me deitei e comecei a ler um livro chamado A estepe, de Anton
Tchekhov, para vagar pelos campos infinitos, imaginar a natureza e conjecturar
algum ar – quando fui surpreendido pelas batidas do chefe, como era chamado
pelos seus, declarando que eu não passasse muito tempo trancado; que, aliás,
não permitia as portas trancadas, sob o risco de confiscar a chave.
Abri a porta atordoado com o atropelo, às
oito da manhã, como se estivesse num quartel, com horas bem definidas, sem
qualquer critério para tal. Lembrei-me imediatamente de minha casa, na qual
estudava por horas a fio, só, sem ser perturbado por meus pais, que entendiam e
apoiavam os meus desejos. O chefe se sentou na cama, ou o que se pode deduzir
que seja, e declarou, pausadamente, forçando cada sílaba, que eu não me
atrevesse a fazer besteira com sua filha, muito bem educada; que, se algo
acontecesse, antes de me pôr para fora, deixaria profundas marcas em meu corpo.
A insinuação veio como uma bomba,
especialmente porque Natália me provocava, sem perder o olhar inocente, para
parecer boa moça; como se quisesse, sórdida, incitar os meus instintos.
Inteligente que era, não mandou nenhuma mensagem mais quente pelo celular, o
que seria proveitoso para mim, caso seu pai insistisse na perseguição. Ao
contrário, pegava-me, em algum momento de distração e apertava meu corpo, sem
constrangimento; dedilhava a porta do quarto, na madrugada – sentia os seus
intentos macabros. Um frio indescritível percorria a minha espinha, com o medo
de ser confundido; como se eu estivesse “dando em cima” da menininha inocente.
O primeiro almoço foi um suplício. Todos,
inclusive Natália, olhavam-me fixamente, de cima a baixo, com desdém. O chefe
deu início a um interminável questionário: de que família era; o que meus pais
faziam; o que pretendia para a vida e com a sua filha; quais seriam as minhas
notas, etc., etc., etc., sem deixar de me rebaixar, com linguajar torpe,
declarando, sem meias palavras, que a vida em São Paulo era difícil para gente mixuruca;
que o mercado da medicina – algo que nunca tinha ouvido: “mercado da medicina”;
pensava em cuidar de pessoas, unicamente – era bastante competitivo; e, para
fechar, que não via em mim a marca do sucesso. Engoli a comida para não ser
indelicado, controlando os ímpetos, sendo afrontado com risos nervosos,
inclusive de Natália, de quem menos esperava; a moça de voz mansa, e, ao que
parecia de início, calma.
No mesmo dia, o segundo, não consegui
jantar. Também, não houve qualquer contato da família nesse sentido. Experimentei,
de certa forma, o alívio. Planejava sair pela manhã, comer o que conseguisse na
rua, ajeitar a minha matrícula na universidade e procurar um canto para ficar.
Levantei-me às sete, quando não existia
farelo de comida sobre a mesa. Fui até a porta nas pontas dos pés, para não ter
de falar com ninguém, e Natália surgiu de não sei onde. Os planos ruíram, já
que ela insistia em me acompanhar, alegando que precisava me ajudar; que eu não
conhecia a cidade e poderia me perder.
Rodamos a cidade, em passos lentos.
Natália estava pronta para me atacar. Tentou me prender num parque, sob o
pretexto de a faculdade estar o dia todo aberta; que não precisávamos de
aperreio. Caí, como um patinho, na lábia experiente, treinada. Apesar disso, me
socorreu uma sensação de terror, pensando que o chefe poderia estar à espreita,
caçando um motivo para me pegar. Larguei-a e pedi que me acompanhasse em paz,
razão que a fez ferver na rua movimentada e despejar em mim as piores palavras,
as quais nunca teria ouvido; que era frouxo, mentiroso, aproveitador,
preguiçoso e feio. Não entendi o preguiçoso e feio, visto que pensei que estava
comigo justamente pelo contrário.
Ela, por si mesma, chamou uma amiga e
resolveu seguir o seu rumo, sem mim. Agradeci a Deus e suplicava por uma
solução rápida; não aguentaria mais um dia.
Infelizmente, tive de aguentar. Na
faculdade me avisaram que a matrícula deveria ser feita pela internet. Viagem
perdida. Minhas expectativas foram frustradas e, além do mais, estava arrasado
com o engodo em que havia me metido.
Passei o maior tempo possível nas ruas.
Consegui concluir a matrícula através de um computador instalado num prédio
público. Voltei a casa às 19h, sendo recepcionado pelo olhar severo do Daniel,
que nem sequer respondeu ao meu “boa-noite”. Não foi um problema não me
encontrar com Natália. A mãe irrompeu o tempo, antes que entrasse no quarto,
para dizer que Natália estava indisposta, com dor de cabeça; que não a
perturbasse.
Conferi o celular no quarto, depois do
banho, estando mais relaxado; e vi duas longas mensagens de Natália, assumindo
o erro de ter aceitado o namoro; que queria conversar seriamente, porque a
família não me suportava; que o chefe já havia decretado que resolvesse a
situação, pois não admitiria viver com alguém tão feio e preguiçoso.
Mais uma vez, liguei o alerta. Mas como,
se eles não sabiam de minha luta, estudando e trabalhando desde novo, sem nunca
tirar um dia de férias? O feio era a designação que não acreditava; não me
conformava. Como falavam assim de mim abertamente? Fui ao espelho e a única
diferença visível, para os que estavam ali, seria a cor. Sim, a cor mestiça,
cabocla, da qual tenho tanto orgulho.
Foi a primeira vez que percebi o desprezo:
o brutal racismo. Acordei cedo, no dia 29 de agosto de 2020, esperei que todos
estivessem ao redor da mesa para soltar parte do que havia em meu coração.
De lá, parti para a delegacia. Entreguei
todos os áudios, mensagens, inclusive vídeos que fiz à socapa, dois, com as
caras bem expostas de nojo à minha figura. O inquérito foi aberto. Mas,
destruído, não quis acompanhar de perto; voltei à minha cidade e esperei os
nervos acalmarem para tocar a vida, de novo, na grande cidade.
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