A
comunidade era constituída por doze vizinhos. Habitavam uma encosta
suave e viviam de vegetais e de alguma criação. A água era a
grande riqueza de que todos careciam. Em estações húmidas, uma
única nascente alimentava a várzea. Escorria para uma charca a céu
aberto e represava, enquanto a escuridão era vagamente atenuada pela
luminosidade espetral que se escapava da imensa bola do planeta
vizinho. Em tempos secos, era preciso pôr bestas potentes a puxá-la
da fundura do poço adjacente à presa. Quando o Sol se fazia ver, a
temperatura subia um pouco e era tempo de libertar a água retida.
Seguia por uma levada ao longo de sete ou oito nek,
onde se bifurcava. Como se bifurcava em cada um destes ramais
secundários e nos seguintes, até atingir as doze leiras dos
moradores.
A
água era pouca, era sempre pouca. Nunca passou pela cabeça de
ninguém um sistema de rega automática — um fluxo contínuo de
água para todos ao mesmo tempo. Havia que compartilhá-la à vez. Um
único vizinho recebia toda a água que a represa vertia e conduzia-a
para a sua plantação. Durante uma lonk
completa. Não eram precisos mecanismos complicados para medir o
tempo; uma rocha a pique com doze furos fazia a medição com o rigor
desejado. Cada vizinho sabia que, quando a luz solar batesse no fundo
do seu buraco, era tempo de cortar a água ao vizinho anterior e
conduzi-la para o seu campo. Quando a sua vez estava próxima,
postava-se a vigiar a pedra da rega. Depois, partia em corrida até
ao ponto de corte. Cada gota perdida para o vizinho constituía uma
perda para as suas plantas.
Goji
andava desconfiado. As tufae
de Andi cresciam mais e com mais vigor que as suas. Goji suspeitava
que o vizinho trapaceava o sistema. Talvez abrisse a água para si,
em período de defeso comum. É certo que, mesmo que não houvesse
sol, quando o olho vermelho do grande planeta Zois se mostrava, havia
luminosidade suficiente para trabalhar no campo. Embora esse fosse um
interdito aceite por todos. Mas há sempre pecadores. Eram conhecidos
casos antigos de vizinhos que tinham violado a proibição e tinham
sido violentamente sancionados. Talvez houvesse novo pecador na
comunidade.
No
período carmim seguinte, Goji saiu para os campos. A várzea de Andi
estava deserta, mas esplêndida de viço, naquele lusco-fusco rosado.
E que bem organizada estava! Talvez a rega nem precisasse de acompanhamento. Goji calculou que aquelas tufae
teriam quase o dobro de altura das suas. Admiráveis. Lindas.
Pareciam ter sido regadas há poucas lonk.
Dirigiu-se para a distante pedra da rega ao longo da vala que
abastecia Andi. Umas passadas dadas, percebeu que o rego parecia bem
mais seco que a várzea. Voltou atrás e, aguçando o olhar, pôs-se
a sondar todo o perímetro do campo de Andi. Nessa altura, uma sombra
escureceu por momentos o solo. Voltou-se e avistou uma massa escura e
arredondada que cruzava lentamente o céu em frente do olho de Zois,
mas que desapareceu daí a pouco. Goji não conseguiu dizer-se o que
seria. Sentiu um arrepio. Tinha as suas superstições. Mas o empenho
em descobrir o que se passava com a várzea de Andi era mais forte.
Pouco depois, descobriu um indício prometedor: um estreito buraco no
chão, no limite do campo. Podia chegar água por ali. Mas de onde
vinha? E quando?
Daí
a várias lonk
voltou o sol. Goji batucou fortemente o pote sonante — uma enorme talha de barro seco —, a pedir reunião da comunidade. Iniciada a
assembleia, expôs as suas suspeitas e as razões para elas. Começou
por ver censuradas as suspeitas e foi acusado de má vizinhança.
Convencido dos seus motivos, reafirmou e enfatizou a questão. O
grupo acedeu por fim a visitar a várzea de Andi e a verificar o
buraco suspeito. O caso revelou-se grave. Depois de sondagens e
escavações, ficou a perceber-se qual o esquema fraudulento de Andi:
um tubo captava furtivamente um diminuto fio de água no início da
levada, de cada vez que a represa abria, e era armazenado numa
cisterna subterrânea. Quando se iniciava o período de escuridão e
ninguém andava pelos campos, Andi abria essa cisterna para a sua
várzea, que estava preparada para uma distribuição uniforme
automática.
A
descoberta gerou uma violenta resposta do grupo defraudado. O visado
ficou lívido ao perceber que tinha sido exposto e as consequências
que daí adviriam. Logo ali lhe tolheram os membros e arrastaram-o
para a pedra da rega. Um julgamento sumário ditou ser a ela amarrado
e açoitado com doze vergastadas de cada um.
A
expedição a Europa não era a primeira. Várias outras tinham
explorado os satélites de Júpiter, com especial atenção para os
que apresentavam água. A de 1989 tinha sido especialmente fértil em
dados geológicos, mas agora — 2022 — as preocupações eram de
outro tipo: avaliar as condições de habitabilidade, quer de Europa,
quer de Io, Ganimedes e Calisto, e iniciar a instalação da primeira
colónia terrestre. Os outros satélites não pareciam ter dimensão
nem características propícias para uma colonização em massa.
Seis
cientistas rumaram a Júpiter — viagem dura, nunca tentada por
missões tripuladas. Cinco anos durou a viagem, com rotação de
períodos de semi-hibernação induzida. Por fim, à aproximação ao
gigante gasoso, todos assumiram a vigília. Depois de umas semanas de
órbitas a Júpiter, quatro partiram num módulo intermédio para
orbitar Europa e só depois três fizeram a descida numa sonda
independente. Todo o cuidado era pouco.
Pousaram
a sonda numa zona predefinida, cujos registos indicavam presença de
água. Havia esperança que essa provável água tivesse criado
condições para o aparecimento de vida, ainda que apenas vegetal ou
pré-vegetal. A zona situava-se na face sempre voltada para o planeta
gigante, mas que naquela altura não estava iluminada pelo sol. Em
coordenação com o membro que ficara em órbita do satélite, os
cientistas iniciaram medições e registos. As condições
apresentavam-se prometedoras: alguma água, sim, temperaturas baixas,
mas não impeditivas de vida, algum oxigénio não biológico. Uns
dias jovianos depois, decidiram a primeira saída.
Um
casal de cientistas saiu, rodeado de cautelas. A gravidade é baixa, exigiu
alguma adaptação. Durante uns dias, fizeram pequenas explorações
locais, limitadas em tempo e extensão. Parecia possível a
existência de vida. Redobraram cuidados, para perturbarem ao mínimo
o que quer que pudessem encontrar. Aos poucos, alargaram a extensão
da área explorada. Então, certa vez, ao atingirem o limiar de um vale, confirmaram emocionados o que constituía o objetivo daquela viagem: a existência de vida em Europa. Pequenas áreas
planas mostravam-se cobertas do que parecia uma viçosa penugem
vegetal. Claramente com acesso a água. Naquele momento de aperto na garganta, só os olhares brilharam,
no isolamento relativo dos estanques fatos de exploração.
Como conseguiram, comunicaram o achado à cientista, que, na sonda, atenta a uma miríade de pequenos ecrãs, já tinha intuído o que os companheiros tinham encontrado. Logo depois — quase os pisaram —, acreditaram estar
perante uma incipiente forma de vida animal: uma dúzia do que pareciam minúsculos pulgões movimentava-se em volta de um grão de areia
pontiagudo, ao qual um deles parecia amarrado. Cautelosamente, efetuaram registos visuais, bioquímicos e físicos preliminares, cientes do momento histórico que viviam. Umas horas depois, já a bordo da sonda, lançaram, solenes e orgulhosos, a novidade em direção ao Sol.
— Hoje
é um grande dia para a Humanidade! — proclamou a bióloga Jennifer, enfaticamente. Depois de uma pausa adequada ao momento, continuou: — Europa possui vestígios de água e revela-se propício à vida. Não devemos esperar encontrar formas de vida inteligente, mas registámos formas vegetais e animais, claramente, elementares... — nova pausa. — A colonização está ao nosso alcance! Um pequeno satélite nos confins do Sistema Solar, uma nova casa para o Homem!
A
resposta da Terra, a mais de setecentos milhões de quilómetros,
chegou hora e meia depois: um grito em uníssono da enorme equipa em
rede protegida por máscaras. Em direto para todos os meios de
comunicação mundiais. A ecoar em todos os lares em confinamento
social. Um mesmo sentimento de comunhão fraterna e de esperança
unia todos os homens. Não havia tempo a perder.
Joaquim
Bispo
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Este
conto foi um dos 22
selecionados para compor a coletânea
“O Espantoso Mundo da Antecipação” da
Elemental Editoração, Brasil, 2020.
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Imagem:
Henri Matisse,
O ramalhete,
1953.
Museu
Hammer (Universidade
da
Califórnia),
Los Angeles.
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