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terça-feira, 25 de agosto de 2020

Uma nova casa para o Homem


A comunidade era constituída por doze vizinhos. Habitavam uma encosta suave e viviam de vegetais e de alguma criação. A água era a grande riqueza de que todos careciam. Em estações húmidas, uma única nascente alimentava a várzea. Escorria para uma charca a céu aberto e represava, enquanto a escuridão era vagamente atenuada pela luminosidade espetral que se escapava da imensa bola do planeta vizinho. Em tempos secos, era preciso pôr bestas potentes a puxá-la da fundura do poço adjacente à presa. Quando o Sol se fazia ver, a temperatura subia um pouco e era tempo de libertar a água retida. Seguia por uma levada ao longo de sete ou oito nek, onde se bifurcava. Como se bifurcava em cada um destes ramais secundários e nos seguintes, até atingir as doze leiras dos moradores.
A água era pouca, era sempre pouca. Nunca passou pela cabeça de ninguém um sistema de rega automática — um fluxo contínuo de água para todos ao mesmo tempo. Havia que compartilhá-la à vez. Um único vizinho recebia toda a água que a represa vertia e conduzia-a para a sua plantação. Durante uma lonk completa. Não eram precisos mecanismos complicados para medir o tempo; uma rocha a pique com doze furos fazia a medição com o rigor desejado. Cada vizinho sabia que, quando a luz solar batesse no fundo do seu buraco, era tempo de cortar a água ao vizinho anterior e conduzi-la para o seu campo. Quando a sua vez estava próxima, postava-se a vigiar a pedra da rega. Depois, partia em corrida até ao ponto de corte. Cada gota perdida para o vizinho constituía uma perda para as suas plantas.
Goji andava desconfiado. As tufae de Andi cresciam mais e com mais vigor que as suas. Goji suspeitava que o vizinho trapaceava o sistema. Talvez abrisse a água para si, em período de defeso comum. É certo que, mesmo que não houvesse sol, quando o olho vermelho do grande planeta Zois se mostrava, havia luminosidade suficiente para trabalhar no campo. Embora esse fosse um interdito aceite por todos. Mas há sempre pecadores. Eram conhecidos casos antigos de vizinhos que tinham violado a proibição e tinham sido violentamente sancionados. Talvez houvesse novo pecador na comunidade.
No período carmim seguinte, Goji saiu para os campos. A várzea de Andi estava deserta, mas esplêndida de viço, naquele lusco-fusco rosado. E que bem organizada estava! Talvez a rega nem precisasse de acompanhamento. Goji calculou que aquelas tufae teriam quase o dobro de altura das suas. Admiráveis. Lindas. Pareciam ter sido regadas há poucas lonk. Dirigiu-se para a distante pedra da rega ao longo da vala que abastecia Andi. Umas passadas dadas, percebeu que o rego parecia bem mais seco que a várzea. Voltou atrás e, aguçando o olhar, pôs-se a sondar todo o perímetro do campo de Andi. Nessa altura, uma sombra escureceu por momentos o solo. Voltou-se e avistou uma massa escura e arredondada que cruzava lentamente o céu em frente do olho de Zois, mas que desapareceu daí a pouco. Goji não conseguiu dizer-se o que seria. Sentiu um arrepio. Tinha as suas superstições. Mas o empenho em descobrir o que se passava com a várzea de Andi era mais forte. Pouco depois, descobriu um indício prometedor: um estreito buraco no chão, no limite do campo. Podia chegar água por ali. Mas de onde vinha? E quando?
Daí a várias lonk voltou o sol. Goji batucou fortemente o pote sonante — uma enorme talha de barro seco —, a pedir reunião da comunidade. Iniciada a assembleia, expôs as suas suspeitas e as razões para elas. Começou por ver censuradas as suspeitas e foi acusado de má vizinhança. Convencido dos seus motivos, reafirmou e enfatizou a questão. O grupo acedeu por fim a visitar a várzea de Andi e a verificar o buraco suspeito. O caso revelou-se grave. Depois de sondagens e escavações, ficou a perceber-se qual o esquema fraudulento de Andi: um tubo captava furtivamente um diminuto fio de água no início da levada, de cada vez que a represa abria, e era armazenado numa cisterna subterrânea. Quando se iniciava o período de escuridão e ninguém andava pelos campos, Andi abria essa cisterna para a sua várzea, que estava preparada para uma distribuição uniforme automática.
A descoberta gerou uma violenta resposta do grupo defraudado. O visado ficou lívido ao perceber que tinha sido exposto e as consequências que daí adviriam. Logo ali lhe tolheram os membros e arrastaram-o para a pedra da rega. Um julgamento sumário ditou ser a ela amarrado e açoitado com doze vergastadas de cada um.

A expedição a Europa não era a primeira. Várias outras tinham explorado os satélites de Júpiter, com especial atenção para os que apresentavam água. A de 1989 tinha sido especialmente fértil em dados geológicos, mas agora — 2022 — as preocupações eram de outro tipo: avaliar as condições de habitabilidade, quer de Europa, quer de Io, Ganimedes e Calisto, e iniciar a instalação da primeira colónia terrestre. Os outros satélites não pareciam ter dimensão nem características propícias para uma colonização em massa.
Seis cientistas rumaram a Júpiter — viagem dura, nunca tentada por missões tripuladas. Cinco anos durou a viagem, com rotação de períodos de semi-hibernação induzida. Por fim, à aproximação ao gigante gasoso, todos assumiram a vigília. Depois de umas semanas de órbitas a Júpiter, quatro partiram num módulo intermédio para orbitar Europa e só depois três fizeram a descida numa sonda independente. Todo o cuidado era pouco.
Pousaram a sonda numa zona predefinida, cujos registos indicavam presença de água. Havia esperança que essa provável água tivesse criado condições para o aparecimento de vida, ainda que apenas vegetal ou pré-vegetal. A zona situava-se na face sempre voltada para o planeta gigante, mas que naquela altura não estava iluminada pelo sol. Em coordenação com o membro que ficara em órbita do satélite, os cientistas iniciaram medições e registos. As condições apresentavam-se prometedoras: alguma água, sim, temperaturas baixas, mas não impeditivas de vida, algum oxigénio não biológico. Uns dias jovianos depois, decidiram a primeira saída.
Um casal de cientistas saiu, rodeado de cautelas. A gravidade é baixa, exigiu alguma adaptação. Durante uns dias, fizeram pequenas explorações locais, limitadas em tempo e extensão. Parecia possível a existência de vida. Redobraram cuidados, para perturbarem ao mínimo o que quer que pudessem encontrar. Aos poucos, alargaram a extensão da área explorada. Então, certa vez, ao atingirem o limiar de um vale, confirmaram emocionados o que constituía o objetivo daquela viagem: a existência de vida em Europa. Pequenas áreas planas mostravam-se cobertas do que parecia uma viçosa penugem vegetal. Claramente com acesso a água. Naquele momento de aperto na garganta, só os olhares brilharam, no isolamento relativo dos estanques fatos de exploração. Como conseguiram, comunicaram o achado à cientista, que, na sonda, atenta a uma miríade de pequenos ecrãs, já tinha intuído o que os companheiros tinham encontrado. Logo depois — quase os pisaram —, acreditaram estar perante uma incipiente forma de vida animal: uma dúzia do que pareciam minúsculos pulgões movimentava-se em volta de um grão de areia pontiagudo, ao qual um deles parecia amarrado. Cautelosamente, efetuaram registos visuais, bioquímicos e físicos preliminares, cientes do momento histórico que viviam. Umas horas depois, já a bordo da sonda, lançaram, solenes e orgulhosos, a novidade em direção ao Sol.
Hoje é um grande dia para a Humanidade! — proclamou a bióloga Jennifer, enfaticamente. Depois de uma pausa adequada ao momento, continuou: — Europa possui vestígios de água e revela-se propício à vida. Não devemos esperar encontrar formas de vida inteligente, mas registámos formas vegetais e animais, claramente, elementares... — nova pausa. — A colonização está ao nosso alcance! Um pequeno satélite nos confins do Sistema Solar, uma nova casa para o Homem!
A resposta da Terra, a mais de setecentos milhões de quilómetros, chegou hora e meia depois: um grito em uníssono da enorme equipa em rede protegida por máscaras. Em direto para todos os meios de comunicação mundiais. A ecoar em todos os lares em confinamento social. Um mesmo sentimento de comunhão fraterna e de esperança unia todos os homens. Não havia tempo a perder.

Joaquim Bispo

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Este conto foi um dos 22 selecionados para compor a coletânea “O Espantoso Mundo da Antecipação” da Elemental Editoração, Brasil, 2020.

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Imagem: Henri Matisse, O ramalhete, 1953.
Museu Hammer (Universidade da Califórnia), Los Angeles.

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