Espero
e temo este dia há semanas e ei-lo que chegou, finalmente. É o nosso dia, o
nosso vigésimo aniversário de casados, o vigésimo segundo da nossa vida em
comum e o vigésimo terceiro da data em que nos conhecemos.
Na
solidão profunda destes últimos meses tenho pensado muito em nós, no que fomos
e no futuro que poderíamos ter tido. Dei por mim a recordar detalhes que
pensava esquecidos, a primeira vez que te vi, magro como um espeto e com um ar
perdido no meio de um grupo turbulento, o primeiro presente que me deste,
totalmente desadequado mas bem típico do teu alheamento às convenções, as
trocas de olhares cúmplices quando ouvíamos ou víamos algo a que reagíamos do
mesmo modo, as pequenas coisas do dia-a-dia em que nem reparamos na altura mas
que vão pesando, como teres sempre café pronto às horas em que gosto dele,
enfim, duas décadas lado a lado numa quase simbiose.
Nunca
me considerei romântica, em miúda não sonhava com o Príncipe Encantado nem com
viver uma grande paixão, achava a leitura de romances uma autêntica perda de
tempo e francamente, fazia-me imensa confusão assistir aos dramas permanentes
em que as minhas colegas e amigas pareciam mergulhar com prazer. Tive namorados
antes de ti, claro, mas nada que me fizesse pensar num futuro a dois.
Mesmo
contigo, não foi exatamente amor à primeira vista. Sim, reparei em ti naquela
festa universitária em que nos conhecemos, mas mais por pareceres totalmente
deslocado naquele ambiente e eu própria não me sentir exatamente muito à
vontade, aquele tipo de reuniões com muita gente, muito barulho e muito álcool
nunca foi bem o meu género.
Vimo-nos
depois bastantes vezes, sempre em grupo, mas acabávamos sempre a conversar só
os dois, talvez por os restantes estarem mais interessados em namoriscar uns
com os outros ou com elementos que iam agregando ao grupo. E descobrimos que
tínhamos muitos gostos e interesses em comum — e muitas coisas em que
discordávamos totalmente, mas que nos davam um enorme prazer em discuti-las.
Até
que um dia... não, não foi o célebre “raio de amor” a “seta de Cupido”, mas
algo fez clique em mim e descobri que ansiava por ver-te, por passar mais tempo
a sós contigo. E das saídas em grupo passámos a saídas a dois, apenas como
amigos, inicialmente, depois, como todos previam, como namorados. E exatamente
um ano depois daquela primeira festa decidimos viver juntos, casando o mesmo
dia dois anos depois.
Nunca
me contaste como tinha sido para ti, quando te despertei a atenção ou até se a
nossa relação fora simplesmente fruto de passarmos tanto tempo juntos. Mas
penso que foi logo de início, durante muito tempo pedias sempre para mim um
“Poupa Cabeças”, uma mistela horrível muito na moda entre a população
universitária que não queria beber muito (uma minoria, claro) e que eu odiava
mas que fora a minha opção naquela primeira festa.
Outros
pequenos detalhes durante a nossa vida em comum levam-me a acreditar que me
amaste ainda antes de eu saber a tua importância na minha vida. Como alguns dos
presentes que me davas e que tanto confundiam a minha família e amigos, mais
habituados a coisas mais convencionais como flores ou joias. Sim, receber um
modelo em lata de um elétrico no primeiro aniversário de casamento pode parecer
ridículo para quem não saiba que foi num que decidimos namorar e que eu te
tinha contado umas semanas antes que em miúda adorava os brinquedos de lata de
um primo e que tinha imensa pena de nunca ter tido nenhum.
Vista
de fora, a nossa parecia uma relação fria, distante, a ponto de familiares e
amigos pensarem que não duraria, que iríamos certamente divorciar-nos. É certo
que raras vezes mostrávamos afeto em público, sou reservada por natureza e isso
também não estava no teu feitio. Esta carta é até o mais próximo que alguma vez
estivemos de falarmos dos nossos sentimentos. Mas nunca senti necessidade de te
ouvir declarar o teu amor por mim e penso que o mesmo se dava contigo, somos
ambos pessoas que preferimos os atos às palavras. E por atos não me refiro a
andar sempre aos abraços e beijinhos, como alguns casais que conhecemos e que
afinal pouco duraram, mas sim àquelas pequenas coisas que mostram que
entendemos realmente o outro e que a sua felicidade nos importa. Bastávamo-nos
um ao outro e ainda bem uma vez que nunca conseguimos ter filhos, nunca lhes
sentimos exatamente a falta, foi sempre um caso de se vierem serão bem-vindos,
mas se não acontecer, tudo bem, não há drama.
Mas
senti que estava na altura de fazer algo diferente, era literalmente um caso de
agora ou nunca, escrevi-a pois como uma espécie de marco, de fronteira entre o
que tem sido e o dia de amanhã, um ato simbólico, a tal “closure” tão querida
dos americanos. Porque amanhã...
Sei
que todos me consideram doida por te ter mantido assim durante tantas meses.
Perdi a conta às conversas bem-intencionadas de familiares, amigos,
enfermeiros, médicos, até o padre que visita diariamente esta instituição,
todas no sentido de ser altura de me despedir, de seguir em frente com a minha
vida em vez de passar aqui os dias a ler-te, a contar-te coisas do meu
dia-a-dia (na maioria inventadas, não tenho propriamente vida fora daqui), a
pôr a música de que gostas, enfim, a tentar ocupar o teu tempo e o meu com
coisas que sempre te interessaram.
Não
o fiz por ter esperança que acordes, que voltes para mim, que haja um milagre,
como dizem por aí, mas por precisar deste tempo para me habituar à ideia de que
te perdi, se é que isso é possível. E, como sabes, sempre gostei de números
certinhos e dizer “quase 20” não tem o mesmo impacto de um “20” puro e seco.
Ficará
sob a tua almofada na última noite que passas fisicamente entre nós. Sim,
fisicamente, porque espiritualmente já me deixaste há muito, partiste no dia do
teu acidente...
Luísa Lopes, 9 de agosto de 2020
0 comentários:
Postar um comentário