Era noite e João olhava para o céu, vago,
sendo embrulhado pelo vento abafado, que não o dissuadia da catatonia. Entrecortavam,
no entanto, pensamentos desconexos, como chupar mexerica, na primeira visita à irmã
Lúcia, depois do lockdown; a cara do sobrinho espevitado, que não parava
de cutucar suas pernas, para que visse, sempre, a nova proeza; o tom da pele
encardida de Zulmira, sua velha tia, cada vez mais coberta de manchas, pela
velhice; o olhar soturno de seu cunhado, como não querendo que estivesse ali.
Não fazia muito que aportara em casa, após
ter superado o ônibus lotado, tendo percorrido oito quilômetros de distância da
morada da irmã – entre mundos, talvez se pudesse comparar de Santiago ao
Cazaquistão. A sensação era a mesma, não havia sentimento, não havia
bem-querer, potencializado o desgosto pela partida da mãe, no ápice da confusão
da pandemia. Pensava que, se a mãe morasse com ele, teria o máximo de cuidado e,
assim, suplantariam juntos a maldita fase. Mas não, Lúcia decretara, enérgica,
que a mãe não sairia de “suas posses” – isso mesmo, na crença maluca de que
fosse sua propriedade.
A desgraça, e o que minava os sentidos,
era que João não desejava se sujeitar a uma disputa eterna, mano a mano;
aliara-se a um destino seco, vazio. Desde novo, por insistência da mãe
abandonada, com dois filhos para dar de comer, foi orientado a vender, de porta
em porta, os seus doces caseiros, e, como era bem mandado, não voltava sem ter
esvaziado o cesto. Por essas e por outras, saía às sete da manhã e retornava à
noite, lá pelas oito ou dez horas, seguindo o ritmo da labuta exigente. Também,
se não o fizesse, era condenado pela irmã e pela tia solteirona. E a punição
era pesada, pois que, sendo o único “homem” da casa, pelos traumas vivenciados
por todas, teria o karma de esfregar o banheiro, limpar a casa, arear as
panelas e o que mais aparecesse de serviço, apesar de estar exausto da lida na
rua. Portanto, acostumara-se a chegar tarde, para unicamente comer e dormir.
Conseguiu, aos oito anos, com muito
esforço, por vontade própria, ler algumas poucas palavras e escrever o seu
nome, ganhando as bênçãos de dona Graça, a moradora do bairro Novo, bairro
contíguo ao seu, professora da escola Dom Lustosa. Sabendo do ocorrido, dos
esforços descomunais, próprios de um adulto, resolveu comprar parte dos
quitutes para revender na escola e, com isso, diminuir o seu fardo. De quebra,
o matriculou na primeira série, para “virar gente!”.
A professorinha morava só – “Não só. Sou eu
e Deus”, como dizia –, e o acolhia em muitas oportunidades, inclusive, e
principalmente, quando era enxotado de casa pela tia, porque “atrapalha o
andamento das coisas”.
A mãe, com amor ralo e magoado, se
importava mais com os vinténs que trazia da rua, sem tomar nota de como os
arranjava. Enjoado de vender doces, sem o encanto da infância, que se esvaía de
seu rosto maltratado, com incompletos doze anos, João se aventurou a comercializar
frutas. Ou seja, a tática era clara: para não estragar, as que sobravam serviam
de merenda ou de janta.
O sonho era maior na cabeça da
professorinha, a qual já chamava de mãe: “Menino, você precisa concluir, pelo
menos, o ensino médio, para arranjar um bom emprego” – e cobria-o de agrados,
deixando à disposição o único quarto de hóspedes, que era, esporadicamente,
ocupado por um sobrinho distante. Destarte, dava menos atenção à mãe de sangue,
não deixando de entregar o dinheiro que achasse justo. Na verdade, a combinação
perfeita, a sua ausência e o dinheiro; irmã e tia regozijavam.
Trabalhava e estudava, como tinha de ser,
sabendo que afagava o coração da mãe postiça. Queria, enfim, entregar-lhe o
diploma, e faltava pouco, quando a avalanche sucedeu. Graça, numa noite densa,
repleta de nuvens, partiu sem sobreavisos, acometida por um ataque fulminante,
“um mal súbito”, decretaram os médicos.
No ato, João se impregnou num juízo torto
de retorno às origens, o que não queria. Perdera o chão. Suava em bicas, extremamente
aflito com os vultos da incerteza que lhe rondavam, como espectros errantes.
Cognominado zumbi, vagava pelas noites
cálidas da cidade, até que lhe acudisse um abalroamento, uma bala ou um quiçá.
Suscitava medo nas pessoas cabreiras.
Enquanto andava, praguejava a própria vida e a dos passantes, que, por
descuido, se intrometiam entre as suas passadas arrastadas.
Com vinte dias largado às traças,
arquejando vida, assaltou-lhe um arrependimento medonho, um único resquício de
tino, que dilacerava o peito, e raciocinou que devia procurar a mãe de sangue,
dona Genuína, que, a essa altura, deveria estar encomendando a sua alma aos
céus.
Fato que o perturbou foi o ardor da mãe ao
lhe encontrar, muito diferente da mulher que havia deixado. Não sabia onde
colocar o filho pródigo, enchendo-o de carinho, de doces e de um amor que não
imaginava existir.
Lúcia fez sugestão de se aproximar,
cogitou abraçá-lo, mas foi bloqueada, de repente, pelo enjoo e pelo asco da
figura repulsiva. Viu o significado de penúria e horror. Teve inveja do
tratamento despendido. Quis admoestar a mãe, cega, que não percebia, inclusive,
o fedor que ardia as narinas. Mandou, irrefletida, que o irmão tomasse banho,
“imediatamente”. A tia intuiu, murcha: “problemão”. Falou entredentes, para a
sobrinha escutar.
Nos meses que se seguiram, João não achava
maneira de interagir com mais ninguém, a não ser com a mãe. Era boicotado em
tudo: na comida, no espaço, no ar que respirava. Declarara, num bilhete de
despedida, que a casa era como uma roupa nova e rude, que “pinicava”, e, sem medir
as consequências, ganhou novamente a boca do mundo. Voltava, por amor à mãe,
quando lembrava de existir, para comer e dar notícias, dias ou meses depois.
Arrumou um cubículo para morar, honrando
rigorosamente o aluguel, angariando uns bocados na velha prática de vendedor. Alcançou,
também, um enorme feito; a vida entrara nos trilhos: ser vendedor credenciado
da única loja de variedades da região, o famoso “galego”, andando de porta em
porta, oferecendo as novidades às clientes, que se sentiam atraídas, além do
mais, pela sua lábia jeitosa.
Então, sobreveio a catástrofe da pandemia
e, nesse ínterim, a morte da mãe Genuína. Conjecturava estratégias para deletar
os rastros da irmã e da tia, que atravancavam o seu caminho. Na última
oportunidade, tentava estreitar os laços, para, depois, no momento certo,
desembuchar as tripas.
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