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quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Além da queda

 



Era noite e João olhava para o céu, vago, sendo embrulhado pelo vento abafado, que não o dissuadia da catatonia. Entrecortavam, no entanto, pensamentos desconexos, como chupar mexerica, na primeira visita à irmã Lúcia, depois do lockdown; a cara do sobrinho espevitado, que não parava de cutucar suas pernas, para que visse, sempre, a nova proeza; o tom da pele encardida de Zulmira, sua velha tia, cada vez mais coberta de manchas, pela velhice; o olhar soturno de seu cunhado, como não querendo que estivesse ali.

Não fazia muito que aportara em casa, após ter superado o ônibus lotado, tendo percorrido oito quilômetros de distância da morada da irmã – entre mundos, talvez se pudesse comparar de Santiago ao Cazaquistão. A sensação era a mesma, não havia sentimento, não havia bem-querer, potencializado o desgosto pela partida da mãe, no ápice da confusão da pandemia. Pensava que, se a mãe morasse com ele, teria o máximo de cuidado e, assim, suplantariam juntos a maldita fase. Mas não, Lúcia decretara, enérgica, que a mãe não sairia de “suas posses” – isso mesmo, na crença maluca de que fosse sua propriedade.

A desgraça, e o que minava os sentidos, era que João não desejava se sujeitar a uma disputa eterna, mano a mano; aliara-se a um destino seco, vazio. Desde novo, por insistência da mãe abandonada, com dois filhos para dar de comer, foi orientado a vender, de porta em porta, os seus doces caseiros, e, como era bem mandado, não voltava sem ter esvaziado o cesto. Por essas e por outras, saía às sete da manhã e retornava à noite, lá pelas oito ou dez horas, seguindo o ritmo da labuta exigente. Também, se não o fizesse, era condenado pela irmã e pela tia solteirona. E a punição era pesada, pois que, sendo o único “homem” da casa, pelos traumas vivenciados por todas, teria o karma de esfregar o banheiro, limpar a casa, arear as panelas e o que mais aparecesse de serviço, apesar de estar exausto da lida na rua. Portanto, acostumara-se a chegar tarde, para unicamente comer e dormir.

Conseguiu, aos oito anos, com muito esforço, por vontade própria, ler algumas poucas palavras e escrever o seu nome, ganhando as bênçãos de dona Graça, a moradora do bairro Novo, bairro contíguo ao seu, professora da escola Dom Lustosa. Sabendo do ocorrido, dos esforços descomunais, próprios de um adulto, resolveu comprar parte dos quitutes para revender na escola e, com isso, diminuir o seu fardo. De quebra, o matriculou na primeira série, para “virar gente!”.

A professorinha morava só – “Não só. Sou eu e Deus”, como dizia –, e o acolhia em muitas oportunidades, inclusive, e principalmente, quando era enxotado de casa pela tia, porque “atrapalha o andamento das coisas”.

A mãe, com amor ralo e magoado, se importava mais com os vinténs que trazia da rua, sem tomar nota de como os arranjava. Enjoado de vender doces, sem o encanto da infância, que se esvaía de seu rosto maltratado, com incompletos doze anos, João se aventurou a comercializar frutas. Ou seja, a tática era clara: para não estragar, as que sobravam serviam de merenda ou de janta.

O sonho era maior na cabeça da professorinha, a qual já chamava de mãe: “Menino, você precisa concluir, pelo menos, o ensino médio, para arranjar um bom emprego” – e cobria-o de agrados, deixando à disposição o único quarto de hóspedes, que era, esporadicamente, ocupado por um sobrinho distante. Destarte, dava menos atenção à mãe de sangue, não deixando de entregar o dinheiro que achasse justo. Na verdade, a combinação perfeita, a sua ausência e o dinheiro; irmã e tia regozijavam.

Trabalhava e estudava, como tinha de ser, sabendo que afagava o coração da mãe postiça. Queria, enfim, entregar-lhe o diploma, e faltava pouco, quando a avalanche sucedeu. Graça, numa noite densa, repleta de nuvens, partiu sem sobreavisos, acometida por um ataque fulminante, “um mal súbito”, decretaram os médicos.

No ato, João se impregnou num juízo torto de retorno às origens, o que não queria. Perdera o chão. Suava em bicas, extremamente aflito com os vultos da incerteza que lhe rondavam, como espectros errantes.

Cognominado zumbi, vagava pelas noites cálidas da cidade, até que lhe acudisse um abalroamento, uma bala ou um quiçá. Suscitava medo nas pessoas cabreiras.  Enquanto andava, praguejava a própria vida e a dos passantes, que, por descuido, se intrometiam entre as suas passadas arrastadas.

Com vinte dias largado às traças, arquejando vida, assaltou-lhe um arrependimento medonho, um único resquício de tino, que dilacerava o peito, e raciocinou que devia procurar a mãe de sangue, dona Genuína, que, a essa altura, deveria estar encomendando a sua alma aos céus.

Fato que o perturbou foi o ardor da mãe ao lhe encontrar, muito diferente da mulher que havia deixado. Não sabia onde colocar o filho pródigo, enchendo-o de carinho, de doces e de um amor que não imaginava existir.

Lúcia fez sugestão de se aproximar, cogitou abraçá-lo, mas foi bloqueada, de repente, pelo enjoo e pelo asco da figura repulsiva. Viu o significado de penúria e horror. Teve inveja do tratamento despendido. Quis admoestar a mãe, cega, que não percebia, inclusive, o fedor que ardia as narinas. Mandou, irrefletida, que o irmão tomasse banho, “imediatamente”. A tia intuiu, murcha: “problemão”. Falou entredentes, para a sobrinha escutar.

Nos meses que se seguiram, João não achava maneira de interagir com mais ninguém, a não ser com a mãe. Era boicotado em tudo: na comida, no espaço, no ar que respirava. Declarara, num bilhete de despedida, que a casa era como uma roupa nova e rude, que “pinicava”, e, sem medir as consequências, ganhou novamente a boca do mundo. Voltava, por amor à mãe, quando lembrava de existir, para comer e dar notícias, dias ou meses depois.

Arrumou um cubículo para morar, honrando rigorosamente o aluguel, angariando uns bocados na velha prática de vendedor. Alcançou, também, um enorme feito; a vida entrara nos trilhos: ser vendedor credenciado da única loja de variedades da região, o famoso “galego”, andando de porta em porta, oferecendo as novidades às clientes, que se sentiam atraídas, além do mais, pela sua lábia jeitosa.

Então, sobreveio a catástrofe da pandemia e, nesse ínterim, a morte da mãe Genuína. Conjecturava estratégias para deletar os rastros da irmã e da tia, que atravancavam o seu caminho. Na última oportunidade, tentava estreitar os laços, para, depois, no momento certo, desembuchar as tripas.

 


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