— Tem remédio pra cólica na sua bolsa, professora? Me empresta? Minha mãe não quer comprar pra mim.
Diploma
fresco, não mais estagiária nem contrato temporário, mas servidora devidamente
empossada, lotada numa escola pública de primeiro grau de Ceilândia, cidade periférica
de Brasília.
Quando o ano
letivo começou pra valer, me pesavam o medo, a insegurança e a preocupação da
responsabilidade. E as expectativas foram logo dissolvidas por assombros novos.
— Me ajuda
aqui, professora. A Marina tá tendo um desmaio.
— A pressão
deve ter caído. O teto de zinco desta sala cozinha os miolos de qualquer um.
Interessante
como, depois de tanto tempo, ainda me lembro de alguns rostos, nomes, fatos,
surpresas boas e sobressaltos da estreia.
— Professora, acode
aqui. Seus alunos estão se matando.
— Socorro! Polícia!
Alguém chama a polícia. O André tá com uma faca no pescoço do Pedro. Parem essa
briga agora, soltem, senão vão expulsos.
Assumi três
turmas de Língua Portuguesa. — Por que vocês insistem em acentuar melancia,
substantivo e abacaxi? Que coisa! Essas palavras não levam acento.
Tirei de letra
a gestão da matéria, a elaboração das provas, a correção das tarefas, o
preenchimento dos malditos diários.
— Puxa. Revisamos
a matéria tantas vezes, e as notas foram tão baixas...
Mas descobri,
rapidinho, que minhas cordas vocais não valiam muito, que minha voz era
impotente e que as doses de pó de giz magoavam a pele e o sistema respiratório.
Meus braços doíam, moídos de tanto preencher o quadro-negro.
Eu descascava abacaxis em exercícios do livro didático: vocábulo polissílabo oxítono; classe gramatical substantivo masculino plural; sintaticamente núcleo do sujeito simples, blá-blá-blá... Assim, aprendi também que não bastava ficar repetindo gramática, redação e literatura para aqueles adolescentes de problemas tão maduros. Na verdade as regras do Português eram o de menos.
— Professora,
o pai chegou bêbado em casa e bateu feio na minha mãe, mas ela diz que não vai
denunciar.
— Não quiseram
atender minha irmã. Ela rodou a cidade inteira atrás de hospital. Aí, quando finalmente
resolveram atender ela, em Taguatinga, a coitada estava tão exausta, que morreu
no parto. Vou cuidar do meu sobrinho. Vou virar mãe dele.
Não eram muito
assíduos, mas se alegravam e pelo menos nunca faltavam às quintas-feiras,
quando o lanche era galinhada. Eu servia seus pratos dentro de sala, dosando a
concha, repartindo irmãmente entre eles o arroz e o frango, e não sobrava nada
no caldeirão.
— Na sua casa
tem panela cheia todo dia, professora?
— Tá
precisando de diarista? A patroa dispensou minha mãe.
Dentro de
sala, eu procurava respeitá-los e apresentar-lhes qualquer fantasia, qualquer
ficção que me parecesse mais bonita que suas vidas reais. Fora de sala, porém,
as coisas de gente sofrida continuavam dominando.
— Pegaram meu
irmão. Mas tenho certeza que ele é inocente. Quem tá traficando é o meu cunhado,
professora. Aquilo não vale um jiló podre.
Era o reinado
da falta de carinho, da falta de víveres, da inexistência de pequenos luxos. O
predomínio do excesso do alcance da morte (por doença, falta de opção, vício, negligência
da família e do Estado)... Eu tinha 20 e poucos; eles, entre 12 e 16 anos.
Algumas violências que eu desconhecia foram eles que me apresentaram.
— Minha prima
tá grávida. Ela é da minha idade. Só tem 13 anos, professora. Parece que é do
marido da minha tia, mas minha tia não acredita na palavra da própria filha.
Não quer perder o macho.
— Faz três
anos que meu pai não aparece nem deposita pensão. Será que ele esqueceu a gente?
Será que ainda tá vivo?
Essa nossa proximidade
facilitava algumas coisas e dificultava outras. Como sabiam desse meu dengo
especial por eles, muitas vezes não me levavam tão a sério quanto eu gostaria.
Quando eu queria dar uma bronca amarga, por conta das notas baixas ou das
tarefas mal feitas, alguns alunos ignoravam, outros tomavam como afago. Quando a
conversaiada virava descontrole, eles me chamavam para dentro da rodinha,
contavam intimidades ou me pediam conselhos:
— Minha mãe falou
que, se meu pai descobrir que tem filho gay, manda o infeliz pro inferno.
— Será que eu
beijo o garçom, professora? Ele tá doidinho por mim. Diz que já tá quase separando
da mulher.
— Sorte tem o meu
vizinho, que tomou comprimido e morreu dormindo.
Não havia
monotonia na 6ª C. Quando entrei na sala para a última aula de sexta-feira,
eles já estavam lá, em volta da minha mesa. Eu não sabia, mas estavam
preparando uma surpresa para o meu aniversário.
Devem ter
arrecadado os ingredientes numa vaquinha. Arrumaram forro branco, balinhas de
coco enroladas em papel colorido, vaso com rosas vermelhas subtraídas de algum
jardim. Pegaram pratinhos e garfos na cantina, com a bela e gentil Dona Clarice
(— Ela devia se chamar Dona Escurice — costumavam dizer), trouxeram refresco e
o bolo de dois andares. Aquilo era um acontecimento. Bolo confeitado, cobertura
de glacê cor-de-rosa e cerejas. Convidaram a diretora e mais alguns professores
da turma. Nunca os vi tão felizes.
Entregaram-me um
cartãozinho ilustrado pela desenhista da turma, além de pequenas frases
carinhosas escritas à mão, cheias de erros de grafia e sem pontuação, assinado
por todos. Bateram o parabém, o com quem será e se acotovelaram, numa fila
torta, para receber um pedaço do bolo.
— É de abacaxi,
professora. Foi minha mãe que fez — disse a representante.
Quando parti a
primeira fatia, no entanto, senti um cheiro bem ruim. Po-dre – adjetivo
singular dissílabo paroxítono... O recheio do bolo tinha azedado.
Maria Amélia Elói
7 comentários:
Que lindo, Maria Amélia! Tocante! E olha só: eu era da 6a. C. Éramos tão unidos e felizes que hoje, 40 anos depois, nosso grupo no zap se chama A C é a melhor!
Adorei. Voltei à sala C Parabéns! Tocante !
Emoção!
Adorei. Voltei à sala C Parabéns! Tocante !
Emoção!
Muito obrigada pela leitura e pelos comentários, Clara e Tutora Online.
Eu comecei minha vida de professora aos 17 anos no Gama. Você me levou para lá de novo. Estou emocionada. Parabéns
Eu comecei minha vida de professora aos 17 anos no Gama. Você me levou para lá de novo. Estou emocionada. Parabéns
Obrigada, Lucília. Beijo.
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