E
lá vai ele outra vez! Em que universo paralelo é que é boa ideia caminhar sobre
um muro estreitíssimo e em mau estado mesmo junto a um enorme precipício? A
própria existência do muro não é já um aviso bem claro para nos mantermos
afastados? Mas não! Para o senhor “eu sou um grande aventureiro” é apenas um
sinal de direção obrigatória. É proibido? É perigoso? Que bom, aqui vou eu! E
depois eu que me esfalfe a tentar salvá-lo!
Claro,
caiu! E lá tenho de ir a correr tentar arranjar um modo “natural” de lhe salvar
a vida. Felizmente a queda foi num sítio em que alguns arbustos ralos se
agarram com unhas e dentes à escarpa. Assim, é só uma questão de desviar dois
deles uns centímetros de modo a apararem-lhe a queda, estou certo de que à
velocidade a que ia o meu protegido nem deu por isso.
Funcionou!
Agora é só esperar que recupere o fôlego e tente subir os bons metros de escarpa
que desceu em modo foguetão. É claro que nunca o poderia fazer sem a minha
ajuda, por isso aproveito enquanto ainda está meio abalado e de olhos fechados
para dispor estrategicamente algumas raízes e pedras grandes bem enterradas que
lhe sirvam de apoio na íngreme subida.
Bom,
já está no topo. Esperemos que com o valentíssimo susto que apanhou decida ir
diretamente para casa e dar-me um resto de fim de semana em paz e sossego, o
primeiro desde que o conheço.
Mas
é claro que era pedir demais! Como se nada fosse, foi todo lampeiro para o seu
bar habitual, indubitavelmente para descrever em tons gloriosos esta nova
escapadela à morte.
Vai
ser mais um fim de tarde e noite divertidos para mim, a tentar protegê-lo das
lutas violentas em que se mete inevitavelmente e da condução bem alcoolizada
até casa. Como dizem os americanos, “não há repouso para os malvados”.
Infelizmente, neste caso o malvado seria eu.
Seria
de pensar que depois de morto teria direito ao tal descanso eterno de que tanto
ouvimos falar em vida, pelo menos o meu pai nunca se cansava de dizer, “Descansar?
Terei muito tempo para isso quando estiver morto!” Sem esquecer o sempre
popular “Repouse em paz”. Mas a triste realidade é que nunca trabalhei tanto,
ia dizer na vida, mas estando morto, nem sei que expressão usar.
Mas
comecei pelo fim, permitam-me que me apresente. Chamo-me Hélio e sou um Anjo da
Guarda. Sim, bem sei, neste momento estão a imaginar-me alto, esguio, com uma beleza
andrógina, longa túnica alva e enormes asas muito fofinhas e brancas, halo
opcional. Lamento desiludir-vos, mas sou baixo, atarracado, de espessa barba
negra, cabelo desgrenhado, inúmeras tatuagens pouco recomendáveis no pescoço,
braços e outros locais que prefiro não mencionar, de jeans, t-shirt Black
Metal, casaco de couro bem gasto e botifarras de motoqueiro. Em vida, não fui
exatamente um cidadão exemplar.
Quem
me deu o nome não tinha realmente o dom de adivinhar o futuro. Imaginem, Hélio,
de acordo com a Internet o nome significa pessoa com grande sentido de
responsabilidade e bom senso, ligado à família e com queda para artes e
filosofia! Fui exatamente o contrário de tudo isso, fugindo pela última vez de
casa aos 14 anos (dessa vez nem se deram ao trabalho de comunicar o meu
desaparecimento, deve ter sido um alívio para todos eu não voltar), zero
sentido de responsabilidade, queda para pequenos assaltos, enfim, uma vida a
raiar a marginalidade, mas mesmo assim sem “garra” para ser um criminoso a
sério.
Devem
estar a perguntarem-se como é que alguém assim se torna num anjo da guarda.
Pois é, não se passa nenhum dia em que eu não faça essa mesma pergunta.
Francamente, não faço ideia, posso apenas contar-vos a explicação, nada
convincente, diga-se de passagem, que me foi dada quando me atribuíram o cargo.
Mas para isso terei de vos falar da minha morte.
Foi
no dia em que fazia 33 anos. Apeteceu-me festejar, nem sei bem porquê, e decidi
ir até um bar distante onde se reunia um grupo de motoqueiros com quem tinha
andado em tempos. O dia estava horrível, com chuva e muito vento, e a minha
potente mota não era exatamente o veículo ideal para esse tipo de dia ou para
as estradas que teria de percorrer. Mas nem pensei em pegar no carrito velho
que mantinha desde o período curtíssimo em que tivera um emprego a sério como
ajudante de construção civil.
Numa
curva, ao cruzar uma pequena vila, surgiu-me de repente uma criança a
atravessar a rua. À velocidade a que ia ser-me-ia impossível parar a tempo, por
isso, para a evitar, desviei-me bruscamente, derrapei e fui embater com toda a
força no muro de uma propriedade, pondo fim à minha inútil existência.
A
coisa seguinte de que me lembro é estar numa sala enormíssima repleta de
pessoas de todos os tipos e idades, com uma longa fila de guichés ao fundo e
ecrãs suspensos que iam mostrando números a atender e o respetivo guiché.
Enfim, uma vulgaríssima repartição pública, com o caos e barulho que lhes são
habituais. Descobri até que tinha na mão uma senha para ser atendido.
A
minha primeira ideia foi que bebera demais e tivera um blackout, perdendo umas
horas ou até uns dias, como já me tinha acontecido. Mas olhando mais de perto
para os que me rodeavam, comecei a ter sérias dúvidas sobre essa hipótese e
sobre a minha sanidade mental. Com exceção de algumas pessoas, quase todas de
idade, com um aspeto normal, as restantes tinham claramente algo muito errado
com elas, ferimentos, sangue seco, membros partidos em que misteriosamente se
apoiavam, enfim, só podiam ser um produto da minha imaginação ou sinal de
loucura.
A
própria sala era estranha, se não fosse uma loucura quase poderia jurar que ia
mudando de tamanho, ajustando a sua lotação. A parede atrás de mim estava
crivada de portas por onde entrava continuamente gente, haveria logicamente
saídas noutro lado, mas a sala nunca parecia mais cheia ou mais vazia. E apesar
do ruído intenso de milhares de vozes, ouviam-se perfeitamente os anúncios dos
próximos números a serem atendidos e respetivos guichés.
Estava
ainda a tentar dar sentido ao que me rodeava quando chamaram o meu número.
Calhou-me uma empregada de ar carrancudo que, sem mesmo olhar para mim, rosnou:
“Sala AG”. Fiquei sem saber o que fazer, até que ela, de má vontade, apontou
para a que era afina única porta de saída.
Abri-a
e vi-me num longo corredor com portas de ambos os lados, tendo cada uma delas
uma placa com dez algarismos que começavam a brilhar mal nos aproximávamos. Fui
andando e quando já pensava estar perdido e ter de voltar para trás vi
finalmente a primeira placa com letras, precisamente a que dizia AG. Fiquei sem
saber se devia bater ou entrar simplesmente, mas lembrei-me de que era um
motoqueiro (a tempo parcial, mas mesmo assim...) e que as boas maneiras eram
para os outros. Entrei, pois de rompante.
Afinal
era apenas um pequeno gabinete com uma grande secretária, grande demais para a
dimensão da sala, com uma cadeira de ar desconfortável à frente e um enorme
cadeirão atrás, onde se sentava muito rígido um senhor de fato, gravata e
grandes óculos de aros negros que tresandava a burocrata. O tampo rebrilhava de
limpeza e continha apenas uma pequena pasta que parecia perdida naquele oceano
envernizado. Como o dito senhor nada me disse nem sequer olhou para mim, decidi
aproximar-me e sentar-me na dita cadeira, que era ainda mais desconfortável do
que parecia.
Sempre
sem olhar para mim, disse-me em tom monocórdico:
–
Atendendo ao teor geral da sua vida, estaria agora certamente a caminho do IT.
Mas como o seu último ato em vida foi salvar uma vida, vai passar a ser um AG,
um Anjo da Guarda. Aqui tem os seus papéis.
E
sem que eu tivesse tempo de reagir, vi-me transportado, sem saber como, para
uma outra sala onde alguém que parecia um misto de treinador de artes marciais
pela vestimenta e burocrata pelo aspeto sisudo e atitude sem resquícios de
sentido de humor me iniciou na arte de ser Anjo da Guarda. Foi um treino muito
breve, umas meras horas, foi o que me pareceu, apesar de não haver relógios à
vista e o meu ter deixado de funcionar.
Explicou-me
basicamente que tinha o poder de alterar pequeninas coisas para salvar o meu
protegido, mas de um modo que passasse despercebido, e que até receber a
notificação de que estava na altura de ele morrer tinha o dever, não, a
obrigação de o salvar ou as consequências seriam gravíssimas para mim. E após um
vídeo que resumia o que eu podia e não podia fazer e de meia dúzia de
exercícios de treino, fui transportado dali para fora, desta vez para as
instalações residenciais onde um novo guia me mostrou o cubículo que me estava
destinado e onde a primeira coisa que me saltou à vista foi um tremendo livro
com um título nada apelativo, “Regras e Formalidades Inerentes às Tarefas dos
Guardiões de Almas de Humanoides no Período de Existência Não Corpórea” e mais
outras coisas em letras pequenas que quase esmagava a pequeníssima secretária.
E na parede por trás da dita secretária, mais uma mesinha, um grande ecrã
comandado pela minha mente e onde, como tinha aprendido, poderia rever as situações
em que agira para escrever relatórios o mais exatos possíveis.
Sim,
ouviram bem, relatórios! Se há coisa que descobri nestes breves meses é que o
Céu é uma tremenda burocracia, capaz de fazer inveja às burocracias mais complexas
deste nosso pobre planeta. Tudo tem de ser registado com os mais ínfimos
detalhes. E entre o ecrã e a memória perfeita que todos temos, não há desculpas
para omitir ou deturpar seja o que for. O único lado bom é que não precisamos
de os escrever ou digitar, basta ir compondo o texto mentalmente e ele vai
aparecendo num pequenino ecrã que anda sempre connosco sendo no final enviado,
também mentalmente, sabe lá para onde.
E
foi assim que fiquei ligado a este doidivanas que dá comigo em doido e que me
obriga a esfalfar-me dia e noite para o manter são e salvo. Relativamente
falando, claro, até um anjo tem limites e, acreditem, estes são uma das coisas
que infelizmente tenho explorado a fundo. Posso até gabar-me – sim, bem sei, um
sentimento muito pouco angelical, mas que querem! – de me ter tornado uma
espécie de especialista, podia até escrever um novo manual, “O que um Anjo pode
fazer Usando os Seus Poderes e Engenho”, título certamente mais imaginativo que
o do manual oficial, o tal calhamaço cujo estudo me ocupa o pouquíssimo tempo
livre que tenho e que, quase o posso jurar, está sempre a ser modificado e
aumentado, dificultando-me consideravelmente as coisas.
Às
vezes penso até em deixar morrer o meu encargo, as tais consequências não podem
ser muito piores do que esta vida, morte ou lá o que é. Como tenho dito, trabalho
duramente noite e dia, é incrível a quantidade de loucuras que se conseguem
fazer a qualquer hora do dia numa pequena vilória de província e acreditem, ele
conhece-as todas e as que não conhece, inventa-as! E considera-me eu um
doidivanas. Comparado com ele, nunca passei de um mero aprendiz ou, melhor
ainda, de candidato a aprendiz.
Só
tenho repouso uma vez por mês, há um grupo de anjos que ocupam as nossas
folgas, mas mesmo assim não é grande diversão. Sou obrigado a passá-la no domínio
dos Anjos da Guarda e pouco ou nada tenho em comum com os que foram recrutados
como eu, pequenos criminosos salvos por um pequeno ato redentor ou gente bem
chata de que nem nos apetece saber nada.
E
o único tema de conversa parece resumir-se às dificuldades de cuidar dos
respetivos protegidos. Pelo que tenho visto e ouvido, parece que temos todos pessoas
difíceis e com comportamentos no mínimo inconscientes, o que me leva a perguntar-me
se todo este departamento AG não estará dividido em secções de acordo com o
tipo de pessoa a proteger. Pelo que tenho visto desta burocracia, não me
admirava nada.
Sem
contar que sem termos de comer ou beber e podendo ter todo o ar livre que
quisermos quando vamos à Terra, a única diversão disponível é ver filmes
pirosos de terceira categoria ou ouvir música ainda pior. Francamente, mesmo
com o pouco que aprendi nas aulas de Catequese e nos monólogos da minha avó,
quando tentava levar-me a portar-me bem contrapondo Céu e Inferno, esperava bem
melhor!
Também
se avistam anjos “a sério”, como os das imagens que me impingiram na infância,
as dos anjinhos a tocarem harpa no meio de nuvens fofinhas, mas nada querem
connosco, mantêm-se à distância, limitando-se a pairar sobre a nossa zona,
quase como se nos vigiassem.
Indaguei
entretanto o que era o tal IT para onde deveria ter ido caso não tivesse salvo
uma vida, acontece que é o Inferno Temporário, por oposição ao IP, Inferno
Permanente, para onde vão os criminosos a sério.
A questão é que, analisando
esta minha vida laboriosa e difícil, às vezes fico a pensar se não me terão
enganado e se este não será o de facto o IT. É que tenho uma confissão a fazer.
Não me desviei para evitar a criança, nem sequer a vi, perdi simplesmente o
controlo da mota ao tentar fazer a curva com demasiada velocidade. O facto de a
ter salvo foi apenas uma mera coincidência!Luísa Lopes
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