Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Que Raio de Emprego

E lá vai ele outra vez! Em que universo paralelo é que é boa ideia caminhar sobre um muro estreitíssimo e em mau estado mesmo junto a um enorme precipício? A própria existência do muro não é já um aviso bem claro para nos mantermos afastados? Mas não! Para o senhor “eu sou um grande aventureiro” é apenas um sinal de direção obrigatória. É proibido? É perigoso? Que bom, aqui vou eu! E depois eu que me esfalfe a tentar salvá-lo!
Claro, caiu! E lá tenho de ir a correr tentar arranjar um modo “natural” de lhe salvar a vida. Felizmente a queda foi num sítio em que alguns arbustos ralos se agarram com unhas e dentes à escarpa. Assim, é só uma questão de desviar dois deles uns centímetros de modo a apararem-lhe a queda, estou certo de que à velocidade a que ia o meu protegido nem deu por isso.
Funcionou! Agora é só esperar que recupere o fôlego e tente subir os bons metros de escarpa que desceu em modo foguetão. É claro que nunca o poderia fazer sem a minha ajuda, por isso aproveito enquanto ainda está meio abalado e de olhos fechados para dispor estrategicamente algumas raízes e pedras grandes bem enterradas que lhe sirvam de apoio na íngreme subida.
Bom, já está no topo. Esperemos que com o valentíssimo susto que apanhou decida ir diretamente para casa e dar-me um resto de fim de semana em paz e sossego, o primeiro desde que o conheço.
Mas é claro que era pedir demais! Como se nada fosse, foi todo lampeiro para o seu bar habitual, indubitavelmente para descrever em tons gloriosos esta nova escapadela à morte.
Vai ser mais um fim de tarde e noite divertidos para mim, a tentar protegê-lo das lutas violentas em que se mete inevitavelmente e da condução bem alcoolizada até casa. Como dizem os americanos, “não há repouso para os malvados”. Infelizmente, neste caso o malvado seria eu.
Seria de pensar que depois de morto teria direito ao tal descanso eterno de que tanto ouvimos falar em vida, pelo menos o meu pai nunca se cansava de dizer, “Descansar? Terei muito tempo para isso quando estiver morto!” Sem esquecer o sempre popular “Repouse em paz”. Mas a triste realidade é que nunca trabalhei tanto, ia dizer na vida, mas estando morto, nem sei que expressão usar.
Mas comecei pelo fim, permitam-me que me apresente. Chamo-me Hélio e sou um Anjo da Guarda. Sim, bem sei, neste momento estão a imaginar-me alto, esguio, com uma beleza andrógina, longa túnica alva e enormes asas muito fofinhas e brancas, halo opcional. Lamento desiludir-vos, mas sou baixo, atarracado, de espessa barba negra, cabelo desgrenhado, inúmeras tatuagens pouco recomendáveis no pescoço, braços e outros locais que prefiro não mencionar, de jeans, t-shirt Black Metal, casaco de couro bem gasto e botifarras de motoqueiro. Em vida, não fui exatamente um cidadão exemplar.
Quem me deu o nome não tinha realmente o dom de adivinhar o futuro. Imaginem, Hélio, de acordo com a Internet o nome significa pessoa com grande sentido de responsabilidade e bom senso, ligado à família e com queda para artes e filosofia! Fui exatamente o contrário de tudo isso, fugindo pela última vez de casa aos 14 anos (dessa vez nem se deram ao trabalho de comunicar o meu desaparecimento, deve ter sido um alívio para todos eu não voltar), zero sentido de responsabilidade, queda para pequenos assaltos, enfim, uma vida a raiar a marginalidade, mas mesmo assim sem “garra” para ser um criminoso a sério.
Devem estar a perguntarem-se como é que alguém assim se torna num anjo da guarda. Pois é, não se passa nenhum dia em que eu não faça essa mesma pergunta. Francamente, não faço ideia, posso apenas contar-vos a explicação, nada convincente, diga-se de passagem, que me foi dada quando me atribuíram o cargo. Mas para isso terei de vos falar da minha morte.
Foi no dia em que fazia 33 anos. Apeteceu-me festejar, nem sei bem porquê, e decidi ir até um bar distante onde se reunia um grupo de motoqueiros com quem tinha andado em tempos. O dia estava horrível, com chuva e muito vento, e a minha potente mota não era exatamente o veículo ideal para esse tipo de dia ou para as estradas que teria de percorrer. Mas nem pensei em pegar no carrito velho que mantinha desde o período curtíssimo em que tivera um emprego a sério como ajudante de construção civil.
Numa curva, ao cruzar uma pequena vila, surgiu-me de repente uma criança a atravessar a rua. À velocidade a que ia ser-me-ia impossível parar a tempo, por isso, para a evitar, desviei-me bruscamente, derrapei e fui embater com toda a força no muro de uma propriedade, pondo fim à minha inútil existência.
A coisa seguinte de que me lembro é estar numa sala enormíssima repleta de pessoas de todos os tipos e idades, com uma longa fila de guichés ao fundo e ecrãs suspensos que iam mostrando números a atender e o respetivo guiché. Enfim, uma vulgaríssima repartição pública, com o caos e barulho que lhes são habituais. Descobri até que tinha na mão uma senha para ser atendido.
A minha primeira ideia foi que bebera demais e tivera um blackout, perdendo umas horas ou até uns dias, como já me tinha acontecido. Mas olhando mais de perto para os que me rodeavam, comecei a ter sérias dúvidas sobre essa hipótese e sobre a minha sanidade mental. Com exceção de algumas pessoas, quase todas de idade, com um aspeto normal, as restantes tinham claramente algo muito errado com elas, ferimentos, sangue seco, membros partidos em que misteriosamente se apoiavam, enfim, só podiam ser um produto da minha imaginação ou sinal de loucura.
A própria sala era estranha, se não fosse uma loucura quase poderia jurar que ia mudando de tamanho, ajustando a sua lotação. A parede atrás de mim estava crivada de portas por onde entrava continuamente gente, haveria logicamente saídas noutro lado, mas a sala nunca parecia mais cheia ou mais vazia. E apesar do ruído intenso de milhares de vozes, ouviam-se perfeitamente os anúncios dos próximos números a serem atendidos e respetivos guichés.
Estava ainda a tentar dar sentido ao que me rodeava quando chamaram o meu número. Calhou-me uma empregada de ar carrancudo que, sem mesmo olhar para mim, rosnou: “Sala AG”. Fiquei sem saber o que fazer, até que ela, de má vontade, apontou para a que era afina única porta de saída.
Abri-a e vi-me num longo corredor com portas de ambos os lados, tendo cada uma delas uma placa com dez algarismos que começavam a brilhar mal nos aproximávamos. Fui andando e quando já pensava estar perdido e ter de voltar para trás vi finalmente a primeira placa com letras, precisamente a que dizia AG. Fiquei sem saber se devia bater ou entrar simplesmente, mas lembrei-me de que era um motoqueiro (a tempo parcial, mas mesmo assim...) e que as boas maneiras eram para os outros. Entrei, pois de rompante.
Afinal era apenas um pequeno gabinete com uma grande secretária, grande demais para a dimensão da sala, com uma cadeira de ar desconfortável à frente e um enorme cadeirão atrás, onde se sentava muito rígido um senhor de fato, gravata e grandes óculos de aros negros que tresandava a burocrata. O tampo rebrilhava de limpeza e continha apenas uma pequena pasta que parecia perdida naquele oceano envernizado. Como o dito senhor nada me disse nem sequer olhou para mim, decidi aproximar-me e sentar-me na dita cadeira, que era ainda mais desconfortável do que parecia.
Sempre sem olhar para mim, disse-me em tom monocórdico:
– Atendendo ao teor geral da sua vida, estaria agora certamente a caminho do IT. Mas como o seu último ato em vida foi salvar uma vida, vai passar a ser um AG, um Anjo da Guarda. Aqui tem os seus papéis.
E sem que eu tivesse tempo de reagir, vi-me transportado, sem saber como, para uma outra sala onde alguém que parecia um misto de treinador de artes marciais pela vestimenta e burocrata pelo aspeto sisudo e atitude sem resquícios de sentido de humor me iniciou na arte de ser Anjo da Guarda. Foi um treino muito breve, umas meras horas, foi o que me pareceu, apesar de não haver relógios à vista e o meu ter deixado de funcionar.
Explicou-me basicamente que tinha o poder de alterar pequeninas coisas para salvar o meu protegido, mas de um modo que passasse despercebido, e que até receber a notificação de que estava na altura de ele morrer tinha o dever, não, a obrigação de o salvar ou as consequências seriam gravíssimas para mim. E após um vídeo que resumia o que eu podia e não podia fazer e de meia dúzia de exercícios de treino, fui transportado dali para fora, desta vez para as instalações residenciais onde um novo guia me mostrou o cubículo que me estava destinado e onde a primeira coisa que me saltou à vista foi um tremendo livro com um título nada apelativo, “Regras e Formalidades Inerentes às Tarefas dos Guardiões de Almas de Humanoides no Período de Existência Não Corpórea” e mais outras coisas em letras pequenas que quase esmagava a pequeníssima secretária. E na parede por trás da dita secretária, mais uma mesinha, um grande ecrã comandado pela minha mente e onde, como tinha aprendido, poderia rever as situações em que agira para escrever relatórios o mais exatos possíveis.
Sim, ouviram bem, relatórios! Se há coisa que descobri nestes breves meses é que o Céu é uma tremenda burocracia, capaz de fazer inveja às burocracias mais complexas deste nosso pobre planeta. Tudo tem de ser registado com os mais ínfimos detalhes. E entre o ecrã e a memória perfeita que todos temos, não há desculpas para omitir ou deturpar seja o que for. O único lado bom é que não precisamos de os escrever ou digitar, basta ir compondo o texto mentalmente e ele vai aparecendo num pequenino ecrã que anda sempre connosco sendo no final enviado, também mentalmente, sabe lá para onde.
E foi assim que fiquei ligado a este doidivanas que dá comigo em doido e que me obriga a esfalfar-me dia e noite para o manter são e salvo. Relativamente falando, claro, até um anjo tem limites e, acreditem, estes são uma das coisas que infelizmente tenho explorado a fundo. Posso até gabar-me – sim, bem sei, um sentimento muito pouco angelical, mas que querem! – de me ter tornado uma espécie de especialista, podia até escrever um novo manual, “O que um Anjo pode fazer Usando os Seus Poderes e Engenho”, título certamente mais imaginativo que o do manual oficial, o tal calhamaço cujo estudo me ocupa o pouquíssimo tempo livre que tenho e que, quase o posso jurar, está sempre a ser modificado e aumentado, dificultando-me consideravelmente as coisas.
Às vezes penso até em deixar morrer o meu encargo, as tais consequências não podem ser muito piores do que esta vida, morte ou lá o que é. Como tenho dito, trabalho duramente noite e dia, é incrível a quantidade de loucuras que se conseguem fazer a qualquer hora do dia numa pequena vilória de província e acreditem, ele conhece-as todas e as que não conhece, inventa-as! E considera-me eu um doidivanas. Comparado com ele, nunca passei de um mero aprendiz ou, melhor ainda, de candidato a aprendiz.
Só tenho repouso uma vez por mês, há um grupo de anjos que ocupam as nossas folgas, mas mesmo assim não é grande diversão. Sou obrigado a passá-la no domínio dos Anjos da Guarda e pouco ou nada tenho em comum com os que foram recrutados como eu, pequenos criminosos salvos por um pequeno ato redentor ou gente bem chata de que nem nos apetece saber nada.
E o único tema de conversa parece resumir-se às dificuldades de cuidar dos respetivos protegidos. Pelo que tenho visto e ouvido, parece que temos todos pessoas difíceis e com comportamentos no mínimo inconscientes, o que me leva a perguntar-me se todo este departamento AG não estará dividido em secções de acordo com o tipo de pessoa a proteger. Pelo que tenho visto desta burocracia, não me admirava nada.
Sem contar que sem termos de comer ou beber e podendo ter todo o ar livre que quisermos quando vamos à Terra, a única diversão disponível é ver filmes pirosos de terceira categoria ou ouvir música ainda pior. Francamente, mesmo com o pouco que aprendi nas aulas de Catequese e nos monólogos da minha avó, quando tentava levar-me a portar-me bem contrapondo Céu e Inferno, esperava bem melhor!
Também se avistam anjos “a sério”, como os das imagens que me impingiram na infância, as dos anjinhos a tocarem harpa no meio de nuvens fofinhas, mas nada querem connosco, mantêm-se à distância, limitando-se a pairar sobre a nossa zona, quase como se nos vigiassem.
Indaguei entretanto o que era o tal IT para onde deveria ter ido caso não tivesse salvo uma vida, acontece que é o Inferno Temporário, por oposição ao IP, Inferno Permanente, para onde vão os criminosos a sério.
A questão é que, analisando esta minha vida laboriosa e difícil, às vezes fico a pensar se não me terão enganado e se este não será o de facto o IT. É que tenho uma confissão a fazer. Não me desviei para evitar a criança, nem sequer a vi, perdi simplesmente o controlo da mota ao tentar fazer a curva com demasiada velocidade. O facto de a ter salvo foi apenas uma mera coincidência!

Luísa Lopes

Share




0 comentários:

Postar um comentário