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quinta-feira, 16 de julho de 2020

Identidade

Foto: Alexander Khoklov

Fato. Havia um lugar acolhedor. Amortecido em fluido. Úmido. Quente. Dentro. Boato. Todo o mundo tem de sair. Fato. As recompensas. A cara ansiosa da mulher que você chama mãe. A voz que você escuta há nove meses (no seu caso, há quase 10). Peito. Leite quente. Banho quente. Berço quente. Tato. Contato. Colo. [nota mental (sempre quis fazer uma) : não tenha pressa em andar]. Boato. Pode ser nada disso. Pode ser que você faça parte de uma estatística hostil. Dos que vão. Para a lata do lixo, para o fundo do rio, para o orfanato com nome de santo (há sempre mais de uma opção de inferno). Que você faça parte da lista dos destinados ao frio eterno. Carnes que nunca vão conhecer essas coisas de afetoabraço, beijo, carinho. Fato. Você vai crescer, estudar. Aprender sobre coisas, bichos, plantas, planetas. Nos livros. Na vida. Aprender sobre o homem. Ou tentar. Boato. Depende. Roleta russa. Você vai crescer. Se não morrer antes. De bala, de porrada, de fome, de abandono, de overdose. Você vai crescer. Nessa coisa de estatura. Mas não vai conhecer nem letra nem palavra. Possibilidade: você se tornar um desses que acreditam em Terra plana. Probabilidade: você se tornar um desses que chamam um vírus letal de a little flu. Fato. A revolução do primeiro beijo tira o ar [aquela boca macia bem que podia nunca mais se descolar da sua]. As revoluções são ritos de passagem. E os ritos de passagem são importantes. Boato. (Correção: Os ritos de passagem doem). Porrada. Em vez do beijo, soco no estômago. Também tira o ar. Invasão. Um corpo sobre o seu corpo. Pesado, indesejado. Uma mão. Suja. Que força a sua boca e enfia lá dentro um membro. E você nunca mais se esquece de que esse membro se chama caralho. Fato. Você prepara o cabelo, as unhas, as roupas, o currículo. Vai atrás do primeiro emprego. Paciência. Questão de tempo. Mas o seu tempo de espera tem mãe, tem pai, tem casa. E cama de madeira, e bebida, e comida quatro vezes por dia. Mamãe prepara. Dois banhos quentes por dia. Um deles, depois da academia. Aulas de piano (que mamãe acompanha da poltrona da sala). Diversão até de madrugada naquela plataforma imbatível que oferece filmes em cardápio. Boato. Você caiu do outro lado, pessoa. E engrossa o índice dos desempregados, dos que vendem droga na porta da escola — aquelas que você só vai conhecer do lado de fora —, dos que vendem balinha no sinal, dos que entregam panfletos nas ruas, dos que comem restos de lixo, dos que fumam crack. Certeza mesmo só o colo. Do velho desgraçado que não se importa nem um pouco com a idade das suas mãos minúsculas sobre o caralho dele. Ele arrota profanações. Você vomita porra. Fato. Você escolhe o sonho. Do casamento, da casa própria, do carro do ano, dos filhos adoráveis que viajam para parques temáticos nas terras do Tio Sam e ganham carro novo na maioridade. E quando paisagem perfeita do seu sonho se desintegra, você aprende o que é botox, preenchimento, lifting facial. Todos os postiços agora lhe pertencem. Boato. Você aceita a realidade. E não faz nada para retardar a erosão do tempo. Um rosto sem retoques, sentado, todos os dias, em meio a livros, papéis, pessoas, discutindo o destino das minorias, a preservação das florestas, a distribuição de renda, a violência contra a mulher. Com filhos. Sem filhos. Tanto faz. O mundo grita. Você escuta. Porque você grita com ele. 
Boato. Ainda não terminou. A cada 15 dias você pinta os cabelos. 
Fato. Tudo acaba. A cada 15 dias você recomeça. 

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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


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