O balanço de ferro fornido à esquerda,
colado à porta de entrada, acendia o vazio e o temor – pode-se vislumbrar, dada
a idade do dono da casa, que não mais haveria crianças dispostas a usá-lo,
quiçá um bisneto distante. Era, decerto, um enfeite relegado à própria sorte.
A parte que compreendia o vestíbulo era
invariavelmente penumbra. A luz estava constrita aos corredores laterais; e as
janelas, imensas, que ocupavam consideráveis espaços das paredes, estavam
enrijecidas pelo bolor interno.
Quando eu ia à casa de meu tio-avô, era um
evento perigoso. O pobre homem, depois da morte da ditosa esposa, não se sentia
digno de viver; entregava-se ao acaso, suplicando que o tempo-carrasco fosse
breve. Mamãe, no entanto, sentia-se na obrigação de visitá-lo, de levar, como
bem entendia, um pouco de afago, o famoso bolo de milho, de sua predileção, e
reportar que sua irmã, minha avó, igualmente doente, lhe mandara lembranças e,
de pronto, ele aquiescia, com uma reverência cortês, e desejava-lhe saúde.
As palavras, raras, que saltavam de sua
boca eram para suplicar que minha mãe não o abandonasse, que se sentia só, e
desandava a chorar, sendo consolado por seu ombro ossudo. Eu acompanhava a cena
e logo, assustado com o velhote lamurioso, me atrevia a ingressar num dos
rincões mais obscuros de toda a América – assim o projetava em minha mente. O
detalhe é que queria ser arqueólogo, cientista, e que devia superar esse
tremendo obstáculo: tinha medo do escuro, do imponderável.
Pensava que a casa era feita de material
resistente, dado ter de suportar o peso das cadeiras da sala, que não se moviam
por nada; era preciso três homens para mexê-las. A mesa, então, era
propriamente uma árvore maciça, pouco lapidada, que teria sido içada por um
helicóptero e colocada ali. Mas o que me interessava mesmo eram os animais
empalhados, expostos como troféus nas paredes da sala. O lado direito começava
com alguns ornamentos chineses, imagino, porque o homem era fascinado pela
cultura oriental, seguidos de uma coleção gigantesca de borboletas brilhantes,
uma cabeça de jaguatirica e outra de javali – este, com a boca semicerrada, que
delimitava a passagem de um certo curioso para os outros cômodos. À esquerda,
variavam, em fileiras desconexas, chifres, sendo um, a meu ver, tipicamente de
rinoceronte; mais aves, estas espalhadas pelo chão.
Questionava-me, ardentemente, como aquele
homem pouco, débil e atarantado, seria capaz de tamanhas aventuras. Visto que
aqui não há nada dessa fauna, teria se deslocado para outros países, a fim de capturá-los;
especialmente para a África, tão desejada por mim.
Como faria para conversar com ele? Minha
mãe, ao menor sinal, dava-me beliscões e dizia, entredentes: “Fique quieto ou
não vem mais!”. Prostrava-me ao seu lado, atento, para ver se sobrava alguma
informação, mas o homem era monossilábico, praticamente só respondia aos
questionamentos de mamãe, sim ou não, e largava um ligeiro sorriso; para
alegrá-lo, passava em câmera lenta as fotos de família, falando de um a um,
titio isso, titio aquilo; o homem se ocupava, e eu quase morria de tédio.
Além do mais, perpassava a casa a figura
enigmática de Aglaides, uma senhorinha de seus setenta anos. Para não fugir à
regra da época, era tratada como a governanta: “Esta é como se fosse da família!
São tantos anos, né, Aglaides?”, dizia mamãe, com o semblante amável. Para nos
agradar, ou distrair, saíam de suas santas mãos quindins e pudins – até hoje
não tenho ideia de ter comido algo parecido. Isso, sim, refreava o tédio. Mas,
se me ausentava para ficar na sala e tentar uma brecha para adentrar os
quartos, muitos, Aglaides dava um jeito de me seguir, espanando os objetos e
espalhando a poeira – lógico, uma tática, já que tinha forte alergia; para me
ejetar para próximo de minha mãe, ou, quiçá, irmos embora de uma vez.
Sim, titio guardava algo indecifrável aos
mortais. Quase sempre entorpecido pelos remédios fortíssimos para dor, assim
declarava Aglaides; com mobilidade restringida também pela artrite, tentava se
comunicar com o olhar – e, nesse dia, transmitia, perceptível para mim, a
excitação e o desespero.
…
No ano de 1980, aconteceu um evento que o
debilitou primeiro: ser associado ao tráfico de animais silvestres. Sendo
“franco das ideias”, como titia contava, conseguiu ser absolvido, livrando-se
da prisão – mas, de fato, teve de realizar trabalhos voluntários por dois anos,
atuando na recuperação e na reinserção de animais na natureza. Nesse meio
tempo, com a incerteza de um pesado processo sobre seus ombros, sofreu o revés
de perder titia num acidente de carro, quando voltava de Baturité.
Daí, seu único e excêntrico filho partiu
sem destino sabido. Não percebo se por confusão, mas uns diziam ser Noruega,
outros Dinamarca. Certo é que se regalou com parte da fortuna deixada pela mãe,
cerca de dois milhões de cruzeiros.
Vovó não admitia a desgraça que pesava
sobre sua família, mormente em seu irmão querido. Deu-nos, a todos os seus
filhos e netos, a incumbência de cuidar dele, até os últimos dias.
…
Aglaides podia facilmente tripudiar de
nossa inteligência com aquela carinha inocente. Mas, para mim, estava cheia de
más intenções ou mancomunada com alguém, à espreita de algum tesouro escondido
ali, no misterioso solo.
Sendo aprendiz de arqueólogo, resolvi
protegê-lo. Entrei no quarto de titio enquanto Aglaides saía para obrar no
banheiro do quarto dos fundos. Vasculhei rápido todos os espaços. Encontrei
duas chaves amarradas com arame no bolso de uma calça enxovalhada. Tentei abrir
as portas do guarda-roupa. Na última, quase sem esperanças, consegui; e, penetrando
mais, por baixo de um fundo falso, coruscou a boca de um cofre. Além da chave,
havia um código, o que me fez praticamente desistir. Foi quando, revirando suas
gavetas, encontrei um carnê velho de banco e algumas letras e números escritos na
folha final. A combinação bizarra de números e letras me lembrava algo
sobrenatural, como se fossem signos gravados numa pedra. Suei, testei um por um
e, finalmente, transpus a barreira. Amontoavam-se, como papéis quaisquer,
dólares; e, ao fundo, brilharam as barras de ouro.
Ouvi os passos de alguém, supostamente
Aglaides me procurando. Pus cada objeto nos seus devidos lugares e me retirei,
de fininho. Na verdade, bem na hora, mamãe também afirmava que teria sido uma
excelente tarde e que viria mais vezes, beijando a mão de titio, já se
despedindo. Aglaides me deu um tapinha nas costas, consistente o bastante para
me desequilibrar, caindo aos pés de minha mãe. Logo correram para me levantar:
“Está caindo de maduro, menino?!”. Acintemente, Aglaides pensava que me demoveria
de futuras aventuras.
Corri para o carro sem me despedir de titio.
O olhar dele pesava mais e o corpo parecia capengar como uma múmia. Mamãe pedia
desculpa por minha falta de educação; que não teria me ensinado a me portar
assim. Estava me borrando de medo, inclusive, de ser descoberto e, por isso,
sofrer graves consequências.
Ao som de Alceu Valença, convidando-me
para o casual deleite, sem mais nem menos sobreveio o carão e a ordem para desligar
o rádio. Assustei-me com o arroubo. Mamãe disse que eu estava muito atrevido para
o seu gosto. Desandei a chorar. Ela não tolerava me ver sofrer; pedia-me,
repetidamente, desculpas pelo tom, e justificava o cansaço, o mal de amor, as
desinteligências com meu pai. Enfim, caiu comigo no choro.
Aproveitei a deixa, depois de um tempo; pensando
em desopilar, soltei: “Mamãe, abri o cofre do titio; encontrei muito ouro e
dinheiro!”. “Como não?! É mesmo, seu tio é bem rico, posso ver”. Titio andava vestido
em molambos, apesar de ter sido alto funcionário do governo, sendo afastado
“por motivo de força maior”. “Sim, mamãe, posso garantir que vi; esse carro
ficaria cheinho de dinheiro vivo!”. “Pensei que fosse alguma coisa séria, João.
Pare com essa conversa tola. Chegando em casa, já sabe, três dias sem
videogame”.
…
Querendo saber notícias do irmão, que não
atendia aos seus telefonemas, vovó determinou que mamãe corresse para a Rua da
Sorte, nº 111. Não havia ninguém, uma alma viva ou morta, que se pudesse
vislumbrar. A primeira impressão era de que haviam levado o titio para algum
asilo, já que Aglaides estava bastante idosa. Mamãe ligou para os irmãos e
familiares, nenhuma notícia. Buscou os necrotérios, os hospitais, e nada a
respeito. Misteriosa, ainda mais, a placa que repousava na lateral da casa: “À
venda”. Quem a havia colocado ou autorizado que se colocasse? Ligou para o
corretor, que desconversou; alegou, furtivo, que a casa teria ido a leilão, por
dívidas.
Virou caso de polícia: inconcluso. Seria o
crime perfeito? Suspeitaram de Aglaides, a velha serviçal; mas esta, pelo que
se apurou, jazia numa cama na Santa Casa, vegetando.
Vovó baixou o decreto: que encerrassem o
dito acontecimento na família; não se tocava no assunto. A matriarca precisava
depurar-se da dor. Respeitamos. Agora, conto o que se passou, quando tinha dez
anos, sendo indagado constantemente por minha mãe, hoje idosa, que ficou
paranoica: “E havia dinheiro mesmo? Como Aglaides ficou daquele jeito?
Coitadinha! Que fim levou titio?”.
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