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domingo, 26 de julho de 2020

Calipígia



Tampouco era feia de rosto. Tampouco antipática. Tampouco tinha cabelos quebradiços ou desbotados. Tão menos ainda se esforçava para parecer o que era, por essência. Ai, que ódio! A mulher vestia-se somente de espontaneidade naquela microcalcinha dos diabos que fazia os glúteos perfeitos realçarem sobremaneira. E habitava nas costas dela uma tatuagem floral cuidadosamente disposta, como que se escorregasse de cima a baixo. Aquele derrière era algo simplesmente impossível de se desviar os olhos.

Nas revistas, no cinema e na TV, essas mulheres não me afetam. Podem até cansar de se exibir, que não me abalam. Existe o santo photoshop. Existe lente aumentativa, diminutiva. Há manipulação da beleza. Há marketing bom pra valer. Há os cremes tapadefeitos e as cirurgias que reparam até falha na alma. Mas, ao vivo, a coisa muda de figura. Eu juro que vi o corpo perfeito. Mas eu não estava preparada. Deparei com aquela criatura justamente no vestiário da academia que frequento! Uma tormenta em plena manhã de segunda-feira, depois de eu haver me esgotado naqueles aparelhos deformadores, depois de haver subido na balança denunciadora do sorvete do fim de semana.

Então, eu a fitei com extrema força, como se fosse possível sugar-lhe todos os sublimes contornos. Eu a fitei com aquela inveja pura da pecadora embutida que não ousa se despir nem dentro do próprio armário. Eu a despi da tatuagem e da bunda linda, e ainda havia beleza nela que não acabava. Eu ambicionei despojar-me da mesma forma, e que em mim houvesse tamanha formosura. Porque ela estava bem tranquila, consciente das nádegas que tinha, em harmonia com a gordura zero, o circuito impecável, a nudez ideal.

A calipígia não se abalou. Cumprimentou-me com educação e continuou enxugando o corpo que acabara de banhar. Conversava animada com as amigas de maromba, movendo graciosa os traços desenhados, em especial os seios a pino. Pontilhados de gotículas d’água desciam atrevidos pela tatuagem dorsal até a belíssima poupança rebolativa. Nada nela sobrava nem faltava; enquanto em mim restava a humilhação: eu era apenas eu, num corpo torto e lipidinoso – maxiceroula bege, tudo o mais coberto possível e, mesmo assim, salientando excessos –; enfim, eu não era aquela mulher feliz em sua microcalcinha vermelha.

Ela podia desnudar-se para o espelho, para as amigas, para seu homem, para a plateia, diante do sol ou da lua. Imagino que já tenha se despido na arquibancada durante um jogo de futebol só porque sentia calor insuportável. Ela vive pelada, acredito. Nasceu para causar encanto, êxtase e desconforto.
Vênus estátua, tudo bem; mas remelexo durinho de perfeição viva, longe de mim! É meu direito nunca mais vê-la nua. É meu direito não ter o desprazer de reencontrá-la. Troco o horário da malhação, saio da academia, tranco-me num agasalho Adidas pra sempre, furo os olhos. Não mereço outra agressão da calipígia.

Crônica de Maria Amélia Elói, menção honrosa no XXXIX Concurso Literário Felippe D'Oliveira, 2016.



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