Tampouco era feia de rosto. Tampouco antipática. Tampouco
tinha cabelos quebradiços ou desbotados. Tão menos ainda se esforçava para
parecer o que era, por essência. Ai, que ódio! A mulher vestia-se somente de
espontaneidade naquela microcalcinha dos diabos que fazia os glúteos perfeitos
realçarem sobremaneira. E habitava nas costas dela uma tatuagem floral
cuidadosamente disposta, como que se escorregasse de cima a baixo. Aquele
derrière era algo simplesmente impossível de se desviar os olhos.
Nas revistas, no cinema e na TV, essas mulheres não me
afetam. Podem até cansar de se exibir, que não me abalam. Existe o santo
photoshop. Existe lente aumentativa, diminutiva. Há manipulação da beleza. Há
marketing bom pra valer. Há os cremes tapadefeitos e as cirurgias que reparam
até falha na alma. Mas, ao vivo, a coisa muda de figura. Eu juro que vi o corpo
perfeito. Mas eu não estava preparada. Deparei com aquela criatura justamente
no vestiário da academia que frequento! Uma tormenta em plena manhã de segunda-feira,
depois de eu haver me esgotado naqueles aparelhos deformadores, depois de haver
subido na balança denunciadora do sorvete do fim de semana.
Então, eu a fitei com extrema força, como se fosse possível
sugar-lhe todos os sublimes contornos. Eu a fitei com aquela inveja pura da
pecadora embutida que não ousa se despir nem dentro do próprio armário. Eu a
despi da tatuagem e da bunda linda, e ainda havia beleza nela que não acabava.
Eu ambicionei despojar-me da mesma forma, e que em mim houvesse tamanha formosura.
Porque ela estava bem tranquila, consciente das nádegas que tinha, em harmonia
com a gordura zero, o circuito impecável, a nudez ideal.
A calipígia não se abalou. Cumprimentou-me com educação e
continuou enxugando o corpo que acabara de banhar. Conversava animada com as
amigas de maromba, movendo graciosa os traços desenhados, em especial os seios
a pino. Pontilhados de gotículas d’água desciam atrevidos pela tatuagem dorsal
até a belíssima poupança rebolativa. Nada nela sobrava nem faltava; enquanto em
mim restava a humilhação: eu era apenas eu, num corpo torto e lipidinoso –
maxiceroula bege, tudo o mais coberto possível e, mesmo assim, salientando
excessos –; enfim, eu não era aquela mulher feliz em sua microcalcinha
vermelha.
Ela podia desnudar-se para o espelho, para as amigas, para
seu homem, para a plateia, diante do sol ou da lua. Imagino que já tenha se
despido na arquibancada durante um jogo de futebol só porque sentia calor
insuportável. Ela vive pelada, acredito. Nasceu para causar encanto, êxtase e
desconforto.
Vênus estátua, tudo bem; mas remelexo durinho de perfeição
viva, longe de mim! É meu direito nunca mais vê-la nua. É meu direito não ter o
desprazer de reencontrá-la. Troco o horário da malhação, saio da academia,
tranco-me num agasalho Adidas pra sempre, furo os olhos. Não mereço outra
agressão da calipígia.
Crônica de Maria Amélia Elói, menção honrosa no XXXIX Concurso Literário Felippe D'Oliveira, 2016.
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