Albbano
chegou cedo ao “Fetal”, com o coração de sangue frio em agonia.
Na véspera, mais um dos seus torossauros poedeiros dava mostras de
mal-estar e doença. Alongou o olhar pelo extenso paúl em que
habitualmente pastavam e não pôde evitar o desalento. Só meia
dúzia era visível. Em ansiedade, apressou o passo para a chocadeira
central.
O
sol iniciava o percurso descendente sobre a área predominantemente
agrícola que será conhecida, sessenta e cinco milhões de anos
depois, por Lourinhã e se estende bem para dentro do espaço que
será mar no futuro. Em todos os ninhos urbanos terminaram já as
diligências alimentares do período zenital, exceto no ninho de
Albbano. Não é comum ele atrasar-se, quanto mais não aparecer em
tempo de tão vital necessidade. Alddina mantinha quentes as fatias
de ovos de anquilossauro com caules tenros de rhynia, enquanto,
inquieta, espreitava o caminho, na esperança da chegada iminente do
companheiro. A certo momento, achou que tamanho atraso não podia
significar nada de bom e resolveu pedir ajuda ao filho de ambos,
através do comunicador. Alccino não se surpreendeu com a chamada da
mãe, porque era frequente ela ligar-lhe para contar pequenas
peripécias domésticas, mas quando ouviu a sua voz angustiada a
dizer que o pai ainda não chegara para se alimentar, entregou de
imediato as tarefas de extração salina que executava numa bacia
marinha interior e correu a procurar o pai. Já não era a primeira
vez que ele se perdia ou dava sinais de desorientação.
— O
teu pai saiu do ninho mal raiava o sol e disse que ia ao Vale Fetal,
como todos os dias — informou ela. — Estamos na época em que
eclodem muitos ovos e é preciso não haver descuidos com as
dificuldades das crias.
— Está
bem, mãe, não te preocupes que eu vou procurá-lo. Assim que o
encontrar, comunico contigo — sossegou-a ele.
Alccino
transpôs rapidamente a distância até à exploração pecuária do
pai. Com o olhar percorreu as suaves ondulações cobertas de
polipódios, onde pastavam pachorrentamente uma dúzia de
torossauros, e a tentar discernir que animais chafurdavam na lonjura
dos paúis das zonas baixas. Não viu a silhueta altiva do pai, um
parassaurolofo corpulento, mas um pouco dobrado pela idade. Entrou na
chocadeira central, e os funcionários disseram que o tinham visto
cedo, mas que ficara abatido quando soubera de mais três eclosões
goradas.
Alccino
pediu a dois para, em conjunto, fazerem uma busca na exploração.
— Eu
vou pela encosta do lado esquerdo, e vocês procurem no vale, junto à
zona húmida! A propriedade é grande e ele pode estar caído em
qualquer lado.
Embora
achasse que era mais provável encontrá-lo nas zonas baixas, pensou
que, em cotas mais elevadas podia avistar maiores distâncias e
descobri-lo. Após um tempo de caminhada atenta pela vertente da
ladeira, alcançou o alto da colina. Cheiros adocicados embebiam-no.
Por momentos, abstraiu-se do que o trouxera ali. Olhou a toda a
volta. Para norte, a vista admirável e querida do seu Vale Fetal,
com o verde de vários matizes a colorir a distância até à
vertente oposta e mais além. Para sul, a dois vales de distância,
as manchas redondas e ocres dos ninhos urbanos da povoação. Mais
perto, os vales dos vizinhos e amigos Esppinos e as suas explorações
pecuárias de alamossauros, os enormes herbívoros ternos e
pachorrentos. Seria possível que o pai tivesse vindo visitar os
amigos? Antes de decidir procurá-lo junto dos vizinhos, pensou
entender o que acontecera. O pai tinha ficado desanimado com as
notícias da manhã na chocadeira e, com a idade, isso
desorientara-o. Veio-lhe à memória outro episódio de há muitos
anos, quando uma epidemia lhe matara dezenas de animais. Nessa
altura, foram descobri-lo amodorrado numa enorme rocha lisa virada ao
sol do oeste, implantada num esporão elevado de onde se avistava o
mar e aonde só se chegava por uma vereda. Orientou os funcionários
para voltarem ao trabalho e pôs-se a caminho.
Realmente
foi encontrar o pai alapado na Pedra do Poente em grande prostração.
A crista, habitualmente alaranjada, era agora cinzento-esverdeada.
Não parecia ferido, só abatido. Aproximou-se suave, mas não
furtivamente. Queria ajudá-lo, não invadir a sua privacidade.
— Então,
pai! Está aqui! Estávamos a ficar preocupados...
Não
obteve reação. Albbano mantinha um olhar de enorme tristeza perdido
na lonjura. Nada parecia poder animá-lo.
— Não
fique assim, pai! — disse Alccino cheio de ternura. — São só
mais três ovos gorados. Já aconteceu muitas vezes.
O
rosto do ancião baixou, em dor interior, sem responder.
— Tem
de aceitar, pai! Os tempos de fartura e fertilidade já lá vão.
Este é o mundo que temos agora.
Alccino
comunicou com a mãe a sossegá-la e continuou a tentar animar o pai,
com argumentos racionais de relativização dos prejuízos.
Finalmente, Albbano começou a falar em voz baixa, pausadamente.
— Não
são só mais três ovos gorados, filho, nem só mais um animal
morto! Nós estamos a extinguir-nos. O ambiente está envenenado com
os compostos de irídio que servem para tudo. As crias não conseguem
romper a casca. Está cada vez mais dura e inquebrável. E não é só
com os animais. Como já te contei algumas vezes, para tu nasceres
houve que quebrar a casca artificialmente. Nós, os parassaurolofos,
praticamente já só nascemos de crustatomia. Se não fossem os
cuidados obstétricos, desaparecíamos. O panorama geral é
preocupante. As crias não conseguem romper a casca, os ovos não são
fertilizados, as populações de todas as espécies estão a diminuir
a um ritmo assustador. Todos os anos desaparecem muitas espécies
para sempre.
Calou-se,
por momentos, como que a lembrar-se de outros exemplos. Alccino
respeitou o silêncio do idoso.
— A
destruição da vida no planeta, tal como a conhecemos, está a tomar
proporções gigantescas. Dantes, além, avistava-se o tremeluzir da
superfície do mar. Agora, o que se vê são reflexos de objetos a
flutuar. Mantas de tralha a cobrir enormes áreas de oceano. Há
quanto tempo lá não vais? É triste, deprimente, apetece não
voltar lá mais. Como nos deixámos chegar a esta situação? Estamos
mesmo em perigo, acredita!
Fez
uma pausa, a ganhar alento.
— Eu
vou-me informando, sabes! Recebo muita
divulgação científica.
Já houve outras épocas da Terra com indícios semelhantes e que
resultaram em enormes extinções. A maior foi há 185 milhões de
anos, que fez desaparecer 96% das espécies marinhas e 70% das
terrestres. Devido à gravíssima situação que atravessamos, os
cientistas já falam na
Extinção em massa do Cretácico, a época atual, ou a Quinta
Extinção. Estão registadas cerca de oitocentas espécies que
se extinguiram nos últimos
quinhentos anos, mas, como a maioria não está documentada, os
cientistas calculam que é mais provável que se tenham extinguido
entre vinte mil e dois milhões de espécies, só no último século.
E, tendo em conta os limites do conhecimento atual, a taxa anual de
extinção pode chegar às 140.000 espécies. Estamos no limiar da
catástrofe.
Alccino
agachou-se, abatido pela força terrível dos números que o pai lhe
atirava. A preocupação com o desaparecimento do progenitor
desvanecera-se, mas agora um peso inesperado acabrunhava-o. Como era
possível que nunca tivesse ouvido falar disto?
— Percebes,
agora, porque estou desanimado, sem esperança? — interpelou-o
Albbano. Há muito que me vou dando conta do que os cientistas vão
divulgando.
— Mas,
pai — reagiu Alccino —, não são só teorias malucas de tipos
que veem um mosquito e lhes parece um alamossauro? É que eu nunca
ouvi falar disso…
— Não,
Alcci, quem afirma que a extinção atual é um facto são cientistas
conceituados entre os seus pares. Dão conferências, mostram dados,
mas parece que ninguém os ouve. E dizem mais; dizem que somos nós —
a espécie dominante —, que estamos a provocar a extinção em
curso. Com a caça intensiva, a introdução de organismos perigosos
para os nativos, a destruição dos ambientes
naturais, a
desflorestação, a sobreexploração agrícola, a poluição, o
envenenamento com agrotóxicos e hormonas pecuárias. Infelizmente, o
que está na raiz de todos estes problemas é o crescimento
populacional contínuo da nossa espécie e o consequente
superconsumo. Já viste que os animais, sobretudo os grandes, não
têm áreas onde possam viver em liberdade? O planeta está
praticamente todo ocupado por nós...
— Mas
sempre houve espécies a desaparecer de maneira, digamos, natural,
pela natural seleção natural…
— Sim,
só que com a nossa ação, a que alguns também chamam natural, mas
de extensão e intensidade avassaladoras, a perda de biodiversidade é
dez a cem vezes mais rápida. E seremos nós que acabaremos por pagar
um preço demasiado alto pela rápida diminuição do único conjunto
de vida que conhecemos no Universo. Ficaremos sozinhos. Sem a
concorrência que vencemos, extinguimo-nos também. Foi uma má opção
termos dado ouvidos ao venerado texto que nos aconselhou a
multiplicar-nos e a prevalecer sobre todos os outros companheiros de
viagem desta nave cósmica.
— Isso
não pode ser assim tão dramático, pai. Nós somos a espécie mais
bem sucedida de toda a história do planeta...
— Este
sucesso começa a parecer demasiado catastrófico. Os factos são
conhecidos, mas infelizmente desconsiderados. E
quando há tipos que, como
eu, prestam atenção aos problemas ambientais, também não sabem
como resolvê-los ou ajudar a minorá-los. A minha “solução”
hoje foi esta: deprimir-me. A da nossa espécie devia ser positiva,
assertiva, concertada, global, muito profunda. Eu não quero
mostrar-te para onde deves olhar, só gostava que tomasses
consciência de que há muita coisa a distrair-nos e que nos deixamos
alegremente ocupar com problemas menores. A maior razão da minha
desesperança é que não acredito que algum dia consigamos inverter
o caminho de razia que trilhamos. Quando deteriorarmos o planeta a um
nível irreversível, seremos nós a extinguir-nos. Ironicamente,
essa pode ser a solução para o planeta e para a vida que restar:
livrar-se de nós.
Albbano
calou-se. Pai e filho mantiveram-se pensativos ainda por algum tempo.
Talvez por ter desabafado, Albbano começou a sentir-se com forças
para regressar. Em passos brandos, porque anoitecia e a vereda podia atraiçoar, dirigiram-se
para o ninho, em silêncio. Por cima do horizonte, ia nascendo o cometa, que, havia semanas, iluminava as noites em todo o mundo, fazendo os agourentos predizer desgraças iminentes. A majestosa cauda ocupava já boa parte do lado nascente do céu. Caminhar para aquele esplendor celeste não atenuava a sombra de preocupação com a saúde do pai com que Alccino vinha a cismar.
Alddina
recebeu-os ainda apreensiva, mas já calma. Depois de uma refeição
ligeira, Albbano aninhou-se. Alccino chamou a mãe e agacharam-se a
conversar.
— Mãe,
o pai não está bem. Fez-me uma conversa completamente alucinada. Só
fala em fim do mundo e em catástrofes. É expectável que um ancião
tenha conversas relacionadas com a morte que se avizinha, mas
parece-me que ele está obcecado com ideias de aniquilamento. Temos
de o levar ao cuidador mental.
O
olhos de Alddina humedeceram. Em esgar, pronunciou:
— Já
há algum tempo me tinha apercebido de que algo não estava bem, mas
não queria admitir. Deve ser excesso de trabalho. Meu querido Albba!
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Rembrandt
(atribuído), Retrato
de um velho,1632.
Coleção
Museu Fogg, Harvard, E.U.A.
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