Na
distante China, tinha surgido mais um vírus. Como tantas vezes
antes. Não costumava chegar cá e, quando chegava, não passava de
uma gripe fugaz. Os chineses tinham lá aqueles ambientes insalubres.
Víamo-los andar frequentemente de máscara, por causa da poluição,
por causa de uma fuga química, por causa de um dos vírus deles.
Agora,
pareciam estar bastante aflitos, a fechar cidades e fronteiras, a
controlar milhões de pessoas por meios eletrónicos. A mandarem-nas
ficar fechadas em casa. O número de infetados começava a ser
assustador. E o de mortos parecia irreal. Tudo por causa de um vírus
que passara de um morcego para um pangolim, que alguém comera?
Esperávamos que conseguissem ultrapassar o problema, que,
felizmente, não chegara cá. Nem chegaria — asseguravam-nos.
Era
por meados de fevereiro. Manuel Gondim juntou a família para
comemorar os seus 76 anos. Era bom ter os mais pequenos na sua festa,
brincar com eles. Não tinha preço o enlevo.
Em
poucos dias, começou a ouvir-se falar em infetados no Irão, em
Itália, em Espanha… «Aqui ao lado? Oh, caraças!» Pelos ditos,
era gente que tinha estado na China e viera infetada. Parecia ser
meia dúzia de episódios infelizes. A eficácia dos sistemas de
saúde ocidentais iria travar a propagação, sem problema —
pensava-se.
Começou
então a perceber-se que o mundo se tornara um lugar global, no qual
as pessoas se deslocavam entre todos os lugares em números
astronómicos. Que, enquanto se tratava um doente, muitas outras
pessoas já tinham sido contaminadas por ele, sem ninguém perceber.
E que, a cada momento, milhares de infetados estavam a contaminar
milhares de outras pessoas insuspeitas. E que este vírus não
provocava uma gripe vulgar. Estava a matar em números inimagináveis.
Manuel
aproveitou uma previsão de uma semana de bom tempo para ir à terra
plantar árvores. Agora, de velho, interiorizara a necessidade
ambientalista de contribuir para deixar um planeta menos inóspito
aos netos. Árvores, oxigénio, humidade, biodiversidade. O quintal
era grande; dava para uma vintena de árvores, mesmo separadas por
intervalos de seis ou sete metros. Plantou nogueiras, castanheiros,
limoeiros, macieiras. Até a bizarria de uma pimenteira. Não se
importou com a imagem de velho alquebrado a manejar uma enxada. Só
os braços se queixaram. Três dias depois, contemplou aqueles caules
frágeis a fazer verdejar meia dúzia de folhinhas, cada. Tinha
parecido uma utopia e, afinal, fora tão fácil. Esperava que daí a
um ano já tivessem um metro de altura. E daí a cinco anos?
No
regresso, as notícias vieram derrubar o seu contentamento: o governo
aconselhava isolamento social, dado o perigo de morte de quem fosse
contaminado, em idades elevadas. O vírus tinha uma taxa de
letalidade de mais de dez por cento, em pessoas acima dos setenta.
Fechou-se em casa com a mulher, com a consciência cada vez mais
aguda de que sair à rua era uma jogada de roleta russa. Podia-se ir
à mercearia em frente e voltar são, ou trazer para casa uma
silenciosa sentença de morte.
Foi
tentando entreter-se a acabar as dezenas de leituras que deixara a
meio e a acompanhar uma ou outra série, mas a apreensão nunca o
abandonava. Sabia que o assassino andava lá fora, pronto a
apanhá-lo, não tinha dúvidas. Os dados da sua cidade indicavam uma
subida constante de infetados que, em pouco tempo, já ia em várias
centenas. Quantas outras centenas de infetados andariam já por aí,
sem ninguém saber?
O
mundo transformara-se na mais aterradora versão de um
filme-catástrofe de série B. As imagens das grandes cidades
europeias mostravam ruas tão vazias como a sua. Eram vulgares por
todo o mundo imagens de filas de caixões, lares de idosos cheios de
velhos mortos, sepultamentos em valas comuns. O diabo fora libertado
e cobrava corpos com todo o rancor que os livros sagrados afiançavam.
Manuel
ia registando os números fornecidos pelas autoridades de saúde,
compondo gráficos de progressão, sempre na esperança de notar as
curvas vergarem-se ao controlo humano. E observava a limpidez
saudável do mapa do seu concelho de origem: sem registo de
infetados.
As
informações dominantes diziam que toda a gente acabaria por ter
contacto com o vírus; a estratégia nacional era defensiva e
procurava que esse contacto se desse o mais tarde possível, para que
o sistema de saúde fosse mantendo, ao longo do tempo, a capacidade
para tratar quem ficasse doente, sem colapsar. A esperança — ténue
— era só a de maior disponibilidade de meios de tratamento, não
de cura. Não era dada nenhuma garantia de que ele, ou qualquer
outro, se salvasse, se só fosse infetado daí a muito tempo. Tudo
dependia da capacidade de internamento hospitalar.
A
meio de abril, Manuel desabou de desalento: morrera do vírus o
escritor Luís Sepúlveda, no mesmo dia em que a limpidez cartográfica
do seu concelho fora manchada pelos primeiros infetados. Um choro
rouco saiu-lhe da garganta.
Havia
que tomar uma posição pessoal sobre a própria vida. Afinal, devia
ter medo da morte ou enfrentar a ideia com toda a racionalidade? Não
se entregaria, não; se ela o quisesse, teria de vir buscá-lo. Mas
também não se importaria de morrer, concluiu, com tristeza. Pensando bem,
tivera uma vida boa e razoavelmente longa. A conclusão deu-lhe uma
calma que já não tinha havia algum tempo.
Manuel
começou a preparar o que ia deixar. Era bom que os herdeiros
encontrassem as papeladas organizadas. Iriam agradecer-lhe. Passou a
embrenhar-se nos inúmeros papéis que abundavam nas estantes da
arrecadação. Tanta coisa irrelevante, tanta tralha de que já não
se lembrava. Mesmo quando estava bem arrumada em dossiês. Foi
enchendo sacos de papelada inútil. Que ia despejar ao papelão,
noite adentro, para não encontrar ninguém.
As
reflexões desencadeadas pela situação de confinamento social
produziram nele algumas alterações subtis. Começou a prestar maior
atenção à passarada que, com a menor quantidade de gente nas ruas,
passou a fazer festas e concertos nas árvores próximas. Gostava
especialmente do canto dos melros, muito mais sociáveis do que eram
na sua adolescência rural. E passou a dedicar muito tempo a vê-los
caçar no jardim traseiro e a deslocar-se como cães de caça, no
típico corre-e-para, a perceber onde está a minhoca, que devem
achar saborosa.
Finalmente,
os números começaram a abrandar a ferocidade. Claramente, tinha
passado o pico da pandemia e começava a falar-se em desconfinamento.
Havia que pensar agora na economia. Gradualmente, reabriram
barbeiros, restaurantes, escolas, centros comerciais. A normalidade
anunciava-se com otimismo. Cortaram-se as florestas capilares, voltou
a saborear-se o prato especial no restaurante favorito, os pais de
crianças e jovens em idade escolar suspiraram de alívio por
voltarem a ter um pouco de sossego em casa.
Manuel
Gondim voltou a reunir em casa filhos e netos, no almoço de domingo.
Um sentimento de esperança na vida andava no ar. Qualquer dia iria à
terra verificar se as suas árvorezinhas se tinham aguentado.
Mas a besta não tinha desaparecido. Mantinha-se alapada em pulmões insuspeitos, manhosa e cobarde. Então,
passadas poucas semanas, as notícias davam conta da explosão de
vários focos de centenas de infetados por conta, ora de festas ou
ajuntamentos com inúmeros convivas fartos de confinamento, ora de lares de idosos que
pareciam pegar a infeção como a palha pega fogo. E também por via das condições precárias de transporte das multidões de gentes que tinham de viajar engarrafadas pela madrugada, para compor os cenários de trabalho de camadas de população não tão desfavorecidas. Foi reimposto o
isolamento social radical em várias cidades, inclusive, na sua. Nos Estados Unidos e no Brasil, os números descomunais de mortos refletiam o delírio negacionista de matriz evangélica dos presidentes.
Manuel
voltou a remeter-se ao exílio caseiro. Uma grande tristeza ia
invadindo o seu olhar, enquanto testemunhava o ermo em que voltara a
transformar-se a sua rua.
Por
inícios de julho, começou a tossir; tosse seca, persistente, não produtiva. Como se tivesse a garganta arranhada. Não valorizou. Quis acreditar que devia ser outra coisa qualquer. Podia ter apanhado um golpe de frio, ao ir de noite à rua. Ou ser uma irritação ao omnipresente álcool-gel. Mesmo que fosse uma constipação…
Com o aparecimento de febre, ligou para a linha dedicada à Covid-19.
Uma equipa especializada foi fazer-lhe um teste de despiste. Mandaram-no passar a dormir noutro quarto, e que os cônjuges usassem máscara nos contactos imprescindíveis. Telefonariam com
regularidade, para avaliar a evolução.
Continuou
a piorar sensivelmente ao longo da noite. No dia seguinte, uma
ambulância foi buscá-lo e levou-o para o hospital público —
blocos de Covid-19. O teste dera positivo.
«Como? Onde? Quando?» — perguntava-se, revoltado com a cobardia da besta e a injustiça perante o seu imaculado confinamento. Quiseram saber quem o poderia ter infetado. Como saber? Talvez numa das idas à mercearia, apesar da máscara. Ou daquela vez que encontrou um desgraçado a vasculhar o caixote, quando foi despejar lixo.
Manuel estava sozinho, mas
percebeu muitos outros doentes, no bloco. Depois da administração
dos fármacos que então se considerava darem resultados, embora incertos, a equipa médica percebeu que ele começava a
ter dificuldade em respirar e que, se não fosse ligado a um
ventilador, corria risco de vida.
Apesar
de envolvido por uma neblina de ansiedade e estupefação, sentiu a
atrapalhação de médicos e enfermeiros. «Só há um ventilador» —
pareceu-lhe perceber da conversa. Lembrou-se então das palavras
recentes de um general que, de peito feito, tinha declarado que, em
caso de necessidade, abdicaria de um ventilador a favor de um homem
com mulher e filhos. Dando a entender que qualquer idoso devia fazer
o mesmo.
Era
um gesto bonito, um ato digno de ser o último de uma vida. Decidiu-se por ele; sentiu orgulho de si.
Sem
tentar reprimir o alagamento dos olhos, conseguiu chamar uma
enfermeira e comunicou-lhe a terrível decisão:
— Se
tiverem alguém mais jovem… — inspirou duas ou três vezes antes
de conseguir completar — deem-lhe o ventilador antes a ele.
E
deixou cair a cabeça, derrotado, mas sereno.
— Não
se preocupe, senhor Manuel. Vamos levá-lo para os Cuidados
Intensivos onde será devidamente tratado. Há lá muitos
ventiladores, com certeza. Vai ficar tudo bem!
Foram
as últimas palavras que ouviu, antes de se apagar. O sentimento de fracasso neste último gesto esvaiu-se com ele.
Apesar da respiração assistida por um ventilador, não voltou a dar acordo de si. O óbito foi declarado ao fim de dezoito dias.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Giorgio de Chirico, Praça de Itália com político, s/ data [1913–14].
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2 comentários:
Muito bem conseguido, amigo Joaquim Bispo, as nossas angústias e os altos e baixos da esperança durante estes tempos tão estranhos, em que todos nos sentimos "Manuel Gondim". Parabéns.
Obrigado, Manuel Mendonça!
O texto é desesperançoso; cumpre a função de alerta da gravidade do problema, falha na função de fortalecer a resiliência.
Abraço!
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