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terça-feira, 16 de junho de 2020

O que deu pra ser



Do que nós fomos, é disso que não me desgarro. Tanto. Pouco. A intensidade oscilante entre dois. A imperfeição consentida. Havia tudo isso. O que não havia era tempo, esse desfrute que se adianta em morte ou se eterniza em passado.
Uma menina feia. Encolhida num jeans errado. Perguntando alguma coisa. A boca pálida se expressando em reticências e monossílabos. Olhos de fossas oceânicas. Olhos de risco. Blindados pelas lentes escuras de um ray-ban falsificado. O resto era de verdade. E as pessoas de verdade nunca chegam com alarde. Vão se ajeitando devagar. Como os gatos, silenciosos, insinuantes. Os gatos que tanto nos determinam: se; quando; quanto. Plenos. Leves. Senhores da casa. Como a menina feia. 
Aconteceu quando foi hora. Sem nenhum depois sugerido pela insegurança das posses. Trepa comigo, ela disse. E eu inteiro respondi que sim. Apertando, chupando, mordendo. Apressado como os meninos de primeira levaUm estardalhaço de gemidos brigando com o barulho das buzinas lá embaixo. Ela me curando da urgência. Gozando em monossílabos fortes. 
Era uma coisa das tardes. Uns beijos curtos, roçados, descambando em trepadas sem roteiro. Tesão. Tão forte que às vezes explodia ainda no lençol. Depois, ela ia embora. Sem despedida. E eu ficava gritando Volta logo! Mas gritando por dentro.  Com medo de não acontecer. Acontecia. E éramos de novo nós dois naquela cama de Sodoma. Midat Sodom. A cama justa. Sem amputações nem estiramentos. Apenas nós, cabendo na medida exata. Salificados um pelo outro. Fornicação e conversas. Política. Casamento. Filhos. Aborto. Dinheiro. Trepadas. Quantas coisas se deitavam naquela cama estreita. Sem nos alertar que quando tudo se completa é que tudo se rompe. 

Uma dia ela veio. Mas não era mais ela. Eram palavras que eu não queria escutar. Câncer. Morte. Verdades descabidas para uma cama exata. Ela que não era mais ela. Deitada ao meu lado. Sem me tocar. Como se morte pegasse. Deitada. Vomitando a si mesma. Resgatando projetos antigos de uma igreja e de um homem de terno e de um vestido de noiva e de um véu bem comprido e de um buquê disputado por mulheres que procuram atalhos. E de uma casa perfeita, de um marido devotado, de filhos que seriam engenheiros, médicos, advogados, empreiteiros. Inteligentes. Ricos. Estudados. Educados. Educados até para cheirar pó. Sem fungar. Resgatando projetos antigos de ser puta. De usar batom vermelho, calcinha enfiada na bunda, salto alto. De chupar dois ou três paus por noite. Ou vários. De fazer uma espanhola na rua imunda até sentir o vento arrepiar o bico dos peitos. De arregaçar a bunda para todas as picas. De falar caralho!, porra!, mete com força! com a intensidade das mentiras. De fingir gritos e orgasmos — personagens da pantomima de foder. De comprar presentes para a família perfeita com o dinheiro das trepadas. Senhora. Puta. Felicidade dobrada. 

De tanto, só deu para ser câncer e morte. No meio do verão. Cedo demais.




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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


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