A
culpa é toda do Paulo. Se não tivesse passado o semestre todo a provocar-me e a
insultar-me eu nunca teria feito o Seguidor.
Sou
na melhor das hipóteses um aluno medíocre, totalmente satisfeito por ir
passando simplesmente nos exames. Não estou interessado numa carreira nos
Corpos Governativos, por isso mesmo que acabe em último na minha turma, isso será
suficientemente bom para os meus objetivos. É claro que o meu orgulho nunca permitiria
que isso acontecesse, mas desde que as minhas notas me mantenham nos dois
terços inferiores da turma, estou bem. Só os do terço superior entram
automaticamente, os outros têm de se sujeitar a mais estudos e exames que só
podem ser feitos voluntariamente.
Mas
o Paulo não me deixava em paz. Mal reparou que a Ana estava interessada em mim,
ou antes, que eu estava interessado nela, estava sempre a apontar as minhas
falhas, a minha falta de ambição, a minha “estupidez”. Tornei-me motivo de gozo
da turma e, graças aos amigalhaços do Paulo, o palhaço da escola. Nunca lhe
ocorreu que eu pudesse ter outros planos e que obter boas notas poderia
interferir com eles. Mal se entra no terço superior de uma turma ficamos
condenados a tornarmo-nos parte do Governo.
É
uma vida boa, segura, com bons salários, mas não é definitivamente para mim.
Planeava estabelecer-me por conta própria, provavelmente nos extremos do Espaço
conhecido, onde se fazem e perdem fortunas em minutos mas onde a vida nunca é
aborrecida. Queria aventura, mudança, viver no fio da navalha. E para o
conseguir tinha de garantir que quem mandava me via como um inútil. Ou antes,
inútil de acordo com as regras vigentes e bom apenas para receber o subsídio
básico que a nossa gloriosa sociedade atribui aos aleijados, aos doentes e aos
burros. Ninguém passa fome, mas só os melhores são chamados a servir. É esse o
seu lema.
Se
pensam que era uma tarefa fácil, então devem ser realmente muito estúpidos. Com
o meu QI podia facilmente arrasar em todos os testes e exames. Garantir o
número apropriado de respostas erradas era extremamente difícil. Nunca chumbei,
mas curiosamente, do ponto de vista dos professores, a minha média flutuava
sempre mesmo abaixo da linha de separação do terço superior da turma. Não a
ultrapassei uma única vez, nem mesmo quando 20 dos melhores alunos desceram
vários lugares devido a uma partida que correu seriamente mal. E só vos digo
que isso exigiu cálculos realmente complicados.
Tinha
até planos para escrever um manual sobre o assunto mal me visse em segurança
fora do sistema. Achei que seria um bestseller entre as pessoas a quem não
agradava a vida “segura” que a nossa sociedade estava apostada em garantir a
toda a gente, quer a quisessem ou não. Ia chamar-lhe “Como ter êxito na vida
fazendo de lorpa”. Podia ser o início da minha fortuna.
Mas
o Paulo estragou todos os meus planos e o futuro glorioso que eu podia ter
tido. Não posso culpar a Ana, apesar de que nada teria acontecido se eu não me
tivesse apaixonado por ela. Independentemente do papel que terá desempenhado,
fê-lo inconscientemente. Nos meus momentos mais sérios acredito até que ela mal
dava pela minha existência. Ou que tenha amado o Paulo. É que acabou por se
casar com um tal José, um rapaz simples e não demasiado brilhante cuja
existência ignorávamos. Era alguns anos mais velho que nós, um vizinho da sua
terra natal por quem tinha uma paixoneta desde miúda. Gerem agora um vasto complexo
agrícola e pelo que ouvi foram-lhes concedidos quatro filhos.
Mas
permitam que retome a narrativa.
Tinha
descoberto que estava loucamente apaixonado por Ana, a rapariga a quem tinha
sido atribuído lugar à minha esquerda nas aulas. Nunca tínhamos conversado, mas
isso não era um problema. Ela era mesmo muito bonita, com o tipo de beleza
popularizado pela estrela Real-Vi mais popular na altura, com uma voz musical e
movimentos elegantes e sinuosos. Raramente falava nas aulas e as suas notas
eram consideravelmente inferiores às minhas. É claro que presumi imediatamente
que estava a fazer o mesmo jogo que eu, a fingir-se de estúpida para poder
viver a sua própria vida. Nunca me ocorreu que fosse simplesmente tapada, não
com aquele aspeto de deusa superior.
Paulo
sentava-se do outro lado dela e apercebeu-se logo do modo como eu a olhava. Não
estava minimamente interessado, não era o género de beleza que apreciava, mas
não podia permitir que um dos Estups ansiasse pela beldade da turma. A guerra foi
declarada e as operações decorriam em duas frentes. Por um lado, perseguia-a
ativamente, com resultados indiferentes, confesso, e por outro lado nunca
perdia uma oportunidade de me meter no meu lugar. Ou antes, no lugar que achava
que era o meu.
Fiz
ouvidos moucos vezes sem conta, firmemente decidido a não deixar que nada
interferisse com o meu objetivo final. Mas quando o Professor Silva anunciou o
projeto especial que daria metade da nota final e o Paulo começou a
comportar-se como se já tivesse ganho, estalou algo dentro de mim. Decidi que
iria arrancar-lhe o prémio, custasse o que custasse. Se com isso conseguisse
atrair a atenção de Ana, tanto melhor. Mas bater Paulo e os seus amigalhaços
era tudo o que eu desejava. Por uma vez iria mostrar quem era realmente e ser o
melhor de todos.
Tínhamos
três meses para concluir o projeto e passei mais de um mês a pesquisar os
extensos arquivos da Universidade. Procurava algo especial, uma ideia que
sobressaísse de repente com um fulgor súbito de brilhantismo. Descartei ficheiros
mais recentes, dando preferência aos mais antigos e quase esquecidos que toda a
gente ignorava. Se quisesse encontrar algo diferente e invulgar teria de sair
da rota batida.
O
tempo já escasseava e eu começava a entrar em desespero quando descobri um
vislumbre de uma ideia. Veio, acreditem ou não, de uma história antiga, quase
um conto de fadas, da época lendária anterior à Era Espacial, uma época chamada
“Época da Guerra Fria” ou, às vezes, “Época da Paranoia Nuclear”. A linguagem
era difícil, com muitas palavras desconhecidas, e o conceito de uma sociedade
sem viagens espaciais e receosa da energia nuclear muito difícil de entender.
Mas deu-me a ideia de que precisava desesperadamente.
Passei
as duas semanas seguintes a pesquisar a tecnologia de que precisaria para
implementar a engenhoca que tinha em mente e a procurar, ou antes, a roubar as
peças caras de que precisava. Era nanotecnologia no seu melhor e a maior parte
dos componentes vieram do Departamento de Tecnologia Avançada. Não que
soubessem que me estavam a subsidiar. Comparados com os que estudara
minuciosamente tendo em vista a minha futura carreira numa parte incerta do
universo, os seus dispositivos de segurança eram canja.
Construir
o Seguidor foi a parte mais fácil. Fui sempre habilidoso com ferramentas e
mesmo em miúdo, lá na terra, conseguira desempenhos das nossas ferramentas
robóticas bem acima dos obtidos até pelos trabalhadores mais hábeis. Fora esse
o meu passaporte para esta Universidade, a melhor em todos os planetas
habitáveis. Não estava interessado no que boas notas me poderiam dar, mas
queria a melhor educação possível. Ser-me-ia útil mais tarde.
Ficou
finalmente pronto dez dias antes do final do prazo. Era realmente bastante
simples, uma pequena esfera que cabia na palma da mão, totalmente lisa por fora
mas incrivelmente complexa por dentro. Era a minha implementação do “espião” da
história que tinha lido, mas muito mais eficiente e difícil de detetar do que
um desastrado ser humano ou um satélite. Podíamos inculcar-lhe uma determinada
pessoa e segui-la-ia então para todo o lado, gravando, em imagens e áudio, tudo
o que essa pessoa fazia, via, vivia ou dizia. Era capaz de voar, rastejar ou
esconder-se e graças ao seu tamanho e revestimento camaleónico era praticamente
indetetável.
As
coisas ainda podiam ter acabado bem se eu tivesse sabido parar a tempo. A
tarefa pedia apenas um projeto escrito, bastar-me-ia pois apresentar a ideia
básica e alguns dos conceitos envolvidos para ter uma boa nota. Bateria
certamente Paulo e todos os outros e talvez impressionasse até Ana. Sem a engenhoca
em si, a coisa pareceria um mero acaso feliz, uma proeza única na vida de um
tipo bastante normal e não muito brilhante. Não poria em perigo os meus planos
para o futuro.
Mas
não consegui resistir à tentação de testar a minha maquineta em Paulo.
Lancei-a, pois, e durante os dias seguintes diverti-me imensamente com as suas
palhaçadas e, sobretudo, por saber que ele não fazia a menor ideia de que todos
os seus movimentos estavam a ser seguidos. Dei umas boas gargalhadas à custa
dos seus hábitos pessoais, o modo como Ana e algumas outras raparigas lhe davam
para trás quando ele pensava que ninguém o via e as muitas horas que passava a
estudar até as matérias mais simples. Afinal parecia não ser tão inteligente
como afirmava constantemente e conseguia as suas boas notas à custa de muito
esforço.
O
seu projeto era bom, mas não brilhante. Eu tê-lo-ia batido facilmente com uma
mera exposição escrita. Mas na véspera do dia em que tínhamos de entregar o
nosso trabalho de casa vi-o mostrar secretamente a Ana a engenhoca que tinha
construído. Ficou tão impressionada que até aceitou sentar-se à mesa dele na
cerimónia dos prémios do fim do ano. E isso selou a minha perdição.
Queria
que ela lamentasse não ir comigo, apesar de nunca termos trocado mais de meia
dúzia de acenos. Por isso no dia seguinte entreguei ao Professor a minha
preciosa esfera, juntamente com a teoria e cálculos envolvidos na sua construção.
Mesmo
então senti algumas dúvidas por tê-lo feito. Mas à medida que as semanas foram
passando aparentemente sem consequências comecei a sentir-me mais descansado.
Tive uma boa nota, claro, a melhor da turma, mas com muito trabalho árduo
consegui novamente baixar a minha média até ao nível desejável. Formei-me mesmo
abaixo do terço superior, o suficiente para ficar por conta própria em termos
de escolher o meu futuro.
Pelo
menos, foi o que pensei...
Estava
eu a embalar alegremente os meus haveres para deixar para sempre este planeta
demasiado civilizado quando eles apareceram. Não sei que tipo de identificação
me mostraram ou até se a mostraram, não era necessária. Via-se à légua que pertenciam
ao Corpo Secreto. Mal os vi, soube que podia dizer adeus a todos os meus
projetos de aventura e fortuna. Apesar das minhas notas, tinha sido escolhido
para ser um membro da elite, para aderir “voluntariamente” ao grupo mais de
topo dos inúmeros Corpos Governativos da nossa sociedade.
Paulo
teria ficado de rastos se soubesse, era para isto que tinha trabalhado tão
arduamente e sem êxito. Esta gente seguia regras diferentes. Ninguém sabia quem
escolhiam ou as razões dessa escolha. Uma coisa era certa, não bastava ter as
melhores notas.
E
aqui estou eu, dois anos depois, um membro muito valioso, mas secreto, da
Sociedade a que tinha jurado escapar. Durante algum tempo continuei a fazer de
parvo na esperança de ser expulso. Mas não resultou. Se nos tornamos membros,
não há como sair. É para a vida.
Optei
pois pelo caminho oposto, trabalhar duramente para ir subindo na hierarquia o
mais rapidamente possível. Já fui promovido duas vezes, um recorde, e não me
espantaria sê-lo novamente antes do final do ano. A este ritmo, em breve
dirigirei o Departamento ou, pelo menos, uma parte dele. É esse o meu objetivo.
Talvez no topo haja alguma liberdade, alguma sensação de descoberta e aventura.
Não pode ser tudo tão chato e seguro como é agora. E uma coisa é certa, pelo
menos a vida será então muito mais confortável e luxuosa.
A
parte pior é saber que estou preso. Inicialmente tinha planos de fuga, de me
escapulir quando menos esperassem. Mas a ideia da minha pequena esfera pôs fim
a isso. Como é que sei que não a estão a usar em mim? Podia, é claro, conceber
um detetor. Sabendo o que sei, seria até bastante fácil. Mas se me estão a
espiar por meio da esfera, saberiam que o estava a fazer e poderiam fazer-me
parar a qualquer altura ficando com o detetor para os seus próprios fins. E
mesmo que não me estejam a espiar constantemente, quem me diz que não lançarão
o Detetor num momento crucial?
Não,
a minha única esperança é chegar ao topo deste grupo. Com os meus miolos e motivação,
não deverá ser difícil nem levar demasiado tempo. Só espero que isso não me
leve a outro grupo, uma espécie de círculo interior desconhecido de todos nós.
E a outro, depois desse, com aquelas bonecas de encaixar que vi um museu em miúdo.
Seria horrível se acabasse a gerir todo este universo!
E
tudo porque quis impressionar uma miúda com o brilhantismo do meu trabalho de
casa!
Luísa Lopes
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