No canto do quarto, no
restolho de um berço, Zaqueu dormia. Aquele arremedo de cama, sem grades
laterais, havia servido como abrigo de muitos rebentos, ali, por aquelas paragens.
De tamanho reduzido, não permitia que o menino esticasse as pernas. Dormia como
vivia: encolhido. Não reclamava, era o suficiente.
Pareada com a dele, a
cama grande da mãe era dividida entre ela, Gerusa – a filha mais velha, já
moça, e a caçulinha. Mais lá no canto, dormiam os gêmeos, um cheirando o pé do
outro. O espaço era abarrotado, sobrava apenas um vão para a velha cômoda,
perto da porta. Móvel imenso, carregado por gerações. E sobre a cômoda, a
santa.
Desde os quatro anos,
Zaqueu passou a coabitar com a santa. Até então, era apenas uma peça de barro,
um adereço que a mãe cuidava com muita afeição e que servia para escorar um
puído rosário que lhe era enlaçado nos ombros.
De início, a
convivência com a santa foi turbulenta. Tempo de pavor, de gritaria, de
desespero. Um desassossego só. Período sem entendimento. Foram muitos tapas,
beliscões, conflitos, engalfinhamentos. Ninguém compreendia as atitudes de
Zaqueu. Era desacreditado, tido como doido. Mas, não era. Só ele sabia que não
era. Só ele, não. Ele e a santa.
Nem bem escurecia, não
restava opção que não fosse se aninhar. O dia levava, com a sua claridade, as
brincadeiras, o andar sem rumo, a largueza de correr pela estrada tentando
chegar ao encontro do céu e da terra, lá no fim, no mesmo lugar em que se
esconde o pote de ouro. E todos se recolhiam. A mãe e a irmã mais velha,
cansadas com a trabalheira do dia, dormiam assim que colocavam o corpo na cama.
Parecia desmaio. Os gêmeos ficavam arreliando por um tempo, mas logo o sono os
vencia. A caçula, pendurada na mirrada teta da mãe, resmungava por pouco tempo.
Zaqueu, não. Lutava
contra uma insônia sem nome. Remexia-se tanto na minúscula cama que o pano
amarfanhado que forrava o colchão escapava das beiradas. E aí, nessa briga de
pernas, tudo começou.
Em noite de lua clara,
com a luminosidade que vazava as telhas desalinhadas, conseguia divisar os
vultos da mãe e dos irmãos. Mas, nas noites negras, na pretura do quarto, não
via nada, absolutamente nada. E observava tudo isso quando estava deitado, com
a cabeça levemente alteada pelo surrado travesseiro. Tinha uma visão turva do
ambiente, menos da santa. Ela estava sempre lá, no lugar mais alto, imponente.
O rosto era suave, havia mansidão naquelas mãos em gesto de dar, de receber.
Era bonita. A cobra sob os pés era o incômodo. O menino não entendia a razão de
aquela cobra fazer parte do adorno. Mau gosto.
Nesse tempo, Zaqueu não
tinha mais que quatro anos. Não havia razão aparente para a falta de sono. O
corpo estava sempre cansado das estripulias do dia, a comida era pouca, mas
costumeira. Só o que lhe cutucava o sossego era a saudade do pai. Havia partido
em busca do sonho sulista logo que a mãe embarrigou da caçula. Até ali, nada de notícia. Era só essa
amolação que ele remoía. Nada mais. Era uma saudade tão aguda que não tinha dia
que Zaqueu não apertasse os olhos para tentar ver o pai despontar lá longe na
estrada, voltando.
E numa noite, num
repente, Zaqueu olhou o vulto da santa e percebeu que o quarto começou a ficar
iluminado. Era uma luz tão intensa emanada das mãos e da cabeça da santa que
parecia feixe de raios incandescentes. A potência da luz era tamanha que
ofuscava totalmente a visão, alucinava, cegava. Queimava os olhos. Não havia
como olhar demoradamente naquela direção. E Zaqueu, assustado, gritava, se
debatia, pedia para que a mãe desviasse aquela luz.
A mãe, sem entender o
pavor da criança, tentava de todas as formas acalmar Zaqueu. Sentia angústia
quando ouvia os gritos em razão de não compreender de qual luz ele falava, que
claridade era aquela que ninguém mais via! Querendo engolir a dor que teimava
em lhe castigar o peito e lutando para enxotar o pensamento de que o filho era
leso das ideias, a mãe ralhava com o menino em altos brados, tentava fechar-lhe
a boca, dava-lhe beliscões como se quisesse trazê-lo para a realidade. Ordenava
que ele se calasse, que parasse com aquele berreiro que tirava o sossego das
crianças.
E nada. A cena se
repetiu por muito tempo. Zaqueu chorava
e gritava até perder o fôlego e adormecer, exausto.
A caçulinha já corria sozinha
por todos os cantos quando, pela primeira vez, após meses e meses de constantes
crises de pavor, Zaqueu não se incomodou com as luzes. Não gritou, não esbravejou.
Aliás, naquela noite, a santa não ficou iluminada. O menino dormiu encolhido,
mansamente. O sono era tão profundo e sereno que, sentindo os sacolejos, Zaqueu
despertou totalmente confuso. Custou a perceber que a mulher que o tocava não
era a mãe. Era a santa. E não ficou assustado. Não gritou, nem esperneou.
Sentou-se, rapidamente. Apesar da escuridão da noite, via com nitidez a figura
angelical ao seu lado.
Com calma, a santa
acomodou-se, acariciou os cabelos do menino e tomou-lhe as mãos. Arrepiado,
olhou para os pés dela. Ainda bem que a cobra não estava lá. Sentiu um alívio.
A santa, amorosamente, dizia
que Zaqueu não precisava temer a presença dela, que seriam grandes amigos. Sussurrou
que estava se sentindo sozinha, que queria conversar, que sofria quando Zaqueu
olhava para ela e punha-se a gritar, que nunca teve a intenção de assustá-lo. Ele
perguntou a razão do silêncio da santa por todos aqueles anos, que ela poderia
ter falado com ele, ele a teria ouvido. Ela retrucou que não, que ele precisava
de um tempo para amadurecer, e agora com sete anos, Zaqueu teria a capacidade
de compreender e conseguiria guardar segredo da amizade deles. Se o menino falasse
sobre isso com alguém, iria voltar para a condição de amalucado.
Naquela noite, não
conversaram muito. Reservaram tempo para pensar sobre o encontro, sobre as
sensações. E vendo que o menino estava sonolento, a santa, sussurrando, entoou
uma cantiga de ninar. A melodia na voz tão doce logo trouxe o silêncio.
Ao acordar, Zaqueu
colocou-se diante da santa e, com um sorriso travesso, enviou-lhe uma
piscadela. Sentia-se seguro, confiante. Teria um dia ainda mais completo.
Passou pela mãe esperando que ela bronqueasse com o falatório da noite.
Imaginava que ela tivesse escutado a conversa dele com a santa. Nada. Ninguém
tocou no assunto.
Que vontade de contar!
Mas não podia, era trato guardar segredo. Um dia alguém iria perguntar. Até lá, não teria que se preocupar. Levou
tempo para ficar convencido de que a conversa com a santa não era percebida por
outros ouvidos. Sentiu-se confortado. Teriam muita liberdade nas
conversas. E quantas aconteceram! Encontrava
na santa a melhor amiga, a conselheira, a parceira de risadas gostosas, a
confidente. Artífice da esperança.
Demorou a falar sobre a
saudade do pai. Por muitas vezes, planejou perguntar sobre a volta dele. Sabia
que a santa guardava segredos sobre este assunto, que conhecia os seus
sentimentos. Mas tinha medo de ouvir a resposta.
Zaqueu desenvolvia, a
cada dia, uma tolerância amorosa com os irmãos, estava sempre de prontidão para
amainar as rusgas entre eles, vivia uma ligação de profundo afeto e esmerada proteção
com a mãe. Apesar da dificuldade da vida, do pouco, a paz era infinita.
De começo, a mãe ficou
confusa com a parada da gritaria e do choro.
Observava de longe. Ruminou pensamentos por algum tempo, ficou cismada,
mas como a vida já havia lhe cobrado tanto, entregou-se à ventura. Assim era
melhor, muito melhor...
Uma noite, Zaqueu resolveu
falar com a santa sobre o pai. Perguntou se ele voltaria algum dia. Depois que
fez a pergunta, o coração pulava no peito. Queria ouvir, mas queria que a
resposta fosse aquela que precisava ouvir. Mas não ouviu nada. A santa não
falou. Reservada, combinou que a resposta seria buscada por eles dois, era um
novo compromisso.
Sem entender, Zaqueu
nunca mais tocou no assunto.
E nesse compasso, a
vida seguia. A irmã mais velha já estava casada, os gêmeos eram homens feitos,
trabalhadores. Zaqueu era um jovem cheio de sonhos. O maior deles: o sonho
sulista. Falava sempre com a santa sobre o desejo de pousar em outras terras. E
sentia que este tempo havia chegado. A mãe acompanhava os planos, agoniada.
Numa última conversa,
sem que ele soubesse que assim seria, a santa, com a mesma ternura, com o mesmo
cuidado de todos aqueles anos, alisava os cabelos de Zaqueu e dizia que
chegando ao destino, ele encontraria a resposta que mais buscou ouvir. Lá, no
desembarque, terminaria o compromisso que eles tinham selado. Então, seria o
fim de um tempo e o início de outro. E foi um abraço longo, um abraço de adeus.
O menino, que deixara de ser menino, percebeu que seria o último encontro. Não
questionou, não pediu, não implorou. Compreendeu. A santa ficaria ali, sobre a
velha cômoda. Era o seu canto.
Em meio a choros e
despedidas, bagagem carregada de sonhos, Zaqueu partiu.
Naquela noite, não
haveria conversa com a santa. Nem na outra, nem na outra...
Três dias depois, o
ônibus chegava ao destino.
O dia acabava de
clarear, o sol despontava com uma luminosidade intensa, parecia que labaredas
brotavam do céu. Zaqueu protegeu os olhos. Desta vez, a claridade descomunal não
o fez gritar, nem chorar. Não sentiu pavor, não sentiu medo. Compreendeu.
De repente, ouviu
alguém chamar pelo seu nome. Demorou um tempo para assimilar. Virou-se devagar
e percebeu que o velho ao seu lado dizia: “meu filho”...
Nas mãos dele, uma fotografia.
A mesma foto que Zaqueu havia tirado, dias atrás, para fazer os documentos.
Olharam-se,
profundamente, em silêncio. E foi um abraço longo, um abraço de saudade.
Regina
Ruth Rincon Caires
2 comentários:
Sua forma de escrever é encantadora. Um final inesperado que emociona. Parabéns, escritora Regina Ruth!
Obrigada pela leitura! <3
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