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terça-feira, 19 de maio de 2020

Colapsos para se reinventar



Estava refletindo sobre a dinâmica de trabalho em tempos de crise. Como se já não bastasse a aflição da dúvida do amanhã, ainda estou sendo constantemente testado sobre a necessidade de minha permanência na empresa. Parece que estou em casa sem fazer absolutamente nada, comendo o mísero dinheiro acumulado do seu gordo cofre. Sim, a empresa, certamente (conheço de números e softwares e internet e o escambau), possui uma monumental quantia para se manter, sem qualquer movimentação, por, pelo menos, cinco anos. Mas o dono, numa demonstração piedosa (a imagem que faz de si), reúne-se, quase que diariamente, para se lamentar; para dizer que a empresa anda “mal das pernas”, “muito mal” (e reforça a tônica da palavra mal), e se despede pedindo empenho, “sangue nos olhos”. A vontade é de dizer: “Querido chefe, estou com sangue não só nos olhos, que estão para explodir com o volume de planilhas e de relatórios, mas, inclusive, nos dedos, nos punhos, no cérebro, nos pulmões arfados, com o sistema prestes a colapsar”.
Outro dia, numa dessas tentativas frustradas de desabafar com o Orfeu, um colega de trabalho, ouvi, como um tiro no peito, o canalha me falar: “Que é isso, Dalton, você é um brincalhão! Que merda é essa de cansaço? Tu trabalhava duro, eu lembro, das oito às seis, praticamente sem descanso, e agora tá de mimimi. Daqui a pouco o chefe vai te tirar” – e encadeou uma gargalhada desconexa, desesperada. “Sabe que ele tem sempre uma carta na manga!” – e desligou.
Caralho, eu não me emendo, fui ligar logo para quem? Passei três dias e três noites sem dormir direito. Já não durmo bem. O pulha pensa bem que sou obrigado a trabalhar vinte e quatro horas por dia, quando os supervisores e o próprio chefinho disparam e-mails e mensagens para todos os meus contatos, até de madrugada. Que caralho!
Orfeu é um bajulador. Pensa, o desgraçado, que a maneira dada a que se presta agora, na hora do aperreio; na hora que “a empresa mais precisa”, vai levá-lo ao tão sonhado cargo de supervisor – e acho que há uma sordidez aí em sonhar que serei seu subordinado.
Para a empresa, óbvio, somos apenas ferramentas para o seu intento espúrio; peças substituíveis. E digo mais: só não estamos enfurnados naquela sala horrorosa porque a empresa não aguenta mais receber multa. Com a quantidade de processos nas costas, aí sim, não suportaria mais um gigantesco por quebra das regras de isolamento. Só por isso.
Apesar do chefinho perguntar sobre a família – quem sabe uma sordidez arraigada dos crápulas –, mesmo sabendo que moro com um cachorro, num aparente estado de preocupação, não para de me mandar fake news, alardeando um possível retorno; ou seja, manda às duas da madrugada, para voltarmos ao batente às oito do mesmo dia. Piada. De mau gosto, claro.
Pelo visto, salvando a Deysi da recepção, que está com o marido internado, e que não tem a menor condição de me atender, a minha confidente e amiga, para a qual rezo todos os dias, terei de reinventar o próprio sentido de se reinventar, já que o termo não para de ser esculachado pelo meu chefe. Reinventar, portanto, servirá a uma nova versão de mim, quiçá mudar os rumos, prontamente, quando essa loucura passar.

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