Sentado na pedra que
afeiçoara como cadeirão no cume mais alto da ilha há tantos, tantos anos, Ira,
o vigilante, contemplava a magnífica cidade gigantesca que vira crescer a
partir de um pequeno aglomerado de cabanas. Com a sua memória de imortal,
recordava todos os passos da longa jornada deste projeto tão querido dos
deuses.
Nunca soubera de quem
fora a ideia de criar uma civilização perfeita, de uma utopia que pudessem
estudar por comparação com as outras nascidas do labor e dissensões dos humanos
que se iam espalhando pelo mundo. Sabia apenas que a ideia subjacente era
provar que Zeus errara ao despoletar o Dilúvio de que apenas se salvara
Deucalião e a família, numa tentativa de começar de novo a penosa evolução da
humanidade. Que os humanos eram inerentemente bons e que os males que criavam
se deviam apenas às condições em que viviam.
Face à ironia da tarefa
que o esperava, não conseguiu reter um sorrisinho amargo, que teria
surpreendido todos os que o conheciam como o austero e rígido sumo-sacerdote de
Posêidon, a sua mais recente – e última – encarnação. Mas o momento era
suficientemente único para justificar uma quebra em hábitos de longa data.
Encarregue desde o
primeiro dia de vigiar a evolução da experiência e de relatar aos seus autores os
seus momentos mais significativos, adotara desde o início um papel religioso
que lhe permitisse estar no meio de tudo o que se passava sem que a sua
presença fosse considerada estranha ou inoportuna. Adotara incontáveis papéis e
aspetos, mas mantendo sempre o nome Ira que lhe fora dado pelo próprio Zeus
como símbolo do seu papel. Evoluíra pois de pouco mais de um xamã com ritos
secretos numa cabana vedada à população a sumo-sacerdote de um templo
magnífico, repleto de mármores raros, ouro, marfim e outros materiais
preciosos, símbolo bem justo da magnificência, riqueza e poder que Atlântida
alcançara.
A sua tarefa ficaria
concluída hoje, mas apesar de ansiar por passar uns séculos a desfrutar dos
prazeres do Olimpo, Ira deixou-se ficar ali sentado, em sombria contemplação do
que podia ter sido e do que era realmente.
A experiência começara
bem, muito bem até. Com a ajuda dos deuses, a pequena povoação inicial crescera
rapidamente em tamanho e riquezas. Tudo lhes corria bem, nunca havia uma seca,
uma cheia, o tempo era sempre o mais adequado às culturas do momento, as redes
vinham cheias de peixe, havia fartura para todos. Quando era altura de um novo
passo na sua evolução, viajantes misteriosos davam à costa trazendo, por mera
coincidência, os conhecimentos necessários para que evoluíssem.
E em breve – para a noção
de tempo dos deuses – surgiu uma cidade próspera e magnífica onde todos tinham
mais do que o suficiente, onde não era preciso labutar, onde as doenças eram
desconhecidas e a morte chegava tarde e tranquila. Parecia que os deuses tinham
realmente razão, que nas condições certas, sem terem de labutar para
sobreviverem, os humanos viviam em paz e harmonia, dedicando as suas energias
às artes e ao apreço do que os rodeava. E isso numa época em que em zonas
vizinhas os povos tinham de lutar duramente para sobreviver e estavam quase
permanentemente envoltos em guerras e quezílias.
Mas pouco a pouco, tão
lentamente que chegara a pensar que era engano seu, Ira notara um
descontentamento crescente. Pelo que via e ouvia, parecia que a situação de
bem-estar permanente e de falta de esforço não agradava a todos. Havia os que
desistiam simplesmente de tudo, fechando-se em casa longe de tudo e de todos à
espera da morte ou, até antecipando-a. Outros tentavam dar sal à vida obtendo
um quinhão maior das riquezas existentes, dominando, pela força ou por
palavras, outros de espírito mais fraco. Outros, ainda, dedicavam a sua
inteligência a descobrir novos prazeres, por muito perversos que fossem.
E a sociedade perfeita
começou a transformar-se, primeiro lentamente, depois cada vez mais
rapidamente. A cidade, a ilha que lhes parecera outrora perfeita deixou de ser
suficiente. Lançaram-se à conquista, melhor, ao domínio de outros povos, tarefa
facilitada pela sua superior tecnologia. Formaram-se fações dentro da cidade,
que se envolviam em disputas mais ou menos ferozes. E apesar da magnificência
dos templos, a religião era apenas fogo-de-vista, uma razão para verem e serem
vistos e não um conjunto de preceitos a cumprir.
Era com uma relutância
crescente que Ira subia ao Olimpo para relatar o que se passava. Sabia que o
descontentamento crescia e que havia cada vez mais vozes a exigirem o fim da
experiência. Mas Zeus não se pronunciava e até que o fizesse, tudo continuaria
na mesma. Ira suspeitava que, ofendido pela premissa de o provarem errado, Zeus
queria que todos vissem claramente o resultado das suas ideias.
E chegou finalmente o
dia. Com o acordo clamoroso de todos os deuses, Zeus decretou o fim da
Atlântida. E desta vez, deixou implícito que não haveria sobreviventes e da
cidade não restaria o menor vestígio.
Mas após tantos séculos
ao serviço daquele povo, Ira não conseguia aceitar que desaparecessem sem
deixar rasto. Lançou pois mundo fora um ser ténue que continha a história de
uma Idade de Ouro desaparecida e, sobretudo, o nome Atlântida. Deambularia
durante milénios, implantando a sua mensagem sempre que encontrasse uma mente
favorável.
O dia aproximava-se do
fim e Ira moveu-se, finalmente. Pegando no bastão que lhe fora fornecido para o
efeito, deu uma forte pancada no solo. E com um último olhar para a cidade
condenada, tornou-se invisível e ascendeu ao Olimpo.
Mal partiu, a ilha
começou a tremer sem parar, surgiram fendas enormes que o mar se apressou a
ocupar e, em minutos, tudo desaparecera como se nunca tivesse existido...
exceto o ser criado por Ira e que iria manter viva a sua existência, mas como
se de uma lenda se tratasse.
Luísa Lopes
Photo by Will van Wingerden on Unsplash
0 comentários:
Postar um comentário