[Nelson Rodrigues]
Domingo. O senhor Romualdo esperava numa poltrona confortável que o carro do neto estacionasse na porta da frente. Iria à missa matinal, sentaria no banco da frente, de cara para o celebrante, levantaria o corpo minguado para as orações e se recostaria no banco de madeira para a preleção, como os demais fiéis, sem se importar com as pessoas piedosas que lhe diriam para não fazer tanto esforço. Aos 82 anos, ainda tinha vigor.
Na igreja, olharia com orgulho para o neto ao seu lado. O filho, Alberto, nunca havia gostado de missa nem de religião, mas o neto, Lucas, tinha puxado a ele: era carola desde menino. Ele se sentiria feliz quando o neto o amparasse para não impedi-lo de cambalear. Que paciência tem este meu neto! Sempre cuidando de mim, repetiria em pensamento. Em seguida, se concentraria para saborear a rotina da missa até o final da cerimônia, quando o padre se aproximaria do seu banco e lhe daria a comunhão antes dos demais, numa deferência à sua idade avançada.
O velho Romualdo era mesmo um homem de igreja. Aos sete anos, idade exigida na sua época, tomou-se de tal fervor para receber a primeira eucaristia sem nenhuma mancha de pecado que decidiu, por vontade própria, suspender o futebol e os passeios que o pai lhe concedia aos fins de semana. Nada de distrações até o dia especial.
— Preciso estar puro, mamãe, puro para receber o corpo de Cristo — dizia ele, mãozinhas postas e olhos no céu.
— Rominho — ponderava ela, orgulhosa — desse jeito teremos um sacerdote na família!
O menino, porém, continuava a se recusar às idas ao jardim zoológico, à cachoeira ou a qualquer outro lugar em que a intenção fosse divertimento. E no dia da sua primeira comunhão, vestido de branco, terço entre os dedos e cabelo fixado por gomalina, Romualdo abriu a boca ao consumo da hóstia como as virgens se entregam ao primeiro beijo.
Quando conheceu sua primeira esposa, Idalina, Romualdo já tinha 28 anos e os pais lhe cobravam, havia algum tempo, esposa e netos. Apaixonou-se mais pela beatitude da moça que por seus dotes de quituteira, bordadeira e pianista. Posso saciar o estômago, os olhos e os ouvidos com alimentos mundanos, mas é a consistência da alma que me sacia os sentidos, disse à dona Ester, mãe daquela jovem de 18 anos que se encantou de imediato por ele. Desde então, tornou-se o pretendente ideal para Idalina, com todas as bênçãos da sogra. Firmaram compromisso e casaram-se três anos depois.
Dona Ester, aos 39 anos, era de uma beleza madura. Já o sogro, em seus 60 anos, não era nem mesmo simpático. Romualdo, no entanto, identificara-se desde o início da vida marital com aquele homem sisudo, evitando de forma quase indelicada a mãe de sua esposa, de quem dizia não gostar sem explicar o porquê. Aos amigos, vira e mexe confessava não entender como Idalina, “quase uma santinha”, pudera ter nascido de uma mãe como aquela. E calava-se, atiçando a curiosidade de todos. Por isso, o espanto foi imenso quando, por ocasião da viuvez da sogra, acontecida logo após o casamento dos dois jovens, Rominho a convidou para ir morar com eles. E insistiu.
Idalina irradiava alegria com a presença da mãe em casa. Como boa filha que era, amava e respeitava Ester. Por isso, passou a cobrir Rominho de mais mimos ainda, em agradecimento. Agora, meus dias são mais curtos até a hora em que você volta do escritório, meu bem — dizia-lhe constantemente, olhos brilhantes. — Mamãe me faz companhia, me ajuda a costurar, a fazer compras, a preparar o seu jantar.
E assim foi. Até que Idalina morreu de parto prematuro, deixando vivo o pequeno Alberto. Primogênito e filho único, o menino entrou em casa no colo de dona Ester, ladeada por um Rominho entristecido e pensativo. Atrás deles, com ar de tédio, uma enfermeira vestida de branco esperava sem saber o que fazer.
— Quer segurar seu filho? — perguntou a sogra.
— Não, dona Ester. Não quero pôr as mãos na criatura que me tirou Idalina! — respondeu com um soluço.
— Mas a criança é inocente — ela retrucou.
— E por acaso eu tenho culpa de ter ficado sem a minha mulher?
A enfermeira, olhos virados para o lado, fingia não ouvir o diálogo entre eles, mas o excesso de desinteresse a traía, demonstrando que seus ouvidos anotavam cada palavra dita ali para jorrá-la mais tarde nas rodas de mexericos do bairro onde morava.
— Chamou o bebê de assassino! — diria.
— Coitadinho! — se apiedariam os vizinhos.
Encerrando o curto diálogo com a sogra, Rominho deixou-se cair na chaise longue onde Idalina costumava tirar pequenos cochilos ou ler revistas para senhoras. Dona Ester retirou-se com a enfermeira e o bebê para o andar de cima.
Pouco depois, a campainha da porta tocou. Dois policiais procuravam “pelo senhor Romualdo Diniz”, como informou a empregada a Rominho, que se levantou lentamente para atendê-los.
— O que os traz aqui? — perguntou, com cara de poucos amigos.
— Uma denúncia — respondeu o mais velho — uma denúncia do hospital-maternidade.
Sobressaltado, Rominho buscou o apoio da mesa.
— Do que se trata? — quis saber, cauteloso.
— Maus-tratos seguidos de morte.
— Como?!
— Dona Idalina Diniz veio a óbito em razão de espancamento. O obstetra que a atendeu nos informou que o parto foi prematuro porque ela já apresentava um quadro recente e agudo de hemorragia interna — explicou o mais calmo dos dois.
— Espancamento? Como? Os senhores estão dizendo que...
— Senhor Romualdo, nós precisamos que o senhor nos acompanhe até a delegacia para algumas declarações — atalhou-o o outro policial.
Idalina havia mesmo morrido vítima de violência. Empurrões, sacudidelas, pancadas com objeto arredondado — leu o promotor, durante o julgamento. Mas nada foi provado contra Rominho, que se safou pelas mãos de um advogado experiente. Os amigos, os empregados, os sócios do escritório calaram-se. Alguns por desacreditarem mesmo que ele pudesse cometer tal barbárie. Outros porque lhe deviam favores ou dinheiro e não queriam aborrecê-lo. Porém, o que mais os impelia a confiar na inocência de Rominho era que sua própria sogra, dona Ester, o apoiara durante todo o julgamento e, ainda por cima, continuava a morar com ele e o pequeno Alberto.
Dois anos depois de enviuvar, Rominho conheceu Marialva, uma cópia moral da falecida. Igualmente recatada e mansa, a moça possuía, ainda, um grande predicado: era rica, muito rica. Casaram-se. E Marialva seguiu feliz em sua rotina de dona de casa apaixonada, até que um médico lhe tirou de vez qualquer esperança de ser mãe: era estéril. Desse exato dia em diante, perdeu o juízo e desligou-se da realidade. Deixou de cuidar do pequeno Alberto, passou a agredir dona Ester, a espiar as empregadas atrás das portas, a rasgar as roupas de Rominho e a repetir para os vizinhos e transeuntes, aos berros, da sacada de seu quarto: "Eles querem me matar! Eles querem o meu dinheiro".
O próprio pai internou-a, condoído pelo estado lastimável da moça. No dia seguinte, para relaxar, como aconselhou o genro, ele e Rominho partiram para uma pescaria prolongada, onde os dois se consolaram e prometeram fazer de tudo para ajudar Marialva a melhorar.
Isso nunca aconteceu.
Com os anos, o menino Alberto, que brincava, e ria, e cantava para o pai e para a avó perdeu seu viço, tornando-se subitamente um homem amargo e desconfiado. Saiu de casa e só voltou para apresentar ao pai sua esposa e o pequeno Lucas, desaparecendo novamente logo em seguida. Aos 18 anos, Lucas procurou o avô e pediu para morar com ele. Desentendia-se com a rudeza do pai. Desde então, avô e neto tornaram-se unha e carne. E o rapaz era a alegria de Rominho.
A missa terminou. Os pensamentos de Rominho se aquietaram. Avô e neto partiram sem pressa para outro ritual dominical: visitar dona Ester no asilo elegante para doentes mentais. A visita seria de meia-hora, seguida de um farto almoço, cujo cardápio era sempre escolhido por Rominho. Naquele domingo, porém, encontraram a idosa arquejante.
— Não completo os 90 anos, Rominho! — disse ela, voz fraca, ao genro.
— Que bobagem bisa! — atalhou-a Lucas — A senhora ainda vai pegar no colo um filho meu!
Olhos esbranquiçados pelo tempo, trêmula, dona Ester pediu ao bisneto que pegasse uma pequena bolsa sobre a mesinha de cabeceira ao lado da cama. Com a respiração entrecortada, disse ao rapaz:
— O que está aí dentro lhe pertence.
Perdeu a consciência de imediato e nem o médico de plantão nem os equipamentos modernos daquele asilo de luxo a puderam salvar. Rominho, estranhamente calmo, parecia aliviado pela morte da sogra com quem dividira, por anos, o mesmo teto.
Em casa, naquela noite, Lucas lembrou-se da bolsa que jogara sobre a cama ao chegar em casa. Dentro, folhas de papel amareladas e dobradas, que ele colocou esticadas sobre a escrivaninha. Reconheceu de imediato a letra irregular da bisavó materna:
Lucas,
Quando você ler esta carta, já estarei morta. Escrevo para lhe contar algumas coisas sobre o seu tão amado avô Romualdo. Não acredito que ele tenha coragem de lhe dizer que fui eu quem matou a minha filha, sua avó Idalina. Mas tenho medo de que ele o engane com meias verdades e siga sendo essa criatura que o mundo julga inocente e honesta. Ofereço a você a verdade inteira.
Idalina morreu em consequência da surra que eu lhe dei. Foram socos, pontapés e muitas pancadas com a escova de cabelo. Eu não tinha intenção de matar a minha filha. Mas matei. Não contava com a hemorragia. Seu avô se salvou por milagre das acusações que quase o incriminaram como assassino. E você deve estar agora horrorizado, perguntando-se por que foi que eu fiz isso.
Rominho e eu nos tornamos amantes desde o primeiro dia em que nos vimos, antes mesmo de ele se casar com Idalina. No dia em que ela nos pegou fazendo sexo, de madrugada, avançou sobre mim, desesperada. Eu apenas revidei. Disse a ela que Rominho era meu, só meu. Mas ela avançou de novo sobre mim. Então, eu lhe dei uma surra. Ela passou mal, foi levada às pressas para o hospital, seu pai nasceu e ela morreu de hemorragia interna. A polícia fechou o inquérito como “inconcluso”. Segundo eles, não havia provas suficientes para condenar seu avô. Rominho calou-se, com medo que eu contasse que ele era meu amante. Covarde. Sempre foi. Seguimos morando juntos como sogra e genro. Seguimos amantes. Cúmplices. Até que aquela outra mulherzinha, Marialva, se meteu entre nós, e eu tive que me livrar dela também.
No mesmo dia em que Marialva soube por seu médico que era estéril, eu contei a ela esta mesma história que lhe conto agora. Disse a ela que Rominho e eu iríamos nos livrar dela como havíamos nos livrado de Idalina. Aquela idiota correu e perguntou ao seu avô se era verdade. Ele não negou. Apenas calou-se, como sempre, medroso. Ela começou, então, a enlouquecer, dia após dia, antevendo que teria o mesmo fim que Idalina. Patética! Depressão, disseram os médicos. Mas não é o que eles sempre dizem?
Quando o meu neto, Alberto, seu pai, descobriu, foi diferente. Não era para ele saber de nada, mas nos pegou juntos na cama e avançou sobre nós, como a mãe dele fizera anos antes. Pensei que também teria que acabar com ele, mas não foi preciso. Ele recuou. Depois disso, fechou-se em si mesmo e tornou-se uma criatura arredia, até que um dia partiu. E foi aí que eu soube que Rominho e eu nunca estivéramos em perigo. Seu pai era tão covarde quanto o seu avô.
Há poucos anos, com a desculpa da minha doença, Rominho me internou aqui, nesta prisão de luxo. Pena que eu já estava debilitada e não tive forças para matá-lo também.
Estes são os fatos. Não escrevo para pedir perdão. Não me arrependo de nada. Fiz o que queria fazer e sou feliz por isso. Mas achei que você deveria saber de tudo. Porque Rominho, agora, não está mais em minhas mãos. Está nas suas, meu bisneto.
Ester
1 comentários:
Sensacional, exemplifica bem o falso moralismo que existe na nossa sociedade (e em geral), quantos Rominhos e Esters não existem pelo Brasil afora, sempre se arrogando virtuosos e tementes a deus, quando na verdade possuem esqueletos no armário. Estou gostando muito dos seus textos, obrigado e por favor continue sempre escrevendo!
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