O
dia de Finados estava se aproximando...
Época
do ano que rendia um ganho a mais para Juvenal, e que o ajudava a remendar as
dívidas. Era pintor de parede, ajudante de pedreiro, enfim, era o que precisava
que fosse. Pau pra toda obra! O que não lhe faltava era disposição. Homem de
meia idade, sem estudo, nascido e crescido por ali. Benquisto, transitava bem
entre todos os moradores da vila.
O
cemitério, que ficava na saída da vila, na parte alta, podia ser visto de
longe. Era imenso, todo cercado com muro de tijolos. Dentro, muito espaço. A
pequena capela ficava perto do portão de entrada, e, por toda a volta, túmulos
largamente espalhados. No fundo do terreno, uma área enorme, desocupada, reservada
para servir aos futuros funerais por muitos e muitos anos.
Alguns
jazigos eram religiosamente cuidados durante todo o ano. As famílias visitavam
seus mortos semanalmente, quinzenalmente. Limpavam, podavam as plantas que
cercavam as sepulturas, cuidavam da pintura quando descorada. Esses jazigos sempre
estavam impecáveis! Os demais ganhavam trato apenas na época de Finados. E
sempre havia muito trabalho. As chuvas, com as suas enxurradas volumosas,
levavam a terra, as calçadas e os tijolos das sepulturas. E havia, ainda, as
rachaduras provocadas pelas acomodações do terreno. Além disso, o sol impiedoso
descorava as pinturas, deixava tudo muito triste, desgastado.
Naquela
época não havia floricultura nem flores plásticas. As flores colocadas nos
túmulos eram colhidas nos quintais das casas. As famílias, no amanhecer do dia
de Finados, levavam as flores e as acomodavam em vasos com água, sem a menor
preocupação com doenças. Não se falava em dengue.
Se
não fosse dessa maneira, recorriam às flores de papel crepom e de pano, feitas
em casa, ou às coroas de flores de lata. Compradas na funerária, pedidos feitos
de acordo com as encomendas, essas coroas eram do tamanho de um aro de
bicicleta. Tinham as folhas e flores feitas de lata, material parecido com o
zinco, todas recortadas, trançadas, presas nos fios de arame que formavam a
circunferência. E pintadas à mão.
Essas
coroas resistiam por anos e anos, mas desbotavam. Então, anualmente elas
recebiam uma demão de tinta. Tinta a óleo verde para as folhas, e as flores
sempre vermelhas, amarelas, ou brancas. Eram essas as cores que Juvenal usava.
Não colocava outras cores. Nem sei se havia...
Nunca
ninguém ousou misturar o vermelho com branco para fazer a flor rosa. Vivi essa
realidade por anos e anos a fio, e nunca vi uma flor de lata pintada de outra
cor que não fosse vermelha, amarela, ou branca.
E
todos estes serviços, desde o aterramento dos túmulos até a pintura das coroas
de lata, tudo era feito por Juvenal. Bastava olhar o túmulo no dia de Finados.
Pelas cores da coroa era possível saber se tinha, ou não, recebido os cuidados
do Juvenal.
E,
para dar conta de todo essa demanda, Juvenal começava a trabalhar com muitos
dias de antecedência. Primeiro, fazia os serviços mais grosseiros. Aterrava,
consertava as calçadas, recolocava os tijolos que faltavam, recompunha os
túmulos com rachaduras, cuidava dos rebocos, da pintura dos jazigos. E eram
muitos... Dezenas e dezenas deles. E, por último, ficava o serviço de pintura
das coroas de lata. Que também eram muitas.
Trabalhava das seis da
manhã às seis da tarde. Levava a comida num caldeirão com tampa, assim não
perdia tempo em voltar para casa no meio do dia. E como trabalhava!
Particularmente nesse ano,
bem no período de Finados, o trabalho estava atrasado. Talvez pelo calor
excessivo, talvez por ter assumido mais tarefas que nos anos anteriores, ou até
mesmo porque Juvenal estava mais velho, mais lento. Enfim, não interessava a
razão, o que importava era que o trabalho estava atrasado, e precisava ser
feito a tempo.
Assim, na véspera,
faltando um dia para Finados, Juvenal, que precisava finalizar a pintura das
coroas, e sabendo que para isso precisaria de mais horas de trabalho, decidiu
que pintaria durante toda a noite. E assim fez. Afinal, uma noite em claro não
o prejudicaria em nada.
Quando começou a escurecer,
pediu ao coveiro que, antes de sair, deixasse acesa a luz do poste ao lado da capela.
Juntou ali as coroas ainda a serem pintadas, as tintas, os pincéis, a moringa
com água, e continuou seu trabalho.
Estava uma noite tranquila.
Apesar do calor insuportável do dia, a brisa da noite era fresca. Noite escura,
sem lua. E Juvenal trabalhava sem parar...
Lá pelas cinco horas da
manhã, contente por estar chegando ao fim da empreitada, começou a ficar
incomodado. Estava com fome, e não havia nada para comer. Tinha trabalho para
mais duas horas, mas estava faminto.
Sem parar com as mãos nos
pincéis, pensava, insistentemente, numa maneira de arrumar alguma coisa para
comer. De repente, ouviu o trotar de um cavalo bem distante. Longe, bem
longe...
Apurou os ouvidos, e
percebeu que era a carroça do entregador de pães. Isso mesmo! A padaria do Seu Miguelão
Português, única da vila, oferecia esse serviço. Os pães eram feitos na
madrugada, e o empregado saía com a carroça para fazer as entregas nas casas
dos fregueses mensalistas. Também vendia pães para quem os quisesse comprar.
Era uma carroça pintada
de branco, feita de folha de flandres, ou de zinco, fechada, com portinhola na
parte de trás. Nas laterais havia o desenho de um imenso bigode preto e uma
boca com um discreto sorriso. Coisa do Seu Miguelão Português, que nem tinha
bigode!
Em cada entrega, o
empregado parava a carroça, descia, abria a portinhola traseira, acondicionava
os pães em sacos de papel, e os colocava no embornal pendurado no portão, ou na
porta, ou na parede da casa do freguês. Sempre havia um embornal esperando. E, muitas
vezes, o próprio freguês estava de pé, aguardando na calçada.
Serviço trabalhoso e
demorado.
Juvenal se animou.
Afinal, quando a carroça passasse por ali, ele poderia comprar dois pães e
aplacaria a fome. E continuou pintando enquanto esperava que o entregador
rodasse pelos quarteirões, e finalmente descesse pela rua do cemitério. Não
podia perder tempo!
Quando percebeu que a
carroça estava bem próxima, Juvenal correu para o canto do muro do cemitério,
subiu num cavalete de pau que ficava ali, e com a cabeça acima do muro, ergueu
os braços e começou a balançá-los no ar para chamar a atenção do entregador de
pães, sem que precisasse gritar. Afinal, ainda estava escuro, e muitas pessoas
ainda dormiam.
O cemitério ficava num
terreno bem alto, a rua da frente era de terra, forrada de pedriscos e
cascalhos soltos, e formava uma ladeira em direção da vila.
Costumeiramente, quando o
entregador de pães passava diante do cemitério, um tanto ressabiado, naquele
lugar ermo, numa noite escura, tratava de fustigar o cavalo para que fosse mais
rápido. Ao começar a descer a ladeira, vislumbrou no canto do muro a cabeça de
Juvenal, os braços erguidos sendo sacudidos no ar... Na escuridão não dava para
saber quem era quem. E ele nem queria saber... Ficou endoidecido! Soltou as
rédeas, levou as mãos à cabeça, enfiou os dedos pelos cabelos e destampou a
gritar. Urrava de pavor...
O cavalo, com as rédeas
soltas, desembestou numa carreira doida ladeira abaixo. A carroça quase nem
tocava as rodas no chão. Voava! E foram tantos solavancos que as amarras se
soltaram, a carroça se desvencilhou, tombou. O entregador de pães, aos berros, foi
arremessado longe, caindo sobre uma moita de capim. E berrava. Sentado, com as
mãos enfiadas nos cabelos, os olhos estatelados, gritava...
Juvenal, atordoado,
continuava no canto do muro, também com as mãos na cabeça. Tudo aconteceu tão
rápido... Só então percebeu que havia assustado o entregador de pães
Como estava sem a chave
do cadeado do portão, o coveiro o deixara trancado, Juvenal fez um esforço
danado para pular o muro e ganhar a rua. E, no escuro, saiu à procura do
entregador de pães.
Orientado pelos gritos,
foi chegando perto. O cavalo escafedeu-se. A carroça estava ali, virada, de
rodas para cima, pães esparramados pela rua inteira misturados com a terra, com
o cascalho, uma desordem absurda!
Tateando no escuro e
guiado pelos berros, avistou o entregador de pães. Esgoelando, ensandecido! E
procurou aproximar-se, devagarinho...
Quanto mais se
aproximava, mais ele berrava. E foi chegando gente... O entregador de pães
acordara toda a vizinhança. Acho que toda a vila, tamanha a multidão que se
juntava!
E todo mundo ali querendo
saber o que estava acontecendo, o entregador se esgoelando, arrancando os
cabelos, e Juvenal no meio daquela doideira. Numa encabulação que fazia pena!
Juvenal implorava ao
entregador de pães que se calasse, ele queria explicar o que havia acontecido.
Queria falar que foi ele quem acenou no muro do cemitério, que estava com fome,
que estava trabalhando... Mas, que nada... Inútil. O entregador de pães só
queria gritar...
O dia estava clareando, e
Juvenal continuava ali, sentado no capim, olhando para os pães espalhados pela
rua, na terra. E o entregador, aos berros.
Foi chamado o Seu João da
botica, o único farmacêutico da vila. Ele tentou, por inúmeras vezes, falar com
o entregador de pães. Inutilmente... Então, à força, cinco homens o
imobilizaram e o levaram para o posto de saúde. E ele, gritando.
Pelo que se conta, ele
gritou por dois dias e duas noites, até que a voz acabou. E, por muito tempo,
acordava no escuro da noite e punha-se a gritar.
O entregador de pães se
foi há muito, mas durante o tempo em que viveu depois daquele dia de Finados,
nunca mais foi o mesmo.
E Juvenal, que partiu um
pouco depois, nunca conseguiu explicar ao entregador de pães o que realmente
acontecera naquela madrugada. Sempre que tentava, o entregador se transtornava,
e os gritos voltavam. Então, ele acabou desistindo.
Deixou por isso mesmo...
Regina Ruth Rincon Caires
2 comentários:
Mais que um primor, um mimo... mesmo assustador. Parabéns!
Obrigada pela leitura, menino!
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