De mais a mais, Eudósio
foi ganhando ares e plumas, ao caminhar. Já partia, depois das rebordosas
comezinhas, do alto dos seus cinquenta anos, como se dissesse, parafraseando o
herói: “Vou-me embora pra Pasárgada”.
De fato, ninguém mais
acreditava em soluções viáveis para o sujeito lunático; perdido na vida. Não
aparava um pelo sequer, e não era penitência coisíssima nenhuma, como tantos
pensavam; desgrenhados, em suas oscilações involuntárias, e sem rumo certo, formavam,
no seu palavreado, “tufas de vida e de sabedoria”. Rebatia, com entusiasmo, qualquer
malicioso enxerido, ensinando: “Só se consegue a liberdade com o sincero
desprendimento”.
Um típico vagabundo,
para Eustáquio, seu irmão, empresário e dono da Casa do Povão, que de povo só
ostentava o nome e o formigueiro de gente, no centro da cidade, com o sugestivo
slogan: “Vem pechinchar! Essa é do
povão!” (quando queria dizer, e pensava, sobremaneira, “Vem se foder”; achando
graça, sozinho, no escritório confortável nos fundos dos fundos do galpão). A
clientela atulhava, ávida por promoções e afins, e, de tanto alvoroço, criou
uma saída estratégica ainda mais nos fundos da loja, para não se deparar e
sofrer o revés do azar de se contaminar e ser, um dia, povão. Acreditava, com
as suas imensas teorias compiladas da internet, que pobre é uma casta
baixíssima determinada por seu deus, pois que, numa sociedade que se preze, há
de haver camadas; altos e inferiores; poderosos e ralés; um que manda e outro
que obedece; e por aí vai…
Nada disso lhe causava
grandes desconfortos. Sentia-se, ao contrário, feliz por contribuir com a
divisão, com os estamentos, com o “processo natural das coisas” – e com as graças
de seu deus, para, no fim, quiçá, no que trabalhava arduamente, restabelecer a
monarquia nesse país.
O bem-aventurado
Eudósio, para fugir à regra do endeusamento ao ego do “eu” familiar, alargando
ainda mais o desprendimento, entregou-se, de corpo e alma, ao redentor dogma de
uma vida de luz, rebatizando-se por Multiverso, porque se sentia, antes de
tudo, plural, do mundo e do universo; pronto para receber os ataques e
redistribuí-las, as más energias, pelo corpo, dissipando-as na terra, para a
sua absorção natural.
Aberto e
desavergonhado; detentor de nada; adepto à conexão substância, de si com o
plano astral, e só. Abandonou, ainda aproveitando algumas referências cristãs,
pais, irmãos e família, para flainar, com os poros abertos, extremamente dilatados,
instruídos à recepção; e, para isso, se mudou, sem deixar rastros, para o Sudeste
do país, a fim de, precipuamente, apelar à singeleza de Guimarães Rosa, à
verdade crua de Aleixo, evaporando-se, então.
Foi tido como uma
afronta à família, que já não o aguentava mais. Claro que os maldizeres foram
protagonizados pelo irmão, Eustáquio, o autoproclamado “dono da porra toda”. De
tão puto, rogou praga à sua vida; não queria supor o nome sujo da família por
unzinho qualquer. Repelia, fosse de quem fosse, uma palavra que suscitasse ou
sugerisse tal louco chamado Eudósio. Porque aquilo era um desocupado. Porque
sempre fora um porcalhão, desmiolado. Porque fazia passar vergonha meio mundo
de gente da família, enquanto ele, o requintado – ou requentado – Eustáquio, dava
gostos, e muitos gostos, à prestigiada família Rocha Aguiar.
Dona Leocádia caiu
enferma gravemente, sem previsão. Mas o que mais preocupava era a lembrança,
ainda que com Alzheimer, sempre presente do caçula. Ela não se referia ao filho
como aluado; não seguia a toada do resto da família amargurada, e pedia, a todo
custo, perdão por ele. “Mas, mamãe, aquele safado nem lembra que a senhora
existe! Deixe de pensar nesse canalha!”. E a cansada senhora repetia a questão;
pedia que jurassem perdoá-lo. Morreu enquanto dormia, num dia frio, nebuloso.
As vizinhas, dona Jandira e dona Maria, diziam, a quem quisesse ouvir, que era
obra de sua dor, por despejarem tanto ódio ao filho desviado. As chuvas fortes
que se seguiram foram prenúncios e lacunas para as derradeiras súplicas. E
dizem, no sertão, que quem morre assim morre desimpedido, livrando-se de uma
carga e dando-a a outro – a sina e a graça do dever cumprido.
O instante inspirava
cuidado, porque não só Eustáquio, mas boa parte da família atribuía a culpa a Multiverso.
Voltou, num reflexo quase imperceptível, inesperadamente, para se aportar no
velório da mãe. Pairou uma onda de fulgor incrível, que abrandou o recinto. Com
roupas esquisitas, beirando a trapos, parou em frente ao caixão da mãe e deu-lhe
um beijo demorado na testa. Uma espécie de novo Big Bang, a explosão; a conexão
resplandeceu tudo. Todos se quedaram abismados, confusos. Os irmãos, abestalhados,
se prostraram de joelhos; e, mais um pouco, Multiverso desapareceu por entre a
multidão, de cerca de oitenta pessoas, que, ainda assim, tentou segui-lo para lhe
tocar e, quem sabe, sugar algumas boas energias do novo messias, o redentor tão
esperado.
Dias depois do inusitado,
relatos espalhafatosos tomavam a capital e davam conta de uma espécie de monge,
uma divindade, algo assim, ter operado um contato suprassensorial, fato passado
e repassado no programa mais espetaculoso dos domingos, da tevê local. A sorte,
a diversão e o ganha-pão do sensacional apresentador era saber se o homem seria
um extraterrestre ou um fantasma; e chamou “especialistas” variados e bisonhos,
que sabiam de tudo e de nada, para decifrar o sucedido.
Especulou-se; mexeu-se
daqui e de acolá, até em rede nacional, o misterioso caso do Redentor de
Quixadá. Enquanto que a ele, o Multiverso, assim como antes, nenhum mortal
seria capaz de acompanhar. Esvaiu-se no tempo e no espaço, para nunca mais.
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