Na altura, a incriminação não era opção.
O meu desejo mais profundo era mesmo matar Estêvão Arunhos, um
antigo mestre de obras e meu vizinho do rés-do-chão. A antipatia
vinha de há muito, logo desde os primeiros encontros, quando me
mudara para aquele condomínio. O seu ar boçal e desdenhoso
manifestava-se em comentários mordazes ao meu modo de vestir, nos
olhares irónicos, nos risos alarves, quando me via acompanhado. Não
havia razões de reparo, a não ser a sua mentalidade retrógrada e
fascista.
Durante mais de dois anos, revesti-me de
compreensão e paciência, acreditando que o tempo acabaria por
levá-lo a perceber que o meu modo de estar e de viver em nada
perturbaria o sossego do prédio e o bem estar dos seus moradores.
Cheguei mesmo a falar com ele de maneira cordata, apelando para a sua
humanidade e para a paz no prédio. Em vão. Até me pareceu que
tinha redobrado as provocações e os insultos, quase sempre de
maneira indireta, de tal modo que eu não poderia, legalmente,
afirmar que me insultara.
Então, um dia, depois de mais uma
gargalhada escarninha que muito incomodou o meu novo companheiro, eu, Emanuel Crispim, resolvi abatê-lo. Uma pessoa daquela índole não tinha correção
possível, não tinha um suficiente verniz civilizacional que lhe
permitisse conviver com os seus semelhantes.
Depois da decisão tomada, comecei por
obrigar-me a tomar consciência profunda de que nada podia revelar a
ninguém desta minha decisão e das ações que me exigiria. Sabia
bem que um segredo mal guardado já levou à prisão e ao cadafalso
mais justiceiros pelas próprias mãos do que as investigações
policiais. Em seguida, passei a matutar no modo e na arma para o
abater. Tinha de ser longe do prédio para, tanto quanto possível,
me manter ilibado. Convinha até que eu arranjasse um álibi, por
exemplo, que fosse visto longe do local da execução, na data e hora
calculadas.
Ocorreu-me, naturalmente, o óbvio: uma
pistola, um tiro na nuca, um local isolado. Tudo isto constituía
obstáculos. Teria de comprar a pistola, mas a quem e onde? E o local
deserto... Como, se o homem estava reformado e não se afastava de
casa mais do que ir ao café e às outras lojas do bairro?
Ao vê-lo entrar na loja de obras e
ferragens tive a revelação de qual seria a arma — uma pistola de
rebites industrial que comprara uma ano antes numa feira de
velharias, na rua, só porque engraçara com o potencial concetual da
maquineta. Estava guardada na arrecadação, desde então, e ninguém
sabia que eu a tinha.
Desde esse momento, tudo começou a
encadear-se. A arma, como ferramenta de operários e industriais da
construção civil, era a ideal, se eu quisesse simular um suicídio
ou uma vingança antiga de algum trabalhador enganado pelo
contratador. Então, ouvi uma conversa no café, que me fez perceber
que um vizinho de outro prédio fora operário da construção e que
também não engraçava com o malfadado Estêvão das obras. Dizia
que este lhe ficara a dever umas horas extraordinárias.
Esta nova informação caiu como sopa no
mel. A desavença entre eles era conhecida e, melhor que tudo, o
antigo operário amanhava uma horta clandestina numa zona próxima,
mas bastante escondida pela vegetação local. Uma aproximação
furtiva seria fácil para mim. Foi esta diferente exposição a
olhares que me determinou a trocar de alvo. Matar este hortelão não
me trazia qualquer alívio da vingança, mas permitia-me incriminar o
Estêvão, tanto pelo conflito conhecido como, sobretudo, pela tão
específica arma do crime. A pistola de rebites era a cara do antigo
mestre de obras… E nada me ligava à vítima, nem um prédio comum.
Não mataria quem me atormentava, mas ele haveria de bater com os
costados na prisão por muitos anos!
A partir daí, a preparação tornou-se bem
mais rápida. Escolhi uma hora que o Estêvão não pudesse provar
que estivera com alguém, e o antigo operário ainda labutasse na
horta — as horas do fim do dia, que, além disso, proporcionavam um
lusco-fusco cúmplice.
A execução não foi bonita, nem digna de
maior descrição. No dia marcado, meti-me pelo arvoredo, bem longe
da horta do sacrificado, aproximei-me pelas costas tão
silenciosamente quanto possível e, quando já estava a poucos
metros, saltei para junto dele e disparei-lhe o rebite na parte de
trás da nuca. O homem caiu desamparado sem um ai e eu afastei-me
rapidamente, indo sair do arvoredo outra vez lá longe.
A morte foi descoberta no dia seguinte. A
Polícia andou por aí a perguntar informações aos vizinhos, mas
não vieram a minha casa. O Estêvão foi interrogado, mas,
inexplicavelmente, não foi preso. Os vizinhos foram perentórios a
afirmar a profunda inimizade dele com o morto, o que configurava um
indício mais do que suficiente para o funesto desfecho, mas a
Polícia não pareceu ter ficado convencida.
Durante semanas, nada mais se soube da
investigação. Aparentemente, a Polícia tinha dado o caso como “sem
pistas” e, provavelmente, arquivaria o processo, mais tarde. O
Estêvão continuou a passear-se pelo bairro, para alguma irritação
dos vizinhos, e, talvez por isso, deixou de ser provocatório para
comigo.
Já andava a ponderar avançar dessa vez
mesmo contra ele, embora sem grandes ideias, quando, certa madrugada,
a Polícia me entrou porta adentro, revirou a casa, encontrou a
pistola de rebites e me levou preso.
Eu não cabia em mim de perplexidade e
acabei por confessar tudo. Mais do que a surpresa da situação,
havia perguntas que martelavam na minha cabeça: por que não tinham
prendido o Estêvão, mas tinham vindo a minha casa com tal certeza?
Tentei que o inspetor que tratara do caso esclarecesse as minhas
perguntas, sem sucesso.
Foi por alturas do julgamento que percebi o
que tinha acontecido, através dos jornais sensacionalistas: o
Estêvão apresentara um álibi — tinha obtido testemunhos pessoais
e provas informáticas, com registos de imagem, de que nessa noite
estivera muitas horas num site de encontros masculinos; e eu fora
apanhado por uma denúncia: a mais recente visita secreta de casa do
Estêvão tinha sido meu companheiro tempos atrás e, coscuvilheiro e
metediço, tinha andado a meter o nariz nas minhas coisas. O
julgamento foi rápido e nem sequer estranhei a dureza da pena de
prisão: 25 anos.
Joaquim Bispo
*
Por seleção em concurso literário, este
conto integra a coletânea Procurados
— “policial do ponto de
vista do criminoso” — publicada pela editora brasileira
Illuminare, em novembro de 2019.
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Imagem: Peter Paul Rubens, Dois Sátiros,
1618-1619.
Alte Pinakothek, Munique.
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