Era um belo jarro de porcelana branca, alto e levemente bojudo. Tinha uma
asa longa, fina e angulosa e um bico discreto, mas funcional. O seu formato era
elegante, sem grandes floreados ou arrebiques, e a porcelana da melhor qualidade:
agradável ao tato, não muito pesada e de uma opacidade imponente que impunha
respeito. O corpo, liso e ligeiramente cónico, era rematado por um pequeno
arabesco em relevo, entrelaçado em torno da boca e das extremidades da asa.
Desde
há anos que presidia orgulhosamente a todas as refeições daquela casa, sempre
cheio de água bem fresca, vigiando tudo e todos com o seu olhar incansável. A
sua simples presença no centro da mesa bastava para fazer calar o tilintar
intempestivo das peças mais novas, sempre prontas para a tagarelice,
impondo-lhes uma atitude mais condigna à solenidade da ocasião.
Era
de longe o decano de toda a louça e tinha-se tornado um símbolo de autoridade e
o repositório de todas as tradições e costumes da casa. Era o árbitro final de
todas as questões, o disciplinador incontestado de todas as quebras de
disciplina ou educação. Todos o respeitavam, acatando de imediato a sua menor
ordem ou sugestão.
Durante
a sua já longa vida vira e ouvira muita coisa, não só durante as refeições como
também na cozinha e armários. Fora a testemunha de eleição de muitas conversas
e discussões, de alegrias e tristezas, de partidas e chegadas, de celebrações e
funerais. Conhecia como ninguém os diversos membros da família e a maior parte
dos seus convidados, as suas manias e os seus gostos. Sabia quem o utilizaria
com vontade e quem o deixaria especado, olhando-o, até, como se contivesse um
veneno estranho e fatal.
Durante
todo esse tempo, muita louça desaparecera, partida ou esquecida no fundo de
algum armário, sendo de imediato substituída por novas peças, ou por outras
trazidas à luz do dia após numerosos anos de esquecimento. Louça de todos os
tipos e feitios, peças de uso diário ou que apenas eram utilizadas nas grandes
ocasiões festivas.
Nunca lhes prestara grande atenção. Eram seres provisórios, hoje aqui,
amanhã sabe-se lá onde. A sua posição era bem diferente, única e demasiado
importante para ser facilmente substituído ou esquecido. Podia-se mesmo dizer
que fazia parte da família, o que não andava longe da verdade, uma vez que já
conhecera três gerações diferentes.
Um
belo dia, mal tinham acabado de o pousar na mesa quando a viu. Por momentos o
mundo à sua volta deixou de existir. O seu coração batia desordenadamente,
fazendo saltar a água que foi salpicar a toalha imaculada. O ruído das vozes e
dos talheres tornou-se difuso e tão longínquo que parecia vir de uma outra
sala, ou, até, de um outro universo. Tudo o que o rodeava estava envolto numa
penumbra cinzenta, opaca e sem contornos definidos, tornando impossível
adivinhar o que nela se escondia. A sala tornara-se um turbilhão de tons
escuros revolteando sem cessar, confundindo os olhos e a mente. Só ela permanecia
bem nítida e imóvel, suavemente aureolada pela ténue neblina que se evolava da
sopa quente.
Nunca
vira nada de tão belo! Todos os pormenores se destacavam do cinzento baço e
opaco do ambiente, como que brilhando sob luz própria. E que perfeição! O tom
branco e levemente leitoso da porcelana do seu corpo; o brilho discretamente
nacarado da sua pele; as magníficas rosas pintadas em cores suaves ao longo das
faces; a forma elegante e ao mesmo tempo arrojadamente moderna do corpo; o pé,
fino, pequeno e aparentemente tão frágil; a delicadeza das asas, deliciosamente
curvas e bem moldadas; a tampa, sombreando delicadamente o corpo esbelto; a
atitude modesta, mas simultaneamente majestosa e imponente. Era verdadeiramente
a criatura ideal, um verdadeiro paradigma de beleza e elegância. Não lhe
encontrava um único defeito, uma única imperfeição!
Seria
incapaz de dizer o que se passara à mesa nesse dia. Nada vira, nada ouvira. Só
tivera olhos para ela, ouvidos para tentar captar o menor murmúrio saído da sua
divina boca. Quando a retiraram da sala sentiu uma tal sensação de perda, de
desespero total, uma dor na alma tão súbita e acutilante, que foi forçado a
render-se à evidência: apaixonara-se perdidamente pela nova terrina da sopa!
Ele,
que nunca sentira o menor afeto, o menor amor por ninguém! Ele, que sempre fora
da opinião que as paixões assolapadas, os grandes romances, cheios de suspiros
e desejos, não passavam de invenções românticas destinadas a enganar os tolos,
os fracos de espírito, os crédulos. Acreditava, isso sim, que uma longa
convivência, interesses e opiniões comuns, uma certa necessidade de
companheirismo, pudessem conduzir a um grande afeto entre dois seres. Poderia,
mesmo, receber o nome de amor. Mas, paixão? Amor à primeira vista? Impossível!!
Seria contra toda a lógica.
No
entanto, o impossível acontecera. Só pensava nela, só tinha olhos e ouvidos
para ela. Tudo o mais lhe parecia insignificante, indigno de ocupar a sua
atenção ou o seu tempo. Quando estava só rememorava todos os pormenores da sua
amada e imaginava conversas futuras entre os dois. Pela primeira vez desde que
se conhecia sofria de solidão, da sensação de estar cortado dos outros, isolado
num cantinho pequeno e abafado, sem ar novo e sem quaisquer perspetivas. A sua
ausência era uma dor lancinante e sem remédio, que o atormentava até às raias
da loucura. Sem ela, a vida não merecia ser vivida. Era realmente a Grande
Paixão.
Deixou
de se interessar pelo que o rodeava. A sua posição de árbitro final dos
costumes e tradições passou a ser um peso insuportável, em vez de uma honra de
que muito se orgulhava. Ressentia-se do tempo que as suas numerosas funções lhe
tomavam e que tinha de ser roubado à contemplação do seu amor. Mal respondia às
perguntas que lhe faziam e as maiores impertinências ou desleixos no serviço
passavam sem qualquer reparo.
Nem
o espanto incrédulo dos outros perante a sua nova atitude o incomodava, embora
ainda uns dias antes fosse um verdadeiro escravo do ‘correto’, do ‘parece mal’.
Agora, nada disso lhe parecia importante.
Vivia
agora para a hora das refeições. Só nesses breves momentos em que a sopa era
servida a podia ver, pois eram guardados em locais diferentes e bem afastados
um do outro. Quando a via aparecer à entrada da sala, trazida em triunfo pelas
mãos da empregada, bela, imponente, cheia de sopa aromática e fumegante, a água
do jarro até parecia que cantava de alegria. Prazer intenso mas pouco
duradouro, contudo, pois ela era retirada quase de imediato enquanto ele tinha
de permanecer firme no seu posto até ao fim da refeição, que lhe parecia agora insuportavelmente
longa e sem sentido. Nem sequer eram lavados ao mesmo tempo. Por isso raras
vezes a via na cozinha.
Um
dia em que, como de costume, a observava atentamente, tentando armazenar nos
poucos momentos disponíveis as bases para os seus sonhos e lucubrações durante
o longo intervalo de espera ansiosa, pareceu-lhe que um leve tom róseo cobria o
branco leitoso da porcelana da sua amada. Seria efeito da luz? Ilusão ótica? Olhou
melhor. O tom róseo permanecia inalterado e a tampa estremecia levemente, como
que receosa do que fazia.
O
pobre jarro mal podia acreditar no que os seus sentidos lhe mostravam. A emoção
foi tão forte que uma boa dose da sua água caiu sobre a toalha, encharcando-a.
Não havia dúvidas. Era amado!
As
refeições seguintes passaram-se como que num sonho, entre olhares apaixonados e
suspiros de emoção mal contida. O jarro da água, completamente louco de paixão,
passava horas a fio inventando os planos mais inverosímeis e extraordinários
que lhe permitissem um encontro, ainda que breve, com a sua amada. Um instante,
um breve instante a sós com ela, era tudo o que pedia à vida, a única ambição
que o movia.
Mas
as circunstâncias pareciam que se conjugavam contra os pobres amantes
desesperados. Durante as refeições, a bonita terrina nunca era pousada sobre a
mesa, sendo levada de lugar em lugar até ser retirada quando todos estavam
servidos. Nas longas horas de espera, ficava fechada num grande armário muito
distante do dele. Nem na cozinha se encontravam. Como as suas pesadas
responsabilidades o obrigavam a ficar na mesa até ao fim da refeição, quando o
lavavam já ela estava arrumada e bem fechada no seu canto.
Isto
constituía para o pobre jarro novo motivo para preocupações e desespero. A bela
terrina, a sua bem-amada, não tinha, como ele, direito a um lugar isolado num
armário. Considerada simples elemento de serviço, ficava misturada com outras
peças grandes, na sua maioria travessas e taças, de que o jarro sentia um ciúme
atroz. A simples ideia de que outros tocavam aquela porcelana delicada, ficando
em contacto direto com ela durante horas a fio, enlouquecia-o por completo.
Havia,
ainda o perigo de as longas horas de convivência fazerem mudar os seus
sentimentos, criando um forte afeto, talvez mesmo amor, por outro que não ele.
Ganhou
verdadeiro ódio a algumas das outras peças, detestando muito particularmente
uma grande travessa de desenhos vagamente chineses que lhe parecia ostentar ultimamente
um ar de autossatisfação completamente idiota. Só não a desafiou abertamente
porque não teve oportunidade para tal. Mas vontade não lhe faltou!
Era
verdadeiramente exasperante. À medida que o tempo passava sem solução à vista o
desespero mais completo tomava conta deles. A água já não cantava no jarro
durante as refeições. Parecia mesmo suspirar de tristeza, deixando um travo
amargo na boca e uma sensação de sede que nada conseguia apagar. Quanto à sopa,
ficava fria mal a metiam nela.
Para
complicar ainda mais as trágicas circunstâncias em que viviam, vieram os longos
e quentes dias de verão. Devido ao forte calor que então reinava, havia dias em
que não se servia sopa, e o pobre jarro da água era obrigado a suportar as
lentas refeições estivais sem ter sequer o consolo de um breve olhar daquela
que dava significado à sua triste vida. Pensou morrer de desgosto e desespero.
Ali estava ele, para ali sozinho e desolado, enquanto outros passavam o verão
inteiro fechados com Ela!
Quando
a situação atingia as raias do inaceitável e o jarro da água começava a
contemplar seriamente a hipótese de enlouquecer de vez, eis que tudo mudou. Foi
admitida ao serviço uma nova empregada, novata no assunto e, por isso,
desconhecendo os hábitos e costumes da casa. Logo na primeira refeição que
serviu, assim que acabou a distribuição da sopa retirou-se, colocando a bela
terrina em cima da mesa, muito perto do jarro de água.
Este
mal podia acreditar na sua sorte. Que felicidade inesperada! Estavam finalmente
juntos, separados por uns escassos centímetros de ar perfumado pela sopa da sua
bem-amada. A sua alegria transbordou, turbando-lhe o pensamento, enevoando-lhe
a visão e tornando-o surdo e mudo. Mas não por muito tempo. Apercebendo-se de
que a situação não poderia durar, recompôs-se o mais rapidamente possível e
tomou as rédeas da situação. Como lhe competia, de resto.
Naqueles
breves instantes de indizível êxtase, os pobres amantes, tão infelizes até
então, tentaram compensar no pouquíssimo tempo de que dispunham os muitos dias
de angústia e desespero porque tinham passado. Trocaram as palavras mais
ternas, as juras mais solenes, as promessas mais insensatas. Uma eternidade de
amor no espaço de breves minutos. Muito e pouco, ao mesmo tempo. Insuficiente
para apagar o fogo da sua paixão, mas o bastante para os satisfazer por
momentos.
Quando
a retiraram do seu lado o jarro da água mergulhou num estado de euforia tal que
chegou a recear pela sua integridade física. Foi com grande dificuldade que
conseguiu acalmar-se, e só ao fim de muitas horas pode relembrar com algum
sangue frio todos os pormenores de tão momentoso encontro.
O
pior é que em vez de o acalmar a experiência só serviu para lhe exacerbar o
espírito. Antes tinha desejado apenas um instante, ainda que breve, com a sua
adorada. Agora, este parecia-lhe um nada insignificante, algo que mal valia a
pena ter vivido. Queria mais, muito mais. Um lugar permanente ao lado dela, sem
mais ninguém por perto. Horas e horas de convívio e partilha de experiências.
Vê-la na mesa a seu lado durante toda a refeição, admirando a maneira magistral
como ele controlava o serviço. Enfim, queria o possível e o impossível.
Apesar
de tudo, as coisas melhoraram um pouco a partir daí. A nova empregada era um
pouco descuidada com o serviço, por isso encontravam-se na cozinha com uma
certa frequência, enquanto esperavam que ela arrumasse tudo. É certo que nem
sempre ficavam suficientemente perto um do outro para poderem conversar, mas
podiam trocar olhares e suspiros.
A
sua paixão aumentava a cada encontro. Além de bela, elegante, magnífica, a sua
adorada era também terna e sensível. Que encanto de conversa, que frescura de
ideias! Que sentimentos delicados! Que maneiras educadas! Não havia dúvidas, o
exterior era apenas um pálido reflexo do maravilhoso interior da bela terrina. O
pobre jarro da água sentia-se totalmente enfeitiçado e o mais feliz dos mortais
por ser amado por um ser tão divinal. Seria capaz de vender a alma ao diabo em
troca de uma vida em comum com ela.
Veio
mesmo um dia - oh! momento supremo - em que se tocaram, num instante de delírio
e êxtase impossíveis de descrever. Muito ao de leve, é certo, mas foi um toque,
asa com asa. Era a primeira vez que sentia na sua a pele da sua amada, tão
suave, tão macia, tão arrebatadoramente aveludada. Um arrepio percorreu-o de
alto a baixo, sentiu mesmo uma tontura que lhe enevoou os sentidos durante
largos instantes. Quando recuperou o sangue-frio, já tinham sido separados.
Os
seus sonhos aumentaram então de tom. Já não lhe chegava a ideia de longas horas
de amena e agradável conversa. A ideia de partilhar um mesmo espaço com tão
fascinante criatura tornava-se dia a dia mais atraente. A obsessão era de tal
modo forte que o jarro da água abandonou totalmente qualquer pretensão de
vigilância do serviço ou manutenção das tradições. Que lhe importava o passado,
quando o único futuro por que ansiava lhe era negado? Que acabasse tudo, que
viesse o caos mais completo e devastador! Pelo menos isso estaria mais de acordo
com o seu estado de espírito.
Uma
noite, porém, deu-se a tragédia! A sopa estava demasiado quente e a empregada,
atrapalhada, deixou cair a terrina que se desfez em pedaços. O pobre jarro da
água sentiu-se paralisar de terror. Para onde quer que olhasse só via
pequeninos pedaços de porcelana branca, manchados de espessa sopa de tomate.
Era a catástrofe inesperada que vinha pôr fim a todas as suas esperanças,
destruir todos os seus sonhos, todas as hipóteses de um futuro a dois.
Chorando
convulsivamente de desgosto, teve de assistir à descuidada remoção dos restos
da sua bem amada. Ninguém parecia importar-se com o sucedido, ninguém queria
saber do pobre ser destroçado que ali jazia, desfeito sem qualquer esperança de
recuperação. Os únicos comentários que ouviu referiam-se à perda da sopa e à
necessidade de aquisição de nova terrina. Como se esta alguma vez pudesse ser substituída!
O
pobre jarro da água estava totalmente destroçado. Como poderia continuar a
viver, dia após dia, refeição após refeição, sem aquela presença luminosa, sem
o único ser que dava sentido à sua existência? É certo que pouco se viam. Mas
os instantes que até há pouco lhe pareciam insignificantes, meras migalhas
incapazes de satisfazerem os desejos da sua alma, eram agora eternidades sem
fim quando comparados com o que o esperava: anos a fio com o peso daquela
ausência sem remédio.
Sentia
o coração partir-se dentro dele e uma tremenda lassidão, um cansaço imenso que
o prostrou por completo. As lágrimas continuavam a cair, mas de mansinho, quase
a medo, como que envergonhadas. Já não sentia forças para grandes convulsões ou
gritos de desespero. O que sentia ia demasiado fundo para isso.
Quando
alguém lhe pegou para se servir de água, as muitas lágrimas que chorara
tinham-no tornado demasiado escorregadio e difícil de agarrar.
Juntaram-se
no caixote do lixo.
Luísa Lopes
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