Atulhado; comprometido
com o empreendedorismo (empresa dentro da empresa), com a voz ecoada do pastor,
João Paulo não se encabulava e, pelo contrário, bradava gritos de energia, de
sucesso, com a meta conquistada, de dez horas por dia de trabalho, domingo a
domingo.
Chegava a casa, não
raras as vezes, pelas onze, doze horas da noite, mulher e filhos no sono mais
profundo. Não via o desenrolar do bloco familiar. Maria, então, dava duro na
educação e na sustentação das duas crias. Contudo, João Paulo tinha um sonho,
um sonho antigo e astucioso, que animava a dura perseguição de algum porvir: de
ir à América, especialmente a Orlando; principalmente para curtir os parques e,
quiçá, dar um traço e ficar por lá. Dizia, a quem perguntasse, que juntava
dinheiro e trabalhava dobrado para, pessoalmente, agradecer ao Estado maioral,
por segurar as pontas do mundo; e que, também, iria pelos filhos, para
aproveitarem o que há de melhor; para aprenderem a ser gente, com o exemplo do magnânimo
poderio.
Maria caiu enferma. Ela
e os filhos, arriados de gripe; uma gripe estranha, muito forte, densa. João
Paulo, com receio de ultrapassar o limiar da necessidade e do dengo, dignou-se,
muito a contra gosto, a preparar uma composição de mel, cebola, alho e
própolis. Disse que a mulher, com isso, poderia muito bem se virar. Além do
mais, já havia suco de laranja, de caixa, na porta da geladeira; “vitamina C na
veia!”. Maria, apesar dos pesares entendeu, o marido tinha um sonho, precisava
trabalhar; o seu aposento por invalidez, de uma cegueira progressiva, não valia
quase nada para o sonho; não poderia proporcionar o que tanto desejava.
Tio Fernando, um
esquerdista desgraçado, assim designado por eles, lembrava, sempre que podia,
as benesses de ter um plano público e universal de saúde; que, de outra forma, estariam
tremendamente empenhados; que pensassem nisso. João Paulo, na última ligação,
arrazoou a conversar, decretando: “Vá se foder, seu velho safado!”. Fernando
continuou, como se nada houvesse acontecido, com suas aulas de português em
escolas públicas da cidade; muito mal remunerado, desestimulado, somente pelo
amor que devotava às crianças, inclusive aos filhos de Maria e de João Paulo.
João Paulo, então, para
apressar os serviços, bem-disposto com o tutu na conta, passou a trabalhar doze
horas por dia. No veículo alugado, transportava de tudo, como dizia: homem,
mulher, viado. Não tinha besteira. Para ganhar dinheiro, falava, não tem esse
negócio de discriminação, “até que eu trato bem esse povo, viu!?”. A despeito
da aparente disposição, recebeu nota 4,5, pelo que ficou enfurecido e
preocupado. “Deve ser um desses escrotos, que querem atrapalhar a vida de um
pai de família, homem de bem!”. Mas seguiu firme na sina de bom colaborador
(empreendedor do próprio destino), porque não havia tempo hábil para pensar ou respirar.
Do Estado não queria
nada – mas não rejeitava, no íntimo, o aposento da mulher. “Isso é uma
ninharia. Não dependo dessa porcaria, não. Eu trabalho é pra sustentar esse
Estado ladrão!”.
Maria sempre, vai lá,
vai cá, numa peinha de nada. Os filhos, Robson e Rarison, oito e seis anos, respectivamente,
se revezavam nos cuidados, cada vez mais intensos. Havia dias que ela se
perturbava com uma ruma de ocupação e com a ausência programada do marido. Já
supunha que era proposital, para não ter de presenciar o grosso vazio que se
amotinava. Antes, vinha duas vezes a casa, pelo menos, e passava algumas horas
com os filhos. Decerto julgava que os filhos não precisassem mais dele, a não
ser de um ralo dinheiro, que dispensava; uma legítima esmola para se virarem,
na escola pública.
João Paulo não parava de
pensar na América. Havia, pelo menos uma vez na vida, de ir para fazer como
fazem os mulçumanos, que vão à terra sagrada de Meca. Talvez, a Meca ou a Jerusalém
do capitalismo. Devia o esforço sobre-humano. Só o fato de pensar já o
recuperava de uma rebordosa da consciência, que vagamente aparecia, pronunciando
que teria de pensar primeiro em Maria.
Numa quarta, um fato
inesperado: Maria se foi. João Paulo preparou uma cerimônia simples, em casa,
para não ter de gastar muito. Morreu na madrugada, de diabetes não conhecida e
não tratada, atestava o laudo. No começo da tarde, agilizou o enterro, e
pronto. Indefinidamente – ou instintivamente –, imaginou que seria um problema
a menos para concretizar o sonho.
Passou a exigir foco,
disciplina, segundo o pastor coach
ensinou. Os filhos extenuados, aulas e trabalhos domésticos drásticos, que João
Paulo não se dignava de fazer, tomaram os meninos de tristeza e de solidão.
Contraíram infecções cutâneas. João Paulo ordenou que parassem de frescura, que
“homem que é homem não tem manha, não; é na base da porrada”. Porrada, porrada,
não dava; mas ameaçava.
Robson e Rarison
resolveram fugir, para a casa da avó Creusa, mãe da mãe, no interior. João Paulo
não tinha contato com a sogra há anos. Havia se estranhado, porque ela não
concordava com o casamento fugidio. De mais a mais, Creusa não teria sido
convidada ao enterro da filha, tomando conhecimento dias depois. Para ela, a
grande desgraça, da qual precisava se vingar.
Robson e Rarison
desejaram que o pai se lascasse, bem longe deles.
João Paulo se escafedeu
para a tão sonhada América. Embrenhou-se num caminho arriscado, pelo México,
país que odiava; que servia apenas de caminho para o eldorado. Foi preso e
deportado. Passou a endeusar ainda mais a América, porque, vociferava, “Agora
eu sei que a lei lá funciona. Aquilo é que é país!”.
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