Era o
momento crucial. Um movimento errado e perderia as muitas horas de preparação
e, pior ainda, a única oportunidade de ser um Agente Temporal. Na Academia não
havia segundas oportunidades, um chumbo, um falhanço e era o fim. Como os
instrutores gostavam de dizer, só temos uma vida e esta é curta, há que acertar
à primeira. Irónico, tendo em conta que muita da atividade futura dos que se
formassem envolveria precisamente a correção de erros no passado!
Respirando
fundo, olhou rapidamente à sua volta numa tentativa de acalmar os nervos em franja. Os poucos
colegas finalistas estavam todos a trabalhar duramente, tentando ultrapassar a
última barreira no longo e difícil percurso para o tão cobiçado crachá da
Polícia Cósmica.
Não
pôde impedir-se de reparar que muitos pareciam estar já na fase final do teste,
pelo menos a avaliar pelas luzes que iam piscando nas máquinas de solidificação
temporal colocadas nos vários postos de exame.
Isso
provocou-lhe uma nova onda de pânico. E se fosse o único a falhar? Não que
fosse vergonha não conseguir chegar ao fim do curso, só cerca de um por cento
dos candidatos iniciais conseguia a tão almejada graduação, mas que soubesse
nunca ninguém falhara tão perto desse objetivo. E por muito que gostasse de ser
um pioneiro, esta era uma estreia que não desejava.
Calma,
tinha de estar completamente calmo. Fechando os olhos, repetiu os exercícios
respiratórios e mentais recomendados que o acompanhavam desde o primeiro ano,
ou antes, desde a primeira semana de aulas, pondo de parte qualquer ideia de
falhanço ou inadequação. Como lhe tinham dito vezes sem conta, “acreditar é
concretizar”. Para o bem ou para o mal. E fora sempre verdade, muito antes até
de ter ouvido a expressão e posto os pés na mais prestigiada Academia do
Universo.
Sim,
tendo nascido numa família marginal, para não usar o proibido termo pejorativo
“criminosa”, só à custa de acreditar em si e de manter os olhos firmemente
postos no objetivo formado quando assistira à primeira aula sobre profissões
com uns tenros seis anos conseguira o acesso ao prémio ambicionado por tantos
mas que pouquíssimos conseguiam, a entrada na Academia da Polícia Cósmica, ou
como eram comummente chamada, a Escola dos Polícias do Tempo.
Sentindo-se
melhor, olhou novamente para dentro da máquina. A cena estava quase perfeita,
quase como a delineara no resumo do projeto entregue para aprovação antes desta
sessão prática final e decisiva. As longas horas passadas a pesquisar nos
Arquivos tinham compensado.
Tinha sido
muito difícil, o estudo de tantos filmes antigos e quase ilegíveis, mas se
fosse bem-sucedido teria pontos extras pela originalidade. É que ao contrário
dos colegas não se limitara à parte dos arquivos que tinham sido preparados
para pesquisa rápida. Não, gastara muito do seu pouquíssimo tempo livre a
pesquisar manualmente, cruzando dados, investigando, descartando hipóteses que
inicialmente pareciam promissoras, cansando vista e dedos até encontrar a cena
perfeita.
Sabia
das suas pesquisas prévias que em tempos recentes ninguém usara este planeta ou
este período. Provavelmente porque com tanta população e tanta atividade
frenética constante era difícil conseguir isolar um incidente com a certeza
absoluta de que não afetaria esse presente ou, pior ainda, o futuro. Mas ele
conseguira-o! Desde que, claro, a última parte corresse bem.
Espreitando
pelas lentes, ficou tenso, com o dedo a rasar o painel do obturador, à espera
do momento certo. Se a pesquisa fora difícil, focar a máquina também não fora
nada fácil. Havia uma boa razão para os finalistas escolherem épocas mais
próximas e planetas pouco povoados, as máquinas da Academia, mesmo as dos
finalistas, não eram exatamente topo de gama. Eram perfeitas para uns duzentos
a trezentos anos, mas para além disso só muito dificilmente se conseguia uma
imagem com a nitidez necessária para o exigido no exame. E ele recuara quase
três mil anos na sua tentativa de se distinguir dos colegas e ser o primeiro da
turma.
Para o
conseguir tinha entrado muitas vezes à socapa no laboratório, altas horas da
noite, cortando nas poucas horas de sono para se habituar ao complicado sistema
de focagem da máquina, recuando cada vez mais até ficar relativamente perto da
época pretendida, uns meros trezentos anos depois. O tempo, infelizmente, não
dera para mais, até porque as máquinas não eram rigorosamente iguais e tinha
decidido que era mais importante adaptar-se às suas idiossincrasias do que
recuar mais no tempo. Mesmo assim tivera algum azar, a que lhe calhara no exame
era uma das que menos conhecia.
Os
personagens principais já estavam na zona central de focagem, mesmo assim
hesitou em premir o botão. Não podia ter a certeza, claro, mas tinha a sensação
de que se esperasse mais uns segundos as coisas seriam ainda melhores. E os anos
antes e durante a Academia tinham-lhe ensinado a importância de seguir os seus
instintos, ideia corroborada pelo psicólogo que o avaliara como candidato à
Academia e que lhe dissera que o seu instinto para o momento e ação certos era
um dos seus pontos fortes.
Pronto,
era agora o momento. A sua mão direita moveu-se rapidamente sobre os botões do
painel, ajustando, premindo, enquanto tentava desesperadamente manter o
aparelho de focagem o mais estável possível com a mão esquerda, tudo isso no
meio de um verdadeiro espetáculo de fumo e luzes que enchia a máquina durante
uma recolha, impedindo de ver o que se estava a recolher.
Durante
uns instantes ansiosos, pareceu-lhe que iria falhar. Mas não, as luzes estavam a
começar a ficar verdes, tinha pois uma amostra. A questão era agora, que
amostra? A que idealizara e submetera à comissão de exames ou uma outra que lhe
garantiria um chumbo, por muito boa que fosse? Sim, não bastava ter uma boa
cena, a essência de um Agente Temporal era chegar cirurgicamente ao instante e
local indicados, sem quaisquer desvios.
Durante
a aparentemente longa espera pela solidificação da amostra, as dúvidas voltaram
a assaltá-lo. E se esperara demasiado? E se o momento perfeito já tivesse
passado? E se os espécimes tivessem entretanto saído da zona de focagem? Era
lendária a história do agente novato que ao tentar apreender um fugitivo que se
refugiara no passado falhara o alvo e retirara um elo chave, um daqueles
personagens fundamentais de uma época, provocando todo o tipo de desvios na
linha temporal que tinham exigido anos e imensos recursos para serem
corrigidos.
O tempo
foi passando, quase tão ruidoso como o seu coração acelerado. Perder ou ganhar,
êxito ou falhanço total, tudo seria decidido nos próximos minutos.
O
último indicador ficou finalmente verde, indicando que a amostra estava pronta
para ser visualizada e retirada. Retendo o fôlego, ligou o ecrã minúsculo e
espreitou quase a medo através da lupa. Estava perfeita, absolutamente
perfeita.
Tinha a
certeza de passar e com a pontuação máxima ou muito perto dela. A sua amostra
tinha tudo a seu favor: origem obscura, época movimentada, número máximo de
personagens principais e timing perfeito.
Com um
sorriso de autossatisfação, olhou de novo para a sua fatia de vida: uma viela
escura, um homem paralisado no momento da queda, com sangue na camisa, a mulher
a seu lado de boca aberta num grito silencioso, outro homem com uma arma na mão
apontada à mulher, uma bala parada no ar e um cão na ponta de uma trela a
tentar em vão não ser esmagado pelo corpo em queda.
E na
Chicago de 1973, um casal que passeava o cão desapareceu sem deixar traço,
confundindo a polícia, as respetivas famílias e os amigos. Mas sem descendentes
ou empregos de monta, o caso caiu rapidamente no esquecimento sem provocar
ondas, deixando apenas uma pequena notícia nos jornais locais, jornais esses
que estavam agora nos vastíssimos Arquivos da Academia.
O mesmo
aconteceu a um ladrãozeco local conhecido por pequenos assaltos à mão armada,
mas o seu desaparecimento passou totalmente despercebido: era um lobo solitário
e ninguém sentiu a sua falta. Como a sua zona foi ocupada por um outro
“marginal”, a polícia limitou-se a registar no seu ficheiro que mudara
provavelmente de cidade por as coisas estarem a ficar demasiado quentes ali,
ficheiro esse também nos Arquivos com a data do seu último assalto, a manhã do
dia escolhido pelo candidato.
Quanto
à fatia de vida, foi considerada suficientemente boa para ser colocada no museu
da Academia como um exemplo perfeito daquela época naquele obscuro planeta,
garantindo ao seu autor a concretização do seu sonho de infância, a entrada
imediata no corpo de elite da Polícia Cósmica, os Agentes Temporais.
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