No balanço do comboio de Braga para Lisboa, mal percebo a beleza da ponte de ferro no Porto quando cruzamos o Rio D’Oro. Estou acalentado pelo desejo de Portugal, ainda mais que meus olhos embaçam diante das letras de um dos maiores escritores contemporâneos da terrinha: Walter Hugo Mãe. Sua escrita já me levou aos everestes da emoção, mas nunca como o conto O Menino da Água, do livro Contos de Cães e Maus Lobos.
Os deuses da sensibilidade à flor da pele conspiram. O inconsciente manda recados. A riqueza da produção literária portuguesa se junta à qualidade de vida e a um renascer sossegado que Portugal me sinaliza, alimentando sonhos ousados, sem certezas absolutas, mas com a coragem que a vida exige.
O conto em si é de uma beleza estonteante. Uma mãe perde o filho tragado pelas ondas do mar, que não o devolve. A mãe, então, deixa de se enxugar depois de chuvas e chuveiros, só para sentir na pele o filho que a água lhe roubou. Só de resumir minimamente a prosa, águas brotam nos meus olhos, mas o desenvolvimento literário do texto, o esculpir das frases, a delicadeza da narrativa são algo de indescritível e imperdível. Ao reler o curto conto pela terceira, quarta, quinta vez,
me vem Gilberto Gil.
Gilberto Gil? Sim. Um dia, ouvi numa entrevista sua afirmativa de que tão meritório e necessário quanto o talento de criar é o talento de apreciar. Afirmativa verdadeira. Ler não é apenas ouvir para si próprio uma combinação de letras. Ler é interpretar e sentir o que é bordado pela escrita, com todas as sutilezas, intenções veladas, sentimentos, ousadias, complexidades e construções bem lapidadas por quem, no outro lado da ponta, tem o talento de produzir. Na ponta de cá, há que se ter talento para ler. É se deliciar com o oficio do criador, sentindo que, como leitor extasiado, a criatura lhe pertence.
Quando Chico Buarque escreve - sim, ele escreve na música - “na bagunça do seu coração, meu sangue errou de veia e se perdeu”, dá-se uma hemorragia de leituras e sentimentos em quem tem o talento de apreciá-lo e percebê-lo como um dos melhores produtores de literatura do mundo. Saber respirar Chico Buarque é oxigenar a alma.
A letra da canção Quereres de Caetano Veloso é de um raro garimpo profundo na arte de dizer coisas. Repare este trecho.
“Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és”
Sentiu? Pense quantas coisas cabem nesse tecido de palavras.
Eleonor Rigby dos Beatles não é apenas uma música a ser cantarolada. Quem tem talento de saber
ler de olhos fechados descobre um conto melancólico, onde uma infeliz cata o arroz no chão de uma igreja onde um casamento acaba de acontecer. É um chão apinhado de grãos, leituras e poesia.
“É pau, é pedra, é o fim do caminho. É um resto de toco, é um pouco sozinho.” Tom Jobim escreveu em Águas de Março. Mas pode-se e deve-se ler o pau que quiser, a pedra que quiser, o toco que quiser, o caminho que quiser. Não tem fim.
Outro dia, pesquei numa dessas pelejas de redes sociais um web comentarista, não percebendo as figuras de linguagem contidas num texto, partiu a deitar literalidade sobre uma hipérbole talentosamente colocada para exagerar e, portanto, dramatizar uma situação. Pena. Perdeu a oportunidade de usufruir do dom da abstração ao se curvar ao pé da letra, certamente impulsionado por opiniões cristalizadas. É a escuta sólida a rebater qualquer fala que lhe venha na contra-mão..
Falei em dom. É possível que haja tal manifestação humana, mas se não for exercitada, terá o destino de se perder na obviedade da objetividade, algo oposto ao subjetivo que seduz, encanta e provoca evolução de corações e mentes.
A voz suave do comboio anuncia que estamos a chegar na estação de Santa Apolónia em Lisboa. Há evidências ululantes que trata-se de uma informação objetiva. Mas já que os deuses da leitura
são generosos, os próprios me lembram, através do aviso da moça, que estou prestes a enxergar a foz do doce Tejo provando o sal do Atlântico, nas mesmas águas por onde partiram para descobrir - por intenção ou acidente, tanto faz, livre interpretar é só interpretar - o que mais tarde vieram a chamar de Brasil.
Águas, sempre águas, tantas águas transbordam das palavras. Acho que Walter Hugo Mãe entrou nas minhas veias e não se perdeu.
quarta-feira, 20 de novembro de 2019
SABER LER
por José Guilherme Vereza
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