Quando
a inspiração chegou, a escritora ainda dormia. Eram nove horas de
sábado.
Keravnó,
o muso relutante, já estava habituado a escritores. Com o seu ar
vagamente monástico, a fazer lembrar Afonso Cruz, sentou-se num
cadeirão de canto e esperou. Eram quase onze horas quando a
escritora apareceu, mole e olheirenta, e foi logo para o computador.
— Estás
com pica para escrever?
— Ah,
que susto! — sobressaltou-se a escritora. — Olá! Sim, mas
primeiro vou enviar uns mails, ver as notícias e consultar as
entradas no meu site. É só uns minutos.
Três
quartos de hora depois, o muso voltou à carga, com bonomia:
— E
agora, podemos começar?
— Ó
pá, deixa-me só enviar mais uns mails.
— Mas
não tinhas já enviado?
— Já
te expliquei que eu envio mails de divulgação do meu último
conto publicado para milhares de endereços. E não posso enviá-los
todos logo, porque o sistema só permite cem de cada vez. E também
há um limite diário. Aguenta um pouco!
O
muso respeitou o envio de mais um pacote de divulgação. Logo
depois:
— Porque
é que não publicas um livro e já evitas esse trabalhão?
— Keravno,
as editoras não querem saber dos meus contos. É por isso que optei
pela divulgação virtual.
— ...vnó, Keravnó!
— corrigiu o muso. — Se calhar, é porque não prestam…
Comercialmente falando, claro!
— Ó
caríssimo transportador da inspiração — matraqueou a escritora
—, eu não preciso de sarcasmos desses! Mas Vossa Senhoria pode
atirá-los à vontade, sabe porquê? Porque os meus contos estão
fartos de ser reconhecidos em dezenas de concursos literários.
Concursos não mentem.
— Achas?
Queres dizer que comprovam que os teus contos têm qualidade?
— Quero
acreditar que sim. Só que as editoras não arriscam. Se eu fosse uma
figura pública era mais fácil. E também podia pagar uma edição,
mas as editoras depois querem que seja o escritor a vender os livros
aos amigos. E isso eu não quero. Prefiro enviar-lhes os contos de
graça.
— Já
pensaste em desistir?
— O
gozo que me dá escrever não tem igual. Sobretudo, saber que sou
lida. Desistir está fora de questão. As novas tecnologias
permitem-me contornar a barreira entre escritor e leitor que as
editoras, paradoxalmente, significam. Obtenho cerca de duzentas,
trezentas entradas em cada conto. Tomaram muitos livros ter esta
saída!
— Dá-te
gozo escrever ou ser adulada? Imagina que enviavas os mails e
ninguém te ia ler!
A
escritora baixou a cabeça, pensativa.
— Aí,
não sei! Agora não quero pensar nisso. Vou fazer uma pausa para
almoço.
— Mas
quando é que tu escreves?
— Tenho
tempo. Só quando tiver a história toda articulada na cabeça.
— Ok!
Mas toma atenção que não és o centro do mundo; tenho muita gente
à espera; cada vez mais…
Pelas
duas da tarde, Keravnó voltou à carga:
— É
agora?
— Oh,
agora estou mole. Deixa-me fazer uma pausa para ver a minha série.
Depois falamos: mas primeiro vou enviar mais cem mails.
Hora
e meia depois:
— E
agora?
— Oh,
que chato! Tá bem… Eh, pá, mas hoje não dá muito jeito. Tenho
que escolher o conto para um concurso que termina depois de amanhã.
— Isso
é rápido, não?
— Nem
por isso. Tenho de ver que número de páginas pedem, se o tema é
livre ou não. E, sobretudo, se exigem ineditismo. Se não exigirem,
tenho muitas dezenas de contos; já inéditos são menos de vinte.
Depois de escolhido, tenho de o voltar a ler com atenção. Há
sempre coisinhas para alterar. Olha, porque é que não voltas
amanhã? Aí víamos isso com calma.
— Vê
lá se não te arrependes…
No
dia seguinte, às nove da manhã, Keravnó apresentou-se ao serviço.
Instalou-se no cadeirão que já conhecia e entreteve-se a folhear a
Odisseia que estava por ali. A olheirenta e desgrenhada
escritora apareceu pelas onze e meia.
— Bom
dia! — cumprimentou o muso em tom festivo.
— Ai,
que parvo! Não me apareças assim.
— Vamos
à obra?
— Já
te disse: a primeira coisa é enviar mails, depois ver quantas
entradas tive no meu site, depois mais mails, depois
almoço, depois série. Depois… O que não falta são tarefas:
responder a quem me comentou, pesquisar concursos... Ó pá, hoje não
dá. Tenho de publicar um conto num site coletivo. Já sei que
conto vou publicar, mas tenho de revê-lo mais uma vez e escolher uma
imagem adequada para o ilustrar, geralmente, uma pintura. Volta
amanhã, se te der jeito! Mas só depois das sete, que amanhã é dia
de trabalho.
— Amanhã
não sei se posso, mas diz-me ao menos que tema pensas tratar. Também
tenho de me preparar!
— Não
desarmas; és incrível! Quero falar sobre a situação especial da
mulher; da sua traiçoeira condição física, digamos assim. Há
dias, pensando nisso, surgiu-me a ideia geral do tema: “enfrentar o
mundo com uma vagina”. Não sei de onde me veio a ideia.
Keravnó
sorriu subtilmente.
— E
é tudo?
— Tenho
vindo a desenvolver a ideia. De “enfrentar” adveio-me a ideia de
confronto, guerra, armas. E de como o espírito agressivo do homem
macho se alimenta da testosterona e da imagem potente do pénis. Para
o homem, o esplendor do seu pénis ereto só é comparável à majestade de uma espada refulgente erguida em glória. Ora o equivalente “feminino” da espada é… a
bainha. “Enfrentar o mundo com uma bainha” deverá ser o título,
para não ser tão sexualmente explícito.
— Interessante!
É por causa dessa ideia que andas a ler a Odisseia?
— Sim,
como é que suspeitaste? Lembrei-me da Penélope. Em que outra mulher
famosa é tão evidente a impotência física feminina, perante a
ausência da espada do marido? O que pode ela fazer com uma bainha?
Pode muito, mas não numa lógica de confronto e violência. Terá de
ser através da suavidade e da astúcia: a arma dos “fracos”. E é
a astúcia que Penélope vai usar. Mas amanhã falamos melhor. Tens
tempo?
— Se
já sabes o que vais escrever, escuso de cá vir…
— Tens
de vir! Entre esta ideia, que
nem sinopse é, e uma história intensa e luminosa
há uma multidão
de aspetos a criar e a articular. Vá lá! Não me abandones agora.
Preciso de um início que desperte curiosidade imediata, de uma trama
com peripécias engenhosas, mas verosímeis, de um clímax intenso e
de um final surpreendente e inspirador.
— Vamos
a ver... Às seis da tarde tenho uma miúda talentosa da Régua, que
está agora cheia de pica. Talvez ela se despache! Senão, começa
sem mim! Pelo menos, podes continuar a ler a Odisseia. A
pesquisa dá sempre bons resultados.
Joaquim
Bispo
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Este
texto foi um dos 20 selecionados no concurso literário do Motus —
Movimento Literário Digital, da Universidade Federal do Pampa
(UNIPAMPA) e integra — páginas 35 a 38 — o número #3 da revista
digital Motus de outubro de 2019.
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Imagem:
Egon Schiele, Nu feminino deitado, 1917.
Galeria
Moravská, Brno, República Checa.
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4 comentários:
Ideia extraordinária para contar uma história...
Obrigado!
Procrastinação é o meu nome do meio… :)
Podes continuar a enviar mails e publicar no face, mas acho que deves tentar uma editora!
Eu concordo com esta escritora: «as editoras não querem saber dos meus contos». Já várias disseram que os publicavam se eu pagasse a edição e arrastasse os amigos para comprarem os livros nas sessões de lançamento.
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