Fábio, de olhos fixos no ecrã, roía nervosamente a tampa da
caneta. Apontamentos, rabiscados em dezenas de folhas, estavam espalhados sobre
o tampo da secretária, por baixo dos cotovelos e sobre o teclado. No ecrã, as
linhas pretas sobre fundo branco, pareciam ondular e emitiam reflexos sobre as
lentes dos óculos. De tempos a tempos, ideias brotavam, através dos dedos para
as teclas e fundiam-se em frases, que se materializavam no texto.
Subitamente, uma dúvida assaltou-o e começou a rebuscar os
rascunhos, até que, pelo canto do olho, percebeu a presença encostada ao umbral
da porta.
Olhou, entre o surpreendido e o confundido para Eduarda que,
de braços cruzados, exibia uma expressão de desagrado.
— É... para ir jantar? — Perguntou hesitante e confundido,
se tinha feito algo errado.
— Era. Era mesmo para ir jantar. — A voz rouca dela era
firme e cheia de acusações. — Há mais de uma hora, quando te vim chamar e me
disseste que já ias.
— Uma hora?!? — Ele continuava confundido. — Chamaste-me?
Não ouvi...
— Sim, uma hora, Fábio Ferreira. Mais de uma hora que estive
à tua espera. Acabei agora mesmo o meu jantar… frio!
— Oh, meu amor, desculpa-me, mas eu... — Principiou a
desculpar-se.
— Sim, eu sei, tens esse teu maldito livro na cabeça e não
tens espaço para mais nada. Há mais de quatro meses que não pensas noutra
coisa... mesmo!
— … tenho de acabar este livro, enquanto não o fizer, não
consigo sequer dormir!
A posição dela alterou-se. Colocou as mãos atrás do corpo e
olhou para o chão enquanto se queixava baixinho:
— Não aguento mais isto…
— Por favor... — Ele ergueu-se e tentou abraçá-la, mas foi
sacudido de imediato. — Não vês que é uma fase? Assim que terminar o livro,
tudo será diferente.
— Diferente? Diferente até quando? Até ao próximo livro?
Achas que é fácil? Viver num mundo sozinha, em que tu estás de corpo presente,
mas com a cabeça sabe-se lá onde? Faço-te perguntas e não respondes ou
respondes tanto tempo depois que já nem sei do que falas. Há quanto tempo não
temos uma conversa sobre qualquer coisa? Passo refeições sozinha, a olhar para
televisão, sem saber o que está a dar... contigo a meu lado.
— Mas estou ao teu lado sempre que posso... Acusas-me de ser
lento a responder-te porque estou ausente e não te dou atenção. Para ti é
fácil, a tua cabeça está cheia de ligações ao mundo e ao ambiente que te
rodeia. A minha, está cheia de mundos e de vida interior... quando demoro a
responder, é porque já vivi uma vida inteira, entre a tua pergunta e a minha
resposta.
Ela olhou-o estranhamente e ele sorriu-lhe com tristeza
enquanto apreciava o cabelo claro, curto, que lhe dava um aspeto de rapazinho e
o rosto fino e sardento que ele tanto amava. Tentou acariciar-lhe o rosto, mas
ela evitou o contato.
— Ausente, sempre! — Concluiu ela. — Seja absorvido por um
livro, seja a escrevinhar com demência em qualquer papel, ou enclavinhado no
computador! — A voz alterada atenuou-se e as lágrimas pareciam querer explodir
nos olhos castanhos. — Onde estás tu, que não estás comigo? Que é que te leva
para esse mundo distante, onde eu não estou e não te faço falta?
— Não é verdade, que não me fazes falta! Eu amo-te, preciso
de ti e não posso viver sem ti!
— Para te lavar a roupa, arrumar a casa e... fazer amor...
quando te lembras. Quantas vezes dormiste, nessa secretária, só este mês?
Quantas vezes vieste gelado para a cama, já de madrugada, apenas para te
enroscares em mim e adormecer de imediato? Estou farta!
— Desculpa-me! Eu compreendo que não deve ser fácil para ti,
mas não consigo evitar. São os mundos, dentro da minha cabeça, milhões de
mundos, aos quais me ligo e me perco. Quando as ideias começam a fluir, é como
um transe onde visualizo cada cena, cada personagem, cada expressão. Tenho de escrever
tudo, antes que se vá. Antes que desapareçam para sempre, como farrapos de um
sonho aos primeiros raios da alvorada.
— Não posso mais! — Ela repetiu agora voltando-lhe as costas
e dirigindo-se para o quarto. — Fica-te com os teus mundos e não me
incomodes... eu vou arranjar, o que for preciso, para não te incomodar mais.
A porta do quarto estrondeou com força fazendo tremer os
vidros na cristaleira.
Ele quedou-se em pé, olhando o corredor e a luz que se
escoava por baixo da porta. Sabia que devia ir ter com ela, tentar compor as
coisas, a sua cabeça fervilhava de ideias, de coisas que precisava escrever.
Olhou para a secretária e, no chão, reluzia o apontamento que ele procurava.
Apanhou-o, sentou-se em frente ao computador e recomeçou a escrever.
A luz do sol entrava pelas aberturas das persianas. Fábio
dormia com a cabeça sobre a secretária, os óculos dobrados a marcar-lhe o rosto
e a boca aberta numa respiração pesada. Alguns papéis espalhavam-se pelo chão.
Eduarda, mala na mão, olhou-o uma última vez. As lágrimas
corriam-lhe livremente pelo rosto enquanto, por breves instantes, refulgiram
com aquele brilho que ele em tempos acendia neles. Depois, como que acordada de
um sonho, limpou as lágrimas com as costas da mão e pousou as chaves da casa,
na secretária ao pé do homem adormecido.
Caminhou, lenta, mas firmemente e saiu do apartamento,
fechando a porta com cuidado, para não acordar o marido.
Manuel Amaro Mendonça
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