Atouguia
era uma mulher neandertal que vivia na zona mais ocidental da atual
Península Ibérica, 29 mil anos antes do presente. A sua vivência
simples de recoletora, adaptada às condições climáticas de então,
foi certo dia marcada pelo terror de um feroz ataque de esguios e
sanguinários invasores. Fugiu, escondeu-se numa loca rochosa, ouviu
os gritos desesperados dos seus irmãos. Assistiu em agonia à morte
de todos os membros do seu clã, que, depois de esquartejados pelas
lâminas de sílex dos atacantes, foram comidos, numa orgia de sangue
e ferocidade, que durou vários dias. Obrigada pela fome a tentar
escapar, foi descoberta, apanhada e tornada alvo da turba cro-magnon.
Violada repetidamente em festim da carne viva, acabou por ser
poupada, não devido à alvura da pele da sua raça, mas à
intensidade rubra dos cabelos. Os recém-chegados passaram a ser os
seus donos e os novos senhores do seu mundo esfacelado. Tornou-se mãe
de uma criança mista, calada e estranha.
A
sua cria ainda durou quatro anos, mas, mais frágil do que as da sua
antiga tribo, acabou por morrer aninhada nos seus braços. Atouguia
sepultou-a na reentrância de uma falésia calcária, na zona do
Lapedo, com alguns mimos de conchas e ossos pintados de ocre e, entre
os joelhos, um coelho acabado de sacrificar. Depois, enlouquecida de
dor e desesperança, retirou-se para um monte chamado Berlenga e
pôs-se a profetizar desgraças para os seus captores e para a mãe
Terra, em grandes lamentos que lhe eram revelados — dizia. Este é
o rol das suas visões:
1 —
Sentada no mais alto dos penedos da Berlenga e embrenhada na minha
dor, lastimava a lonjura infinita do mar, quando ouvi uma voz potente
atrás de mim. Voltei-me mas só vi uma névoa que parecia o meu pai.
Ele falou lenta, mas profundamente, em frases cortadas por silêncios:
2 —
Eu vejo o mal que vai assolar o mundo. Vejo turbas em fúria, vejo
grandes tribos ser dizimadas, vejo a mãe Terra negar o alimento aos
famintos. Aqueles que agora se banqueteiam com as nossas carnes
amargarão a crueza da sua violência. Esta Terra que foi sempre mãe
solícita e generosa, vai negar-lhes o úbere.
3 —
Durante muito tempo, andarão enganados, iludidos pela sua própria
expansão. Crescerão, invadirão campos e mares, expulsarão os
seres irmãos dos territórios que cobiçam. Serão tantos que a
Terra será incapaz de os alimentar. Apertarão o úbere da Terra até
o esmagar, mas ele não verterá uma gota.
4 —
Pragas envolverão as suas aldeias e tornarão arenosas as planuras.
Querendo mais comida para si, espalharão venenos para debelar as
pragas que lhes roubarão um resto de sustento. Matarão assim também
os insetos úteis e não haverá pólenes a passar de flor em flor.
Não haverá mais frutos, nem mais árvores novas, nem mais comida
para os animais.
5 —
Grandes incêndios engolirão florestas e matos e não restarão
animais que eles possam caçar. Quando pensarem descansar, não terão
sombras em que se refrescar, o sol queimará as suas peles e não
terão descanso. Doenças e maleitas corroerão as suas entranhas e
vomitarão os fígados, os bofes e as tripas. Fugirão para lá dos
mares, mas o panorama será igualmente desolador.
6 —
Vão-se arrastar nas campinas, tentando roer as ervas esparsas, mas
elas serão amargas e envenenarão os seus ventres; em vão,
percorrerão as margens dos rios e do mar, em busca de vermes e
bolores, mas nada haverá que lhes mate a fome, nem água sã que
lhes mate a sede.
7 —
Os mananciais envenenados serão aterrados e secarão. Alucinados por
pestes e epidemias deitarão as culpas aos seus semelhantes e eles
próprios se dizimarão. As tribos famélicas e enlouquecidas
enfrentarão outras tribos e os cadáveres insepultos secarão ao
sol. Nem os abutres lhes quererão arrancar qualquer pedaço das
carnes venenosas.
8 —
As hecatombes serão diárias. Por fim, será tão evidente a
insensata vida que escolheram que muitos se arrependerão, mas será
tarde. A mãe Terra será um local morto. E terá de voltar a
esforçar-se sozinha para recuperar do cataclismo que esta vil
espécie Lhe infligiu.
9 —
Esta é a revelação feita a Atouguia, que desvela o futuro da
Terra. Ouvi!
Joaquim
Bispo
*
Por
seleção em concurso literário, este texto integra a
coletânea "A Arte do Terror —
Volume 6 ou Apocalipse", projeto
da editora Elemental Editoração.
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Imagem:
Fernand Cormon, Caim fugindo
perante a maldição de Jeová,
1880.
Coleção
Museu
d'Orsay, Paris.
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5 comentários:
O que não falta são profetas da desgraça! Então, em seitas, ou outro que queiram chamar, religiosas... é "a dar com um pau!"...
Mas, (e esse é que é o problema, o "mas"), um dia, como tem sempre acontecido, em relação a outros acontecimentos, tais como prever a ascensão de um líder, a vinda de um profeta, a queda de Roma, uma guerra, etc., um acerta! E aí é que serão elas!...
Tratamos tudo como “espuma dos dias”, e ainda bem, porque só merece crédito o que for apoiado em factos e dados incontroversos, isto é, científicos, e ainda assim… Há que nos precavermos da pseudo-ciência.
A questão é que as pessoas parecem sentir uma estranha atracção pelos arautos do apocalipse, e, especialmente, pelo Apocalipse, em si.
Uma estranha, profunda e, para mim, inexplicável atracção pelo Abismo, pelo desastre, sangue, destruição, etc. Basta vê-los, por exemplo, na estrada, salivando em face a um acidente. Assim também fascinados pelo Apocalipse, e seus arautos...
A pré-História é o período da existência da humanidade anterior à escrita. E o autor imagina uma profecia que não poderia ter chegado a nós porque não havia escrita naquela época, mas o texto fala de forma poética dos males que a humanidade sofre hoje e de suas consequências se não adotarmos um estilo de vida que respeito mais o meio ambiente.
Um texto brilhante.
Obrigado, Edson! Infelizmente, parece inevitável o caminho que trilhamos.
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