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domingo, 25 de agosto de 2019

O Apocalipse de Atouguia


(Sibila neandertal)


Atouguia era uma mulher neandertal que vivia na zona mais ocidental da atual Península Ibérica, 29 mil anos antes do presente. A sua vivência simples de recoletora, adaptada às condições climáticas de então, foi certo dia marcada pelo terror de um feroz ataque de esguios e sanguinários invasores. Fugiu, escondeu-se numa loca rochosa, ouviu os gritos desesperados dos seus irmãos. Assistiu em agonia à morte de todos os membros do seu clã, que, depois de esquartejados pelas lâminas de sílex dos atacantes, foram comidos, numa orgia de sangue e ferocidade, que durou vários dias. Obrigada pela fome a tentar escapar, foi descoberta, apanhada e tornada alvo da turba cro-magnon. Violada repetidamente em festim da carne viva, acabou por ser poupada, não devido à alvura da pele da sua raça, mas à intensidade rubra dos cabelos. Os recém-chegados passaram a ser os seus donos e os novos senhores do seu mundo esfacelado. Tornou-se mãe de uma criança mista, calada e estranha.
A sua cria ainda durou quatro anos, mas, mais frágil do que as da sua antiga tribo, acabou por morrer aninhada nos seus braços. Atouguia sepultou-a na reentrância de uma falésia calcária, na zona do Lapedo, com alguns mimos de conchas e ossos pintados de ocre e, entre os joelhos, um coelho acabado de sacrificar. Depois, enlouquecida de dor e desesperança, retirou-se para um monte chamado Berlenga e pôs-se a profetizar desgraças para os seus captores e para a mãe Terra, em grandes lamentos que lhe eram revelados — dizia. Este é o rol das suas visões:

1 — Sentada no mais alto dos penedos da Berlenga e embrenhada na minha dor, lastimava a lonjura infinita do mar, quando ouvi uma voz potente atrás de mim. Voltei-me mas só vi uma névoa que parecia o meu pai. Ele falou lenta, mas profundamente, em frases cortadas por silêncios:
2 — Eu vejo o mal que vai assolar o mundo. Vejo turbas em fúria, vejo grandes tribos ser dizimadas, vejo a mãe Terra negar o alimento aos famintos. Aqueles que agora se banqueteiam com as nossas carnes amargarão a crueza da sua violência. Esta Terra que foi sempre mãe solícita e generosa, vai negar-lhes o úbere.
3 — Durante muito tempo, andarão enganados, iludidos pela sua própria expansão. Crescerão, invadirão campos e mares, expulsarão os seres irmãos dos territórios que cobiçam. Serão tantos que a Terra será incapaz de os alimentar. Apertarão o úbere da Terra até o esmagar, mas ele não verterá uma gota.
4 — Pragas envolverão as suas aldeias e tornarão arenosas as planuras. Querendo mais comida para si, espalharão venenos para debelar as pragas que lhes roubarão um resto de sustento. Matarão assim também os insetos úteis e não haverá pólenes a passar de flor em flor. Não haverá mais frutos, nem mais árvores novas, nem mais comida para os animais.
5 — Grandes incêndios engolirão florestas e matos e não restarão animais que eles possam caçar. Quando pensarem descansar, não terão sombras em que se refrescar, o sol queimará as suas peles e não terão descanso. Doenças e maleitas corroerão as suas entranhas e vomitarão os fígados, os bofes e as tripas. Fugirão para lá dos mares, mas o panorama será igualmente desolador.
6 — Vão-se arrastar nas campinas, tentando roer as ervas esparsas, mas elas serão amargas e envenenarão os seus ventres; em vão, percorrerão as margens dos rios e do mar, em busca de vermes e bolores, mas nada haverá que lhes mate a fome, nem água sã que lhes mate a sede.
7 — Os mananciais envenenados serão aterrados e secarão. Alucinados por pestes e epidemias deitarão as culpas aos seus semelhantes e eles próprios se dizimarão. As tribos famélicas e enlouquecidas enfrentarão outras tribos e os cadáveres insepultos secarão ao sol. Nem os abutres lhes quererão arrancar qualquer pedaço das carnes venenosas.
8 — As hecatombes serão diárias. Por fim, será tão evidente a insensata vida que escolheram que muitos se arrependerão, mas será tarde. A mãe Terra será um local morto. E terá de voltar a esforçar-se sozinha para recuperar do cataclismo que esta vil espécie Lhe infligiu.
9 — Esta é a revelação feita a Atouguia, que desvela o futuro da Terra. Ouvi!

Joaquim Bispo

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Por seleção em concurso literário, este texto integra a coletânea "A Arte do Terror Volume 6 ou Apocalipse", projeto da editora Elemental Editoração.
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Imagem: Fernand Cormon, Caim fugindo perante a maldição de Jeová, 1880.
Coleção Museu d'Orsay, Paris.

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5 comentários:

O que não falta são profetas da desgraça! Então, em seitas, ou outro que queiram chamar, religiosas... é "a dar com um pau!"...
Mas, (e esse é que é o problema, o "mas"), um dia, como tem sempre acontecido, em relação a outros acontecimentos, tais como prever a ascensão de um líder, a vinda de um profeta, a queda de Roma, uma guerra, etc., um acerta! E aí é que serão elas!...

Tratamos tudo como “espuma dos dias”, e ainda bem, porque só merece crédito o que for apoiado em factos e dados incontroversos, isto é, científicos, e ainda assim… Há que nos precavermos da pseudo-ciência.

A questão é que as pessoas parecem sentir uma estranha atracção pelos arautos do apocalipse, e, especialmente, pelo Apocalipse, em si.
Uma estranha, profunda e, para mim, inexplicável atracção pelo Abismo, pelo desastre, sangue, destruição, etc. Basta vê-los, por exemplo, na estrada, salivando em face a um acidente. Assim também fascinados pelo Apocalipse, e seus arautos...

A pré-História é o período da existência da humanidade anterior à escrita. E o autor imagina uma profecia que não poderia ter chegado a nós porque não havia escrita naquela época, mas o texto fala de forma poética dos males que a humanidade sofre hoje e de suas consequências se não adotarmos um estilo de vida que respeito mais o meio ambiente.
Um texto brilhante.

Obrigado, Edson! Infelizmente, parece inevitável o caminho que trilhamos.

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