A casa grande, com quatro quartos e quintal e varanda. Jardim e horta em comunhão sem hóstia. No chão, o brilho-fruto de todos os panos esfregados diariamente pelos braços de veias saltadas. A vida inteira limpando para os outros. Para a mulher de salto alto, para o homem de sapatos de cadarço, para o rapaz de tênis, para a menina de botas. Pisadas grandes, pequenas, tortas, transformando em barro as poças de sabão que ela mal termina de esparramar pelo piso. Um bom-dia esquálido. Três, quatro indiferenças despercebendo a sua presença acima da superfície do assoalho sempre sujo, da cozinha sempre suja, dos banheiros sempre sujos. Dia 1, dia 2, dia todos. Até hoje, dia de acabou. De ir embora sem olhar pra trás. Que ela não é boba como a esposa de Ló. Olhar pra quê? Pra quem? É para frente que ela olha e busca. O gozo se antecipando na cabeça. A imagem da casa comprada pelos filhos. Com cama de rainha e chuveiro quente. Redondo e largo como um prato branco. Com geladeira de dois andares. Tudo em 12 vezes no Magazine Luiza. Com jardim na frente. Em cores mais bonitas que as cores das aquarelas penduradas nas paredes da casa dos patrões — e que ela nem sabe que se chamam aquarelas. Pinturas, quadros. Gostou deles a vida toda assim, com esses nomes mais simples. Mas o jardim dela é mais lindo. E vai ficar ainda mais, agora que ela pode cuidar de tudo sem pressa. Pra que pressa? O sonho na cabeça, tão bom que já nem é mais pra frente que ela olha e busca: é pra dentro. A dor no peito, tão forte que ela não acha mais ar. A mão suja de sangue pressionando o estômago que a bala perdida estraçalhou. A cortina dos olhos se fechando a contragosto. Apagando todas as aquarelas.
2 comentários:
Coisa mais linda! Fundo!
Obrigada, Silvia!
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