“Deixai que os mortos sepultem os seus mortos”.
(S. Lucas IX: 60)
“O homem morto ainda é, de certo modo, homem social.”
(FREYRE, Gilberto. Sobrados e
Mucambos. 10ª edição. Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 1998, pág. LIX)
Naquele dia, a página dos obituários estampava um anúncio
como há muito não se via. Ocupava três quintos da página e anunciava o
falecimento de um senador da República, descendente de senhores de engenho,
irmão gêmeo do cardeal, acionista majoritário do maior banco privado do estado,
empresário da indústria têxtil, cunhado do prefeito, pai de uma top model,
enfim, um homem que, mais do que pertencer à nata da sociedade, sentia como se
fosse ela que a ele pertencesse como a nata do leite de sua melhor vaca cujo
nome só o ordenhador saberia, se tivesse se dado ao trabalho de nomeá-la.
Decretou-se no estado luto oficial por três dias e o carro de bombeiros que
levava o ataúde ao cemitério foi seguido por um verdadeiro cortejo de limusines
que transportavam pela avenida principal não só os Três Poderes em peso mas
quase todos os colunáveis da região. Um exército de jornalistas tudo
documentava.
Diante do grande mausoléu onde o corpo seria guardado até o
final dos tempos ou da nossa civilização (o que viesse primeiro), as lentes da
imprensa salivavam. Enfim, após nove longos anos de espera, aquelas portas se
abririam para o gozo dos leitores das colunas sociais e glória dos artistas
locais. Aquela enorme construção na área nobre do cemitério, com sua austera
fachada toda em mármore, ornamentada com motivos vegetais em estuque (bem ao
estilo art-nouveau, como era moda na
época do Segundo Império) e vitrais que só poderiam ser vistos em todo o seu
esplendor do lado de dentro, despertava a curiosidade de quem passasse por
aquelas aléias. Os fotógrafos veteranos ainda se lembravam do grande
acontecimento que foi a abertura daquelas portas para os periódicos locais nove
anos antes, quando do falecimento da esposa do agora sepultando: os velhos
exemplares da revista, cuidadosamente guardados nos arquivos dos editores e
disputadíssimos entre os amantes das artes, registravam em cores o brilho dos
grandes vitrais: na parede leste, banhados pelo sol: à esquerda, o vaivém dos
anjos na escada sonhada por Jacó; à direita, Lázaro saindo de seu túmulo ao
ouvir o chamado do Nazareno; na parede Oeste, o pobre Cristo sendo deposto no
túmulo do rico Arimatéia, e um outro, com o Filho de Maria novamente vivo,
mostrando suas feridas a S. Tomé, obras não muito anteriores à República, segundo
especialistas. Na parede Norte, estrategicamente localizado para ser banhado
ora pelas luzes coloridas dos vitrais que saúdam o sol nascente, ora pelas
cores dos que se despedem dos dias passados que se acumulam sobre a memória dos
mortos, um pesado altar de jacarandá do século XVIII, encimado por castiçais de
prata, para lembrar a necessidade de algumas preces entre luxos e lágrimas, à
direita do busto de mármore que cobre, no centro da parede, o jazigo do
ministro do Segundo Império que ordenou a construção daquela suntuosidade. No
teto, um afresco datado de 1928, retratando, como anjos prediletos da Virgem
Santíssima, três membros da família mortos na mais tenra infância: uma menina
morta em 1870 pelo sarampo; um menino picado por uma serpente, hóspede
indesejada do latifúndio familiar, em 1900; um outro que se afogara no lago da
fazenda em 1927, sobrinho-neto daquela vítima do sarampo. Tanto sucesso fez
essa foto que uma gráfica pediu autorização para reproduzir aquelas figuras
como se fossem românticos cupidos para ilustrar cartões para o dia dos
namorados, no que concordaram os proprietários da obra, desde que se
registrasse no verso ter sido a concessão cortesia da família, que cedia os
seus direitos para uma instituição de caridade, limpando, assim, sua
consciência da culpa da profanação e assegurando aos consumidores os seus mais
pios sentimentos. O que ainda não se vira, e era o motivo da apreensão daqueles
profissionais, era o comentadíssimo e inédito mosaico que, sabia-se, o senador
encomendara a um renomado artista da cidade, retratando sua defunta esposa no
Céu, aprendendo música com Santa Cecília.
Terminados os discursos, qual não foi a surpresa de todos
quando a top model em prantos, depois
de posar para as lentes com a chave na fechadura, percebeu que ela não era
necessária, que alguém soubera violar aquele templo da saudade serrando a
tranca que fechava a porta dupla. O susto a fez esquecer a solenidade do
momento e atirar-se bruscamente para dentro do santuário familiar.
Não se ouviu mais que o ruído ininterrupto das máquinas
fotográficas quando as portas foram escancaradas e os flashes iluminaram
a figura esfarrapada de um mendigo dormindo sobre a sepultura de um antigo
prefeito, primo do sepultando. E, junto à parede do comentado e inédito mosaico,
sobre o jazigo da virtuosa dama que esperava juntar-se ao consorte, coçava-se
um vira-lata, companheiro único do indesejado inquilino. Espalhados pelo chão,
alguidares de barro e garrafas de aguardente que deveriam ter contido oferendas
e despachos feitos à noite no cemitério e pareciam ser o alimento principal
daquele indigente.
Irritado pelos flashes,
o cão pôs-se a latir e acabou por despertar o seu dono que, primeiro, abriu os
olhos, logo agredidos pelas luzes dos flashes
que nunca vira e do Sol que aprendera a evitar. Expulso do mundo dos sonhos,
demorou a erguer-se e pareceu fazer um enorme esforço para compreender o que
estava acontecendo. Lentamente pôs-se de pé e, visivelmente alcoolizado,
precisou apoiar-se no altar de jacarandá para equilibrar-se.
Ao homem, cujo rosto mal se distinguia coberto por longos
cabelos revoltos e pela barba vasta e hirsuta, não se podia atribuir outra
idade que a da solidão sem data, nem outra linguagem que a da insociabilidade
imemoriável. A sua pele coberta por uma crosta cinzenta de poeira assentada
sobre a argamassa do suor e o sexo que emergia de suas calças rotas eram toda a
sua biografia. O vento que levava para dentro o perfume das coroas de flores
era o único eufemismo na epístola de sua condição.
Os olhos negros do marginal fixaram-se na íris azulada da
herdeira e, por alguns instantes, ambos tentaram entender como eram possíveis
suas diversas existências. Cada um recuou para o seu lado um passo e o cortejo
fúnebre avançou dois. Os lábios dela se abriram, o braço direito ergueu-se
tentando apontar para fora; os dedos encardidos dele empunharam um castiçal.
Quando a palavra por ela fosse dita, o arremesso por ele seria feito.
Tranqüilo, o morto esperava. Os carregadores estavam impacientes.
Ela notou que os braços da aparição eram finos como os do
senador quando o câncer, paciente,o roía e, após cada noite de insônia no
hospital, o olhar com que a recebia era o mesmo daquele zumbi. A solidão é irmã
da morte.
Olhou para o intruso à sua frente: o rosto dele afirmava;
olhou para o pai no esquife: o rosto dele negava; olhou para os carregadores:
os seus rostos exigiam; imaginou seu próprio rosto: ela própria temia. E em
meio a tanta gente, todos eles estavam sós, presos às suas fisionomias. A
solidão nos une.
Pela boca batonizada saiu uma leve corrente de ar, prenúncio
de um fonema constritivo, acredito que um / f /. Os lábios se conizando
como uma flor ou um beijo não completaram o sopro, que deveria ser seguido por
uma vogal: ó... A sílaba foi abortada porque que utilidade haveria em
pronunciar aquele “fo”, que teria de ser seguido por um “ra”, igualmente
inútil? Compor-se-ia a palavra e, se com palavras Deus criara o mundo em seis
dias, as palavras ali ditas em nada mudariam aquele mal-estar-no-mundo. A
solidão é o silêncio imperativo.
Atrás dela, um segurança de um deputado contraiu a
impaciência dos carregadores (A solidão é ansiosa. A ansiedade contagia) e
adiantou-se vinte passos em direção aos antagonistas, tomando o único partido
que um homem acompanhado de sua gravata poderia tomar naquele momento:
oferecer, lancelótico, sua força à rica órfã. Junto a ela se postou. Eram mais
dois olhos interrogando o intruso. A solidão é interrogativa.
O segurança era muralha protetora, mas, diferente daquela de
Tróia, não se posicionava em torno da protegida, tanto não podia o seu corpo,
que não era extenso como o de uma jibóia, apenas desta tinha as cores: o
negro-solenidade, combinando com os óculos escuros daquela tonalidade
não-me-encare; o colarinho branco-oligarcófilo, os punhos branco-impunidade. A
muralha de Tróia foi erguida por Possido, como sabem todos os que amam Homero.
Aquela muralha de músculos ali fora postada por uma entidade que não ousa dizer
seu nome, cujo poder emana do povo, em seu nome é exercido mas dela o povo
pouco sabe. A muralha de Tróia contentava-se em defender. As muralhas
homens, jagunços da pós-modernidade, também ameaçam. As muralhas não falam. A
solidão está sentada sobre elas e as acrescenta: ela é a muralha involuntária.
A sombra do homem-muralha projetou-se no chão e a mulher pôde
ver, com a clarividência das Sibilas, que uma solidão aproximara-se da sua e
somara-se a ela mais um peso a pressionar a solidão andrajosa a fitá-la. Seu
braço estendeu-se e tocou a muralha. Fez fronteira, pois a muralha estava
disposta a avançar. A solidão é ímpeto, avanço e recuo.
A solidão é o arché, o Gênesis indescritível. A
solidão do útero prepara-nos para as solidões da vida, solidão adiada que
procria. Aquele sujo sexo procriava? O sexo lembrou-lhe outro sexo, e outro, e
outro, e outro, e outro, e outro, e outro e palavras de amor, e sensações de
gozo, solidão ereta a invadir, sedenta, a solidão úmida, solidão ejaculante,
solidão líquida, fecundante, solidão negada, companhia indesejada, companhia
abortada, solidão culpada, solidão defendida, solidão necessária, solidão
antimaterna, o sorriso debaixo do bigode derretendo a solidão, sorriso de
dentes perfeitos, o intruso tinha dentes?, ou sorria pelo sexo?. Teve nojo
daquele sexo, tão sujo, parecido com aquele outro, tão limpo. Meu Deus, como
eram parecidos! É a sujeira que distingue? Teve nojo dos homens. A solidão é
promíscua e casta. E o arché que não se cumpre? O feto solitário na
lixeira. A miséria é o maior dos abortos. Que vontade de vomitar-se! Na muralha
amparou-se. A solidão fragiliza sem
permitir eufemismos, apocalipse.
A plácida solidão do defunto insultava, sutil, as solidões
dos vivos. A ansiedade é o sétimo sentido dos vivos, sentimento do tempo que
nos consome enquanto o consumimos. O sangue nas veias não quer parar, corre por
todo o corpo em busca da alma que busca, sufocada, outras almas. A solidão é
vida e asfixia.
O segurança há muito decidira-se e esperava dela uma decisão.
O tempo os empurrava na mesma velocidade da translação da Terra. Meu Deus, por
que aquele esqueleto tinha de viver ali, entre os seus mortos? E quando ela
morresse teria também de conviver com ele? Será que nem na morte se pode estar
só? Que morrer é isso: estar só, cegada e sossegada. Mas como, se o mausoléu
fora invadido por um morto que insistia em viver? A morte ali nunca mais seria
a mesma.
A morte interroga a
vida. Até então vivera só cegada. Agora a morte dava-lhe em vida os olhos que
nega aos mortos e obrigava-a a ver.
Homem-solidão, noite ambulante, tristeza com barbas, lágrima
sólida, cadáver que anda, vergonha da Pátria, órfão da Receita, idem da
Bandeira, inverno humano, bípede angústia, desengano mudo, jornal sem papel,
estômago nu, língua aposentada, nome indizível, saudade do sim, niilismo
andante, fé posta em dúvida, Direito em xeque, Estado rachado, setembro sem
sete, outubro sem doze, dezembro sem crédito, por que tu existes?, pergunta sem
fala, tu sem eu nem nós.
O pária nada tem a declarar exceto no olhar a perplexão de
invadido ver o ocupado vácuo que preenchera, solitário vivo-morto entre mortos
revividos pelas ruas e praças batizadas com os nomes que tais ossadas foram.
Vítima acuada da invasão, minoria esmagada pelo enorme peso dos olhos e das
câmeras intrusas, à parede encosta-se e segue, braços erguidos, rumo à luz
triste do Sol que denuncia sua miséria para os olhos cegos da cidade, mais só
que o Nazareno coroado de espinhos, de inimigos e de fiéis, no alto do madeiro,
circundado.
Todos, silenciosos, voltaram-se para ver, aliviados, aquele
vulto desgracioso e desgraçado desaparecer na extrema curva do caminho extremo.
Estavam salvas família, tradição e propriedade.
O esquife foi depositado no jazigo enfim aberto como o baú de
um tesouro pirata numa ilha deserta. E o que era aquele edifício senão um
outeiro a mais numa ilha de morte cercada de vida por todos os lados? Sendo que
muitas vidas não podiam ser tão belas quanto aqueles depósitos de ossos. A dela
própria, será que valeria mais que aquelas flores de estuque que adornavam a
fachada, ou, quando para lá fosse recolhida, precisaria daquelas flores pétreas
para adornar a sua memória esmaecente? Encostada a um anjo, dialogava com o
silêncio.
Um a um foram saindo os colunáveis, junto com eles a maioria
dos repórteres. Um fotógrafo ainda voltou-se e tirou uma fotografia sua,
daquele jeito sentada, abraçando os joelhos, como já a tinham visto anunciando
o jeans de uma famosa grife. A pose era a mesma, diversos só o cenário e
a expressão de seu rosto, mas a pose ficou bem natural, essa e outras eram seu
hábito. O fotógrafo foi se afastando, mas na porta demorou-se mais um pouco.
Por certo, queria registrar uma lágrima. Ela já tinha perdido o hábito de
chorar, mas, para não prendê-lo mais ali (devia ter mulher e filhos à sua
espera), esforçou-se e fez rolar uma para agradá-lo. Ele a clicou, satisfeito,
e se foi. Não era-lhe difícil agradar fotógrafos. Enfim, comprara sua
privacidade. Finalmente, estava só.
Sentada num jazigo próximo ao do pai, um sem-número de flores
aos seus pés, pôde enfim ouvir aquele estranho som da solidão: aquele som das
distâncias: um carro que freia lá longe, muito longe, para além do portão do
cemitério, o motorista xingando a mãe do pedestre descuidado que quase
atropelara, depois um carro de som fazendo o anúncio de uma imobiliária e,
perto, bem perto, o vento acariciando os flamboyants em flor que
ornamentavam a alameda principal da necrópole. Os olhos fechados, procurou imaginar
o ruído que cada uma daquelas pétalas faria ao chocar-se com os troncos das
árvores, o mármore das sepulturas, as roupas dos coveiros que abriam, lá longe
– ela o vira momentos antes – uma cova
na ala dos indigentes. Esses ruídos os insetos devem conhecer. Mas era o seu
desejo ficar ali, longe daquele grande mundo dos humanos, colar o ouvido à
terra até ouvir o marchar das tropas de formigas, prontas para atacar com igual
fúria e apetite o indigente cuja cova se abria e a musa de um certo poeta que a
cidade aplaudia. Talvez, ouvindo os insetos, pudesse descobrir os caminhos mais
estreitos da geral existência, aqueles que todos um dia terão de trilhar.
Mas o caminho dela, no momento, era voltar para a limusine,
chorar calada no banco de trás e deixar que o motorista a levasse de volta para
a mansão, dizer às empregadas que não estava para ninguém, trancar-se em
prantos no seu velho quarto de menina rica e deixar que elas agradecessem em
seu nome todas as ligações de pêsames. Mas não tinha vontade de regressar. Nem
telefones, nem e-mails ou telegramas. A solidão é a melhor companhia para o
luto. Mesmo quando se ama. A cabeça que chora reclinada no ombro de alguém é
uma cabeça solitária porque a dor é indivisível. Isso seria seu quarto, mesmo
se tivesse um ombro onde chorar: uma ilha cercada de telefonemas. E seu lugar
não era mais entre telefonemas de condolências.
Os diamantes líquidos que cortavam a maquiagem de seu rosto
caíam duros numa faixa de pêsames, assinada por um partido aliado. Ela agora
queria verdadeiros aliados. Assim saberia estar demarcado seu lugar entre os
vivos. Pois o silêncio que, devagar, a acalmava, depressa a lembrava que não
podia ficar entre os mortos. E ela teve dúvida se aqueles mortos ainda eram
seus. Por isso, ao sair, não fechou a porta.
A chuva já caía copiosa quando ela chegou ao carro.
_ Até que enfim, patroa. Eu já estava preocupado. Vai para
casa?
_ Não, Jarbas. Para uma igreja. Preciso rezar. E você tome
este dinheiro, compre uma vela grande, de mel, de vinte e um dias. Acenda-a
perto do anjo que tem nas mãos o texto do profeta Oséias: “Onde está, ó morte,
teu aguilhão?” [1] Mais
tarde, ele sentirá o perfume, verá a luz e voltará.
_ O senhor seu pai?
_ Ele também, Jarbas. E não feche a porta, para que não
separe o homem o que Deus juntou.
(Iniciado
em 4 de agosto e concluído em 11 de setembro de 2005, tendo o segundo parágrafo
sido escrito em 2 de dezembro de 2005, na tentativa de uma segunda versão
abortada pelo autor: salvou-se esse parágrafo substituindo o segundo da primeira
versão; citação de Gilberto Freyre inserida em 14 de dezembro de 2006; versão
final em 12 de julho de 2007, na cidade de São Gonçalo, RJ.)
Em tempo: é preciso repudiar o atentado contra os índios Waiapi no Norte do Brasil. O Estado brasileiro é cúmplice por ação ou por omissão no genocídio contra os povos originários.
0 comentários:
Postar um comentário