Naquela
altura,
praticávamos geocaching, para tornar o exercício ciclista mais motivador. Ir à procura das
caixinhas escondidas em locais aprazíveis, ou só curiosos, através
da sua localização GPS, obrigava-nos a pedalar para chegar aos
locais indicados no respetivo site da Internet, mas sem a carga de exercício físico obrigatório que o
andar de bicicleta tinha tido até então. Isto, porque pedalávamos,
quase diariamente, uma dezena de quilómetros, não tanto pelo gosto,
mas para manter alguma forma física, aconselhável a um casal
sexagenário.
Naqueles
dias de férias, a nossa base era a Praia de Vieira de Leiria, uma
localidade muito animada, em época de veraneio, mas que naquele
meado de um setembro invulgarmente nebuloso, mesmo para aquelas
paragens litorais, perdera parte do bulício habitual. No primeiro
dia, fomos à procura de uma cache escondida junto ao parque de campismo da Praia de Pedrogão. Era um
pequeno tupperware com um boneco pokemon e um caderninho minúsculo — coisa de miúdos. Assinámos: “Rolling
biker 56” — o meu nickname — e “Fiftie Agnes” — o da minha companheira Inês.
No
dia seguinte, fomos para sul, para encontrar, junto ao farol de São
Pedro de Moel, num buraco da falésia em que pescadores amadores se
empoleiram para lançar as linhas ao mar, uma caixa de VHS com três
florinhas secas e um pequeno texto: «Este farol chamado “do Penedo
da Saudade” foi construído no promontório onde, segundo a lenda, a
duquesa D. Juliana Máxima de Faro, dona destas terras, vinha, através destas flores chamadas “Saudades” e que só aqui
crescem, relembrar o marido, mandado executar pelo rei D. João IV,
no século XVII.» Assinámos também o registo, conforme a norma.
No
terceiro dia, rumámos a norte, para a zona da Lagoa da Ervedeira — zona bonita e ainda arborizada, felizmente poupada aos grandes
incêndios de 2017. Não foi fácil encontrar a cache escondida num pinhal, uns quilómetros depois. Até aonde a vista
alcançava, a paisagem, que acompanhava a ondulação arenosa do solo,
era um mar lúgubre de pinheiros queimados, com os seus braços
negros e nus pedindo clemência. Com eles, ardeu, provavelmente, a
caixinha que procurávamos. Decidimos que só podia ser um resíduo
plástico calcinado que encontrámos no local que as coordenadas GPS
indicavam, junto a um tronco queimado. Como passava pouco das três
da tarde, resolvemos continuar para uma cache escondida na Praia do Osso da Baleia, a uns doze quilómetros,
segundo indicava o GPS.
Pedalar
com um objetivo definido é bem mais fácil do que fazê-lo para
cumprir um número de quilómetros definido. Como, além disso, as
autarquias dotaram toda aquela zona costeira de ciclovias ao longo
das estradas principais, o nosso exercício podia ser um passeio
aprazível, apesar do céu nublado; infelizmente, o aspeto desolador
da paisagem acabrunhava-nos. Os pinheiros, já de si retorcidos por
ação dos ventos marítimos, assim reduzidos a troncos negros
sugeriam formas espectrais inquietantes. Pedalávamos calados, de
olhos no ecrã de GPS, lançando olhares apreensivos à multidão
tétrica e torturada que nos envolvia.
Entretanto,
lembrámo-nos do crime horrendo que aconteceu naquela mesma praia há
uns trinta anos, em que um tipo, aparentemente normal e integrado,
matou a mulher, a filha e mais cinco amigos com quem estava a
confraternizar na praia. O que fará alguém enlouquecer de um
momento para o outro? Que transtorno mental invadirá o cérebro de
uma pessoa e a fará não reconhecer os seus próximos, ou,
reconhecendo-os, odiá-los ao ponto de os matar à machadada? Ainda
que incomodados com a evocação, decidimos que não havia,
atualmente, nenhum motivo para evitar aquela praia e falhar o nosso
objetivo.
A
Praia do Osso da Baleia não tem uma povoação associada, não tem
um restaurante nem um bar, nada. Pelos vistos, não passa daquela
enorme extensão de areia, na altura, nevoenta, apoiada por um
pequeno parque de estacionamento, então, deserto. O GPS
fez-nos subir a duna baixa que nos separava da praia e caminhar uns
trezentos metros para sul, mas nada havia ali, além de areia, naquela base de duna a cem metros
da água. No entanto, o localizador por satélite era claro: «Chegou
ao seu destino!».
Depois de uma inspeção mais atenta, descobri uma pequena ponta
negra a emergir da areia. Ali comecei a escavar com o canivete suíço,
que anda sempre comigo. Não tardou que embatesse em algo rígido,
que retiniu. Parecia um antigo frasco de compota ou de azeitonas e
estava enterrado no que poderiam ter sido os restos de uma fogueira.
Olhámo-nos sem dizer nada, a apreensão no olhar.
O
interior era visível e mostrava apenas o que parecia uma pequena
placa óssea. Abrimos o frasco e percebemos que a placa estava
esgrafitada. Consegui ler: «Nós que aqui estamos», de um lado e
«por vós esperamos», do outro.
O
choque destas palavras tão simples, mas tão simbólicas, que
aparecem escritas em cemitérios e “alminhas” um pouco por todo o
país, foi brutal. Naquele momento, por coincidência, correu uma
brisa fria e pareceu-nos que o nevoeiro se adensou. A Inês recuou
dois ou três passos, o olhar em pânico. Eu larguei aqueles objetos,
como se queimassem, a tentar racionalizar. «Que raio! Quem teria
feito uma maldade destas? Brincadeira estúpida!»
— Quero
ir-me embora — articulou, por fim, Inês.
— Estúpidos!
— resmunguei eu, enquanto pegava no braço dela e nos
encaminhávamos para
a estrada.
Na
parte norte da praia, avistámos a vaga imagem de um grupo de seis ou sete
pessoas, que pareciam sentadas e reunidas em círculo, talvez à
volta do início de uma fogueira. Não as tínhamos
visto ao chegar, mas aquela visão de normalidade reconfortou-nos.
Ver membros da nossa espécie num local inóspito transmite-nos um
sentimento de segurança, de solidariedade potencial. Passou-me pela
cabeça, momentaneamente, a ideia de nos aquecermos um pouco, antes
de partirmos, porque a temperatura tinha caído fortemente. Uns
metros andados, pareceu-nos que olhavam para nós. Para quebrar o
desconforto, acenei-lhes. Não responderam.
— Quero-me
ir embora! — acentuou Inês.
— Tem
calma!; está tudo bem — tentei eu sossegá-la, mas pouco
convencido.
Nesse
momento, levantaram-se dois ou três vultos e começaram a dirigir-se para
nós.
— Calma!
Não dês a entender que tens medo — disse eu, para travar a minha
parceira que apressara muito o passo.
Entretanto,
calculava distâncias, apesar do nevoeiro cada vez mais cerrado. Nós
estaríamos a duzentos metros da passagem da duna, mais cinquenta até
às bicicletas. Eles estariam a uns trezentos metros da passagem da
duna. Com passo ligeiro chegaríamos antes deles, sem problema. Além
disso, não tínhamos razões para temer ameaças vindas daquelas silhuetas, embora escuras. Era
só uma questão de prudência. O homem pode ser a salvação de
outro homem, mas também pode ser a sua perdição. E, em locais
ermos, uma pequena diferença de força ou de número pode
transformar os homens em predadores
brutais. Impregnados de “selva”.
Nessa
altura, levantou-se vento vindo de norte. Empurrava-os a eles e travava-nos a nós. Procurei conter o pânico,
mas Inês já tentava correr, sem grande êxito. Chegámos à passagem, quando
os três desconhecidos, com os outros mais atrás, já pareciam
demasiado próximos, mas sem conseguirmos distinguir-lhes as feições.
Então, já gesticulavam e gritavam. Ou assim parecia, por causa do
vento.
Corremos
para as bicicletas e arrancámos, desvairados, Inês à frente e eu,
sem olhar para trás, concentrado na pedalada. Durante aqueles metros
iniciais de inércia da bicicleta, ouvi distintamente as pancadas dos
pés deles, em corrida, mesmo atrás de mim.
— Acelera,
Inês — gritei, apavorado. — Se me apanharem, foge tu!
Eu
sabia que lhe apetecia gritar e chorar, mas aguentou uma pedalada
vigorosa, durante centenas de metros, demonstrando um sangue-frio
notável. Aos poucos, para minha grande surpresa, as passadas pesadas
dos nossos perseguidores deixaram de se notar. Ouvia-se só o som
soprado do vento nos troncos calcinados, a abafar o ruído rastejante
dos pneus no asfalto vermelho. Olhei, enfim, para trás, mas só
discerni o trilho deserto da ciclovia. Talvez uma hora depois,
estávamos no quarto do hotel.
Raramente
voltámos a falar daquele anoitecer na Praia do Osso da Baleia. Não
sabemos o que vimos ou o que pensámos que vimos. Não faço ideia do
que veria, mas tenho para mim, que, se naqueles momentos iniciais da
fuga me tivesse distraído um momento a olhar para trás, não
estaria aqui para contar.
Joaquim
Bispo
*
Por
seleção em concurso literário, este conto integra (páginas 112 a
114) a coletânea MIRAGE
— Miscelânea de Narrativas Irreais, do projeto “Delírios” do coletivo editor Coverge, Curitiba,
Brasil:
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Imagem:
Iberê Camargo, Ciclistas, 1989.
Fundação
Iberê Camargo, Porto Alegre, Brasil.
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6 comentários:
Um belo conto velho amigo. Ambiente, emoção, movimento, está lá tudo. Abr. Zé MC
Obrigado! Viajar por aquela zona fez meio trabalho. Abraço!
Bom dia.
Gostei do seu conto. Muito interessante.Obrigada por esta oferta literária e lúdica.
Maria Emília Neves
Obrigado! Quando é apreciada, é oferecida com redobrado gosto.
gostei.
abraço
Fico agradado, Baptista.
Abraço!
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