Ela está lá. Sentada. Esfinge deformada. As moscas pousando em cada ruga, em cada gota de suor, nos cabelos sujos de barro. Olhos baixos. Fixos num ponto exato daquele esparrame de lama. O vestido estampado de todos os dias. Grudado no corpo pela chuva fina que recomeçou, que recomeça toda hora. Sem trégua. Tanto faz. Ela não sabe mais nada dessas coisas de sol de chuva de fome de sono. Ela não dorme. Não precisa. Ela só quer ficar ali, perto daquele chão que também é teto. Para entender. Entender por que o peito doeu muito e o ar faltou. Naquele dia. Prenúncio. Foi o que lhe disseram.
Às 10h20, havia mais que pontadas. Ela podia ter calado a boca. Podia ter aguentado. Mas a náusea e a dor de cabeça não eram bons sinais. Palavras da tia ao telefone. Quando o carro velho do primo encostou na porta de casa, ela entrou, aliviada. 10h45, dizia o relógio da cozinha. Ainda. Os meninos na escola. Dava tempo de ir ao hospital e voltar. Para servir o almoço. Para recolher as mochilas largadas na grama do jardim acanhado plantado a pedido dela. Para servir o prato de Sebastião. Para enxergar nos olhos dele as promessas que seriam cumpridas mais à noite.
O relógio do hospital marcando 11h47. E um único médico. Ocupado. A pressão alta brincando de desobediência com os primeiros socorros. E de repente o nome dela. Chamado pela voz sem nuança de uma enfermeira com pressa. 11h51: o doutor ouvindo o que ela dizia, o que o peito dela dizia, o que o aparelho de pressão dizia. Ambos bem longe dali. Ele, em algum lugar lá fora. Algum lugar que raptava seus olhos castanhos. Ela, em casa, lavando a louça do almoço, ralhando com os filhos, limpando, passando, guardando roupa, sendo feliz quase de madrugada, depois que os meninos dormiam e Sebastião entrava nela, as coxas quentes e fortes se entrelaçando com as dela, retesadas. Às 12h15, o diagnóstico anotado na ficha: Crise hipertensiva. Nem foi uma angina. Nem foi uma isquemia. Só um pique de pressão. Associado ao nervoso. Associado ao medo de estar tendo um enfarte. Palavras do doutor. O último remédio engolido às 12h27. Uns segundos depois de ler no celular a mensagem de Sebastião:
Que bom que não é nada sério, mulher. Eu não vou até aí porque preciso dar o almoço dos meninos. Pode deixar que eu cuido deles até você voltar. Não se preocupe. Se eu me atrasar, compenso no turno de amanhã. Se cuida.
12h58. Mais nada.
Caminho. Casa. Paredes. Teto. Muro. Horta. Cachorros. Filhos. Sebastião.
Mais nada.
Tudo engolido pela lama quente e grossa. Sepulcro maldito.
Ela está lá. Sentada. Em cima do vômito podre da terra. Abaixo dela a casa-caixão que se recusa a devolver as fotos de família, a bola, as bicicletas, o fogão, a cama de casal acostumada a ranger de amor todas as noites.
Gentes, bichos, lembranças. Destroçados. Afetos transmudados em rejeitos. Restos. Ossos misturados aos pedaços de minério que a lama entregou de volta à natureza. Almas soterrados em ganância e indiferença.
Ela está lá. Sentada. Sem vida. Sem morte. Sem ressurreição. Guardiã do nada. Asfixiada pelo barro enlouquecedor da saudade.
Às 10h20, havia mais que pontadas. Ela podia ter calado a boca. Podia ter aguentado. Mas a náusea e a dor de cabeça não eram bons sinais. Palavras da tia ao telefone. Quando o carro velho do primo encostou na porta de casa, ela entrou, aliviada. 10h45, dizia o relógio da cozinha. Ainda. Os meninos na escola. Dava tempo de ir ao hospital e voltar. Para servir o almoço. Para recolher as mochilas largadas na grama do jardim acanhado plantado a pedido dela. Para servir o prato de Sebastião. Para enxergar nos olhos dele as promessas que seriam cumpridas mais à noite.
O relógio do hospital marcando 11h47. E um único médico. Ocupado. A pressão alta brincando de desobediência com os primeiros socorros. E de repente o nome dela. Chamado pela voz sem nuança de uma enfermeira com pressa. 11h51: o doutor ouvindo o que ela dizia, o que o peito dela dizia, o que o aparelho de pressão dizia. Ambos bem longe dali. Ele, em algum lugar lá fora. Algum lugar que raptava seus olhos castanhos. Ela, em casa, lavando a louça do almoço, ralhando com os filhos, limpando, passando, guardando roupa, sendo feliz quase de madrugada, depois que os meninos dormiam e Sebastião entrava nela, as coxas quentes e fortes se entrelaçando com as dela, retesadas. Às 12h15, o diagnóstico anotado na ficha: Crise hipertensiva. Nem foi uma angina. Nem foi uma isquemia. Só um pique de pressão. Associado ao nervoso. Associado ao medo de estar tendo um enfarte. Palavras do doutor. O último remédio engolido às 12h27. Uns segundos depois de ler no celular a mensagem de Sebastião:
Que bom que não é nada sério, mulher. Eu não vou até aí porque preciso dar o almoço dos meninos. Pode deixar que eu cuido deles até você voltar. Não se preocupe. Se eu me atrasar, compenso no turno de amanhã. Se cuida.
12h58. Mais nada.
Caminho. Casa. Paredes. Teto. Muro. Horta. Cachorros. Filhos. Sebastião.
Mais nada.
Tudo engolido pela lama quente e grossa. Sepulcro maldito.
Ela está lá. Sentada. Em cima do vômito podre da terra. Abaixo dela a casa-caixão que se recusa a devolver as fotos de família, a bola, as bicicletas, o fogão, a cama de casal acostumada a ranger de amor todas as noites.
Gentes, bichos, lembranças. Destroçados. Afetos transmudados em rejeitos. Restos. Ossos misturados aos pedaços de minério que a lama entregou de volta à natureza. Almas soterrados em ganância e indiferença.
Ela está lá. Sentada. Sem vida. Sem morte. Sem ressurreição. Guardiã do nada. Asfixiada pelo barro enlouquecedor da saudade.
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