Ilustração : Clara Lieu
A torneira da pia está pingando. Desde. Preciso mandar consertar. Não é pelo desperdício. Quero que se foda o desperdício. Minha cabeça não aguenta mais é o barulhinho das gotas. Minha cabeça que parece um oco de ecos. Desde. Janis e Jimmy estão latindo faz horas. Um inferno. Já devem ter afugentado o carteiro, as crianças na rua, o encanador que jurou que vinha hoje cedo. Preciso prender os dois. Mas não quero. Eles são a minha trincheira. Ninguém passa, ninguém passa. Desde. Gosto dessa sensação de impedimento que eles estabelecem entre mim e os bípedes. Estou inalcançável. Blindada pelos caninos de 3 cm que se arreganham para o mundo do lado de fora de mim. Preciso lembrar é se dei comida a eles. Antes que me ataquem com a fúria justificada dos famintos. Eu não suportaria. As mordidas, sim. Seriam apenas sangue e dor. Mas não quero fabricar para eles um destino cruel. Sacrificados. Incriminados sem tribunal. Acusados de ser as feras que não são. Eles que não sabem nada de culpas. Só de fome. Da fome que cega o instinto. Não, my beloved, eu não entregaria vocês a um destino desses. Não vai acontecer. As vasilhas no quintal ainda têm um dedo de ração. Não serei estraçalhada. Pelo menos no que me externa. De resto já não existe mesmo nada inteiro. Só este gosto de dor amargando que eu não consigo degustar. Desde. Um instante de trégua. Janis se encontra comigo na porta da cozinha. Lambe minhas mãos com uma delicadeza desconcertante para um bicho do seu porte. As fêmeas sempre percebem primeiro que alguma coisa está errada. Bobagem. A mordida leve que ela me dá para me obrigar a fazer um carinho na sua cabeça me lembra do outro lado da nossa equação feminina. Impiedade. Jimmy continua deitado rosnando para o portão. Com breves pausas para lamber o saco e as patas. Adoro esse despudor alienado dos bichos. Adoro tudo que me resgata do correto. Faz tempo que eu não venho aqui fora olhar os cães. Desde. Desculpem se eu estive ausente por um tempo, digo a eles com remorso tardio. Os dois focinhos se voltam para mim. Não entendem o que eu digo, mas farejam meu cheiro de fraqueza. Estão alertas. É assim quando eu choro. Eles se inquietam comigo. Melhor me abaixar e sentar no chão da cozinha antes que um dos dois pule para lamber meu rosto. Eu sempre achei que os cães só queriam o gosto salgado das lágrimas. Até o dia em que você foi embora, G. Foi quando a casa vazia deixou de me caber. Eu desabei. E tampei o rosto encharcado com o travesseiro enorme. Jimmy lutou comigo por uns instantes, tentando passar a língua naquela água toda, cavando o travesseiro para colher os meus soluços. E eu agarrada às bordas da fronha, os dedos vermelhos pela força. Quando eu venci, virei de bruços, exausta, rosto afundado na cama, pernas esticadas, braços suspensos em volta da cabeça. Então, Jimmy subiu nas minhas costas. Tão leve que não parecia um gigante. E foi se ajeitando, deitando sobre mim, me cobrindo com aquele corpo enorme, até que me abraçou por inteiro do seu jeito cão, formando um casulo protetor. Como um bicho faz sobre outro que morreu. E eu relaxei naquela morte de afeto. Quando acordei, ele ainda estava lá. Esquentando as minhas costas. Babando as minhas costas. Tomando conta de mim. Janis dormia ao meu lado, com a cabeça naquele seu travesseiro arrogante de penas, G., a pata comprida pousada sobre o meu ombro. E eu tive a certeza de que você não ia voltar. Ela nunca tinha subido na nossa cama antes. Os cães não ocupam territórios de outros cães. Só se for por comida. Ou por água. Água. A torneira do inferno continua pingando. Preciso fechar o registro. O encanador agora não atende a droga do celular. Merda. Deve ter vindo e corrido dos cachorros. Não sei. Não sei de mais nada. Desde. Desde que você me sentou na varanda (aquela faixa estreita e acanhada de cerâmica vermelha que alguém construiu na frente da casa e batizou assim, num delírio de grandeza) e segurou as minhas mãos para impedir que elas se mexessem. Elas me distraem; parecem pássaros bêbados, você dizia sempre. E eu ria. Mesmo quando não achava mais graça na sua piada velha. Ria de hábito. Como ria das histórias do trabalho, que você contava quatro, cinco vezes. E ria quando você ficava em cima de mim, tentando me fazer gozar do seu jeito, nunca do meu. Você nunca trepou bem, G. Sempre egoísta. Esfregando o meu clitóris com os seus dedos de bucha. Passando uma ponta de língua incompetente e tímida no meu sexo faminto. Com pressa. Com desinteresse. Com nojo. Enfiando de uma vez o seu pau duro dentro de mim. Sem antes me deixar molhada. Sem antes me sentir entrega. Um pau grande demais. Desses que toda mulher diz que gosta. Mas que só fazem é machucar a gente se não souberem brincar no caminho. E você não sabia brincar. Mas eu ria. Agora, não rio mais. Desde. Desde que você imobilizou as minhas mãos-pássaros-bêbados e me disse que a gente não tinha mais nada a ver. Que você não gostava mais de mim. Assim, sem rodeios. Que a nossa relação estava desgastada. Que a culpa era sua. Que você queria outra coisa na vida. Que nem na cama a gente se dava mais bem — aquele “a gente” sobrando, como se algum dia o prazer tivesse sido plural. E outra meia dúzia de clichês idiotas que os homens repetem quando as malas já estão do lado de fora. Por que é que vocês mentem? Por que é que vocês acham que nós precisamos de desculpas? Por que é que vocês não vão embora em silêncio?
A torneira da pia está pingando. E eu nunca me lembro se me lembrei da comida de Janis e Jimmy. Preciso prender os dois. Tenho de ir à rua. Hoje, G., eu começo o passo n° 2 do luto: beber e foder. Com qualquer um. Qualquer bípede que possa consertar o vazamento, alimentar os animais e se enfiar dentro de mim sem pressa, dedos, língua, pica. Até me fazer gozar. Essa coisa que não tenho feito. Desde.
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