Não
é um feito de que me orgulhe, mas tenho de confessar: eu apanho
coisas no lixo. De vez em quando, percebo que uma peça interessante
está poisada junto a algum dos grupos de caixotes que estão
distribuídos um pouco por todo o bairro. Já trouxe para casa uma
pequena mesa de apoio de sofá, uma prateleira para frascos de
especiarias, uma moldura de madeira trabalhada e pintada de castanho,
mas, geralmente só apanho livros. Apesar de poucas pessoas os
comprarem, vão aparecendo livros, geralmente escolares, junto aos
caixotes.
Esta
história começa há uns quatro meses, em uma das minhas voltas de
caminhada e exploração, que, invariavelmente, tentam percorrer
itinerários menos habituais, quando encontrei uma caixa de cartão
com livros, junto a uns caixotes de lixo no “bairro dos
sinistrados”. Tinham todos capa preta e eram da mesma coleção de
especulação paracientífica, área que agora me interessa pouco,
mas que fez sucesso nas décadas de 70 e 80. Percorrendo os títulos,
acabei por me agradar de “Os arquivos do insólito”. No meio
deles, uma agenda de 2007, de tamanho próximo do dos livros —
menor que o A4 —, que aparentemente tinha sido usada como diário.
Movido por uma curiosidade voyeurista, acabei por a trazer para casa,
também.
Era
uma dessas agendas com umas quantas folhas iniciais de informações
supostamente úteis, como a conversão entre as medidas inglesas e as
do sistema métrico, as distâncias quilométricas entre cidades
europeias, os feriados municipais de dezenas de concelhos
portugueses, os cálculos de volumes de sólidos simples, e outras
irrelevâncias de uso incerto. O resto apresentava três dias por
página e estava parcialmente manuscrito. Havia muitos dias em
branco, mas o espaço de outros estava aproveitado até às margens,
em letra tanto mais pequena quanto o autor percebia que tinha mais
para dizer do que o espaço disponível. Havia mesmo dias que
invadiam o espaço dos seguintes.
A
letra era relativamente bem desenhada e fui lendo as observações do
quotidiano de alguém que, aparentemente, vivia de apanhar e vender
metal, além de explorar uma horta urbana clandestina. Nada de
especialmente movimentado ou excitante, mas, a certa altura, o relato
terminava abruptamente e percebia-se que a folha seguinte tinha sido
rasgada pela base. Caramba! Este pormenor acicatou-me mais a
curiosidade do que o facto de ter encontrado a agenda. Teria a folha
sido rasgada por conter alguma peripécia comprometedora ou o autor
do diário tinha simplesmente precisado dela para escrever um recado?
A curiosidade era grande, mas nada podia fazer.
Nada
podia fazer em estado de vigília, mas, quando acordei na manhã
seguinte, o trabalho do meu espírito, enquanto dormia, deu frutos.
Lembrei-me de ter visto num filme, talvez policial, uma situação
semelhante em que o protagonista tinha conseguido reconstituir o que
tinha sido escrito, pela análise laboriosa dos sulcos produzidos nas
folhas adjacentes pela pressão da ponta da esferográfica na folha
arrancada. Inclinando a página seguinte, percebi a existência
desses sulcos. O principal estava provado; a técnica para conseguir
ler os ditos sulcos fui buscá-la à Internet. Após uma semana de
trabalho paciente e meticuloso — polvilhamento com pó de café,
meia-linha a meia-linha, aplicação de luz rasante, fotografia de
alto contraste —, consegui reconstituir todo o texto desaparecido,
que tinha ocupado as duas faces da folha. Aplicar a técnica à folha
anterior e já escrita foi mais delicado e moroso, mas no fim
consegui ler tudo.
Fiquei
alarmado. Realmente, havia razões muito fortes para o autor do
diário tentar esconder o que tinha acontecido naquele dia. Tão
grave era a situação que a primeira coisa que me ocorreu foi ir à
Polícia denunciar o autor, fosse ele quem fosse. Algo, no entanto,
me levou a enveredar por uma investigação pessoal: talvez o medo de
me expor como testemunha; talvez a necessidade de ocupar os dias de
uma reforma monótona. Primeiro, havia que caracterizar o autor do
diário e eventual criminoso, pela análise ponderada dos seus
escritos. Acompanhem-me nessa análise e avaliem também que tipo de
pessoa é esta.
23
de março
Gosto
do cheiro das manhãs, da luz limpa e verdadeira do sol nascente. De
manhã sou mais eu, mais o jovem que dormia de janela aberta para
receber os primeiros raios refletidos no Mar da Palha. Fumava um
cigarro a contemplar os alvores rubros em luta contra a neblina do
rio, o fumo do meu cigarro a evolar-se pachorrento, como os
indolentes vapores da fábrica da farinha que ronronava todo o dia e
onde eu trabalhei dez anos. Se fosse dia de folga, voltava a
deitar-me para mais umas horas de sono. Uma manhã — maldita seja
—, o rubro não era o do astro da vida, era o do génio da morte. A
minha fábrica, o meu ganha-pão, era uma garra de fumo negro a
esganar o meu futuro e o dos outros operários. Por detrás, o diabo
em cabriolas de chamas por entre as máquinas, a cortar tapetes de
transporte de grão, a derreter alcatruzes e roldanas, a comer o pão
de todos. No momento, ainda suspeitei dos homens de negro de cuja
existência os meus livros me avisavam, o que me pareceu que era
corroborado pelas luzes estranhas que por vezes via pairar sobre o
mouchão, mas não descortinei as suas sinistras silhuetas a
assegurarem-se que o mal feito se cumpria na totalidade. Nunca mais
lá voltei.
Hoje,
o céu estava assim vermelho, potente. Ao pé da escola de baixo
estava uma máquina de roupa. Arranquei-lhe o tambor e umas seis
peças que consegui cortar, com a mesma raiva de há vinte anos.
2
de abril
Marteladas,
o raio que os parta! Quem é que eles pensam que são? Têm a mania
que são aristocratas, por afocinharem no gargalo da mini ao fim da
tarde na esplanada do café do Sr. Manel. Estes tipos veem-me andar
ao cobre, ao latão e ao alumínio e pensam que sou um tipo qualquer,
que me podem tratar de qualquer maneira. Não sabem nada de mim, em
que ofícios trabalhei, como me realizo, o que sou. Não lhes passa
pela cabeça as coisas que eu sei. Nunca viram a minha estante de
livros… Devem pensar que Heisenberg é um corredor de automóveis.
Não sabem quem é, muito menos o que disse.
«Ó,
Marteladas, bebe aqui uma mini, que pago eu.» — grasnou um, de
olhinhos apertados pelo prazer do deboche, a querer mais caçoar do
que oferecer.
«Marteladas
deve ser aquilo que tu já não dás há muito tempo» — foi a
minha resposta pronta. Tenho pouca vontade de servir de chacota aos
outros, muito menos de tipos que não merecem respeito.
Veio
para mim com ar agastado: «Mas, ouve lá, é assim que agradeces? Tu
não te enxergas.» Dei-lhe um empurrão que o fez estatelar no chão
de mármore, a garrafa a escaqueirar-se e o líquido a espalhar-se.
«Quem não se enxerga és tu, que deves estar bêbado desde ontem.
Vai mas é beijar o rabo ao teu patrão.» Levantou-se de um salto,
os olhos muito abertos a correr para mim, mas eu só levantei o
martelo. Hesitou, a ver a questão de outra perspetiva, a olhar para
os parceiros a ver se tinha apoio. Só grunhiram uns resmungos de
apaziguamento. Já todos me conhecem… Se fosse preciso, tinha a
navalha.
8
de abril
Entrou
um rato na horta. Não foi nenhum cão, não foi uma rabanada de
vento. Foi alguém que entrou lá deliberadamente para roubar.
Destorceu o arame que tenho na porta, andou a cheirar e arrancou duas
couves. Podia simplesmente tirar umas folhas, mas não. Esta gente
não sabe nada de nada. Veem as couves inteiras no supermercado e
acham que é assim que se colhem. Estúpidos.
10
de abril
Foi
um dia para esquecer. Dei voltas e voltas, cheguei a ir aos Pombais,
mas só encontrei umas calhas de estore. Tive de fazer uma saída à
noite. A mulher na telenovela a querer saber aonde ia. Por acaso eu
chateio-a por ela estar sempre a ver televisão? Felizmente, tenho os
meus livros e o escritório. À noite são as novelas, de manhã são
aqueles vendedores de rifas. Interessa-lhes lá a música de
qualidade ou a formação de cidadania; só querem que se telefone
para os sorteios deles, pagando, claro. Deve haver umas centenas de
milhares de estúpidos que telefonam todos os dias e não fazem as
contas ao que gastam. Se calhar, já ultrapassa o prémio. Creem na
sorte e não nas probabilidades. Uma hipótese em duzentas ou
quinhentas mil? Parvos.
Só
achei mais umas caçarolas e um escadote partido. Não gosto de sair
à noite, porque não se pode estar a fazer barulho com o martelo.
13
de abril
Este
ano vou plantar morangueiros e espinafres. Aos poucos, vou tendo de
tudo. É incrível como um espaço de uns 40 metros quadrados dá
tanta coisa: batatas, couves, alfaces, tomates, cenouras, cebolas,
alhos, favas, beringelas, feijão grande. Fica caro comprar as
ferramentas, as sementes, o adubo — quando encontro, prefiro
comprar estrume; é mais natural. Se fôssemos contabilizar o
trabalho, então… Mas sei o que como. Parece que me sabe melhor. As
batatas têm um sabor que não tem nada a ver com as do super. E
passar ali umas horas a tratar das plantas não tem preço. São tão
generosas. Se as pessoas tivessem metade da generosidade das plantas…
A
primeira horta que arranjei era lá em baixo, ao pé da ribeira. Já
lá vão uns anos valentes. O espaço estava baldio e eu precisava de
ganhar alguma coisa. Ou, pelo menos, de não gastar. E de ocupar o
tempo. Nessa altura estava com subsídio de desemprego e tive de me
desenrascar. Pareceu-me que poupar nas compras era uma espécie de
complemento do subsídio. E era. Cheguei a ter três macieiras, uma
pereira, um pessegueiro, uma ameixieira. Para nós dava. Ou tinha de
dar. Passei a ir ao super só para comprar arroz e massa. E alguns
enlatados. Mas depois quiseram melhorar o trânsito e fizeram para
ali uns viadutos e umas rotundas e usaram o terreno à vontade deles.
Enfiaram um pilar mesmo no meio da horta. Tive de procurar outro
local. Aqui ao pé de mim tinham andado a mexer na ribeira, quando
rasgaram uma rotunda, e deixaram uns espaços que davam umas leiras
estreitas e inclinadas. Vedei uma tira com canas, aos poucos
endireitei o terreno e criei um ponto firme na berma da ribeira para
tirar água. Desloquei para lá uma arca congeladora velha, para
fazer de tanque, e uns bidões de plástico. Quando tenho mais tempo,
encho tudo. E rego quando é preciso. É quase como se tivesse água
canalizada.
O
que eu sinto é que aquilo dá-me trabalho, mas tiro de lá
compensação mais do que suficiente. De víveres e de serenidade.
Quando posso tirar. Porque esta noite o rato voltou e levou as
beringelas todas: umas cinco ou seis. Andava a olhar para elas, à
espera de ficarem maduras, para fritar às rodelas… Fiquei fulo.
Que tipo de pessoa se vem aproveitar do trabalho de outro em seu
proveito? Bem, qualquer um. Vivemos numa sociedade podre. Se apanho o
ratinho…
16
de abril
Dia
de entrega de material. O fulano de Torres Novas apareceu logo às 8
e meia. Só queria dar 50 cêntimos, o quilo, pelo alumínio, 2 euros
pelo latão e 3 pelo cobre. Ferro, nem vê-lo. Isto cada vez está
pior. Argumentava que as poucas coisas que eu juntei mal davam para a
deslocação, porque tinha de pagar o gasóleo, os pórticos e as
portagens.
Pouca
coisa, para ele, que a mim bem me custou catar peça a peça. E
cortá-las aos bocados, de modo a caberem nos bidões. Tinha quatro
de ferro, dois de alumínio e meio com coisas de latão e de cobre.
Acabou por subir um bocadinho e levou também o ferro. Tudo junto,
pouco passou dos 150 euros. Enfim. Podia ser melhor, mas bom jeito
dá. Com o que poupo com a horta, vai ajudando a esticar as reformas.
E mortinhos que os do Governo andam para lhes meterem a unha.
Ninguém
imagina a economia que representa a reciclagem de metal puro, em vez
de ser extraído do minério. Ninguém suspeita que se economiza mais
de 90% da energia elétrica que seria utilizada na produção do
metal a partir da bauxita, li num artigo. Se fizessem as contas à
energia que o país poupa ao reciclar os metais que nós, os
coletores de sucatas, fornecemos, talvez nos dessem mais valor. É
preciso é acabar com os que geram mais prejuízos que poupanças,
esses que vão pelos campos de zonas pouco habitadas e desmontam
centenas ou quilómetros de cabos de cobre — o “bife do lombo”
dos metais —, quer da rede telefónica, quer da de distribuição
de energia elétrica. E que roubam tudo o que aparece, desde
floreiras e estátuas nos cemitérios, até esculturas, em praças ou
rotundas, algumas com centenas de quilos. Vendem por umas dezenas de
euros o que pode ter custado milhares. Não tenho nenhum respeito por
essa gente. Olham para os trocos no bolso deles, não olham para o
mal que fazem. O património artístico não lhes diz nada. Vivem
para quê? Em dias fracos, quantas vezes olhei para os puxadores de
cobre de algumas portas, mas seria preciso eu estar muito desvairado.
Não, comigo não.
Aqui
terminavam as páginas escritas. Só transcrevi as que me pareceu que
melhor caracterizavam o autor, ao qual podemos chamar Marteladas, à
falta de um nome. O que se segue é o texto recuperado, o tal que,
aparentemente, o nosso homem quis esconder.
28
de abril
Se
calhar, não devia escrever isto, mas preciso de desabafar. Nos
últimos dias, houve três assaltos à minha horta. Ontem, depois de
a ver patinhada, destruído um alfobre de alfaces e roubadas mais
três couves e umas duas dúzias de cenouras, decidi-me. Quem rouba
tais quantidades não é para comer, deve ser para vender. Arranjei
um banquinho e um cobertor escuro e, à noite, instalei-me na horta,
num nicho de canas que improvisei. Pelas duas da manhã, já estava
arrependido. Achei que precisava de saber primeiro se o rato vinha à
noite ou de manhãzinha. Estava quase a decidir regressar a casa e
acolher-me ao quentinho da cama, quando ouvi um restolhar na vereda
que dá acesso à horta. O meu coração partiu para uma prova de
velocidade. Até tive medo que o barulho que fazia denunciasse a
minha presença. Então, vi a sombra de um homem que, cautelosamente,
destorceu o arame da porta e entrou quase sem ruído. Pela silhueta,
parecia o tipo a quem eu dera um empurrão na esplanada do Sr. Manel.
Sacana! Não era por fome, era por vingança. Senti um afrontamento
no pescoço. Tentei dominar a raiva. Peguei, silenciosamente, no
sacho que tinha posto à mão, disposto a dar uma coça no intruso.
Na minha horta não entrava um ratoneiro impunemente. O ratinho
olhou, a orientar-se no escuro e, fiado na vedação de canas,
acendeu uma lanterna de bolso, mas não consegui divisar-lhe as
feições. Momentos depois, já tinha cortado uma couve com uma
navalha de bolso. Antes que cortasse outra, saí de trás das canas a
gritar. O tipo assustou-se, mas depois cresceu para mim, com a
navalha e a lanterna a encandear-me. Estava a ver o caso mal parado.
Felizmente, o cabo do sacho era muito mais comprido do que o da
navalha dele. Puxei-o de trás de mim, numa rotação lateral
acelerada em direção à luz. Ouvi um som abafado e senti que o
movimento foi travado por alguma coisa pouco rija e, imediatamente,
apenas o escuro, a lanterna no meio das canas, o vulto do malandro a
esmagar o canteiro das cebolas. Totalmente aturdido com a rapidez dos
acontecimentos, mantive-me em pé, alerta não sei para quê. Passado
um tempo que me pareceu infindo, tomei finalmente consciência plena
do que acontecera. E da situação melindrosa em que me colocara.
Baixei-me a apalpar o vulto caído, mas, pela brecha na cabeça, logo
percebi que o irremediável estava feito. O calor de pouco antes deu
lugar a um frio intenso. Perigo era o que sentia. Era preciso atuar
rapidamente. Desfazer-me do corpo. Atirá-lo à ribeira, escondê-lo,
desmanchá-lo. Na escuridão, percebi as manchas claras dos bidões e
da arca congeladora. Esta era quase do tamanho do corpo. Não tentei
provar a mim mesmo que era a melhor solução. Era uma solução.
As
duas horas seguintes foram de trabalho esforçado. Afastei a arca e
cavei uma cova suficiente para o corpo. Não a afundei mais que uns
60 centímetros, porque depois havia rocha. Para já, chegava.
Arrastei para lá o corpo, tapei-o bem e arrastei a arca para o sítio
dela, por cima do corpo. A terra que sobrou espalhei-a nas zonas
pisoteadas e aumentei o cômoro das couves.
Voltei
para casa, mas não consegui dormir. Nem ontem, nem hoje. São quatro
da manhã e estou tão desperto como se tivesse dormido oito horas.
Oiço um melro que não para com a cantoria. E só imagino coisas.
Lembrei-me outra vez dos homens de negro. A cor negra do pássaro não
é por acaso. Deve ser um sinal deles. Será que eles viram tudo? Não
sei o que fazer.
*
Caramba!
Tinha pensado em inúmeras situações que podiam ter obrigado o
Marteladas a desfazer-se de uma folha do diário, desde roubos
inconfessáveis, até maroteiras lúbricas, mas nunca suspeitei que
ia encontrar um crime de sangue. Era disso que se tratava, sem
dúvida. E tudo indicava que, apesar de alguns aspetos delirantes, o
Marteladas era um indivíduo imputável. Tinha de ir à Polícia.
Estava certo que, apesar de não dispor da folha de diário original,
facilmente conseguiria que a Polícia se interessasse pelo provável
homicídio perpetrado por ele.
Chamem-me
a mim delirante, se quiserem, mas, por um momento, tive medo de uma
improvável construção ficcional do Marteladas. Um lampejo fez-me
temer que aquela mente desvairada tivesse arquitetado um episódio
excitante na monotonia da sua vida. Recobrei rapidamente o bom senso
e afastei a apreensão de um possível ridículo ao perceber que,
nesta hipótese, fazia pouco sentido a folha arrancada. Ainda assim,
antes de ir à Polícia, resolvi obter maiores certezas. Sabia da
existência de algumas referências — o “bairro dos sinistrados”,
as hortas junto à rotunda, o café do Sr. Manel —, e foi por este
que comecei: se conhecia alguém com a alcunha de Marteladas e se se
lembrava de um recontro dele com outros clientes, uns anos atrás.
— Oh,
esse já está engavetado há muito tempo. Então o senhor não se
lembra? O tipo matou um desgraçado que ia à horta dele apanhar
qualquer coisa para comer, em vez de andar aos caixotes. Coitado!
Inesperada,
é o que posso dizer desta revelação. Andava eu com tantos
pruridos, com tantas cautelas e, afinal, já estava tudo resolvido.
— Ah,
sim? Sabe, eu moro aqui há poucos anos. E como é que o apanharam?
— Parece
que foi ele que se entregou. Eu não sei bem a história, mas acho
que foi isso que veio nos jornais.
Isto
também não me pareceu normal. Todos os criminosos tentam esconder o
crime para salvarem a pele e este entregou-se? Pelo Sr. Manel soube
onde era a casa do Marteladas — que, vim a saber, se chamava
Francisco Gomes —, onde a mulher continua a viver e para lá me
dirigi, um pouco sem pensar.
A
mulher recebeu-me com a típica farda das donas de casa — uma bata
às florinhas miúdas. Sem nunca referir a questão do diário,
apresentei-me como um conhecido do marido, dizendo que nos
encontrávamos por aí, quando também eu andava ao metal, mas que
tinha estado fora uns anos e que só agora tinha sabido da prisão
dele.
— Ele
nunca lhe falou no Esteves?
Fez
que não. Se desconfiou, não o manifestou. Mandou-me entrar, “para
as vizinhas não darem fé”, e, às minhas perguntas orientadas,
foi informando que o marido, depois de ter morto o homem, andava
alterado.
— E
eu sem saber porquê. Não dormia, estava sempre irritado, achava que
andava a ser vigiado. O que, pelos vistos, era verdade.
— Ah,
sim? — incitei.
— Pois!
A certa altura, recebeu uma carta anónima com insinuações sobre
algo que essa pessoa sabia. O meu marido ficou desvairado. Tudo o que
ele suspeitava se confirmava. Ficou muito tempo a pensar, tão
impaciente que eu não lhe podia dizer nada. Andou a remexer nos
papéis dele, a rasgar coisas. Depois foi à horta, mas não se
demorou. Dias depois, outra carta. Era a confirmação da chantagem.
Exigia cinco mil euros, senão denunciava-o à Polícia, sem nunca
explicar o que sabia.
— E,
então, pagou? — perguntei genuinamente curioso.
— O
meu marido tinha lá cinco mil euros para dar assim! Se calhar, até
arranjava, se pedisse uns adiantamentos, sei lá! Mas resolveu não
pagar. Sabe, ele era muito reto. Isto que lhe estavam a fazer era
tudo o que representava podridão para ele. Então, resolveu ir à
Polícia com as cartas do chantagista, sem eu saber que era para se
entregar. Não quis que a barafunda fosse aqui em casa.
Esta
revelação não me apanhou completamente desprevenido. Pelo que
tinha lido no diário, pareceu-me que ele tinha uma espécie de ética
pessoal.
— Em
que prisão é que ele está?
— Está
em Pinheiro da Cruz. Mas acho que não fica lá muito tempo. Ele
apanhou oito anos; já vê, a coisa não foi premeditada, aconteceu,
e teve a atenuante de se ter entregado. Quando foi preso, foi um
grande choque para mim, que não sabia de nada. Pensei que ia lá
ficar para sempre, digamos assim. Até dei uma limpeza a fundo ali no
escritório dele.
— Posso
ver? — apontei com o queixo para a direção que ela tinha
indicado. — Só para saber se ele ainda gosta de livros esquisitos
— sorri, atenuando a impertinência do pedido.
— Gostar,
gostava, mas deitei tudo fora. Aquelas palermices só lhe faziam mal.
Qualquer dia está aí e, se calhar, ainda se vai zangar comigo por
ter deitado aquilo fora.
Entrámos.
Era uma marquise fechada com uma escrivaninha minúscula e uma
cadeira. A parede tinha estantes de cima a baixo, organizadas em
prateleiras temáticas. Ao nível dos olhos era a secção de
divulgação científica: Sagan, Asimov, Gould, Dawkins, Clarke, e
outros nomes menos conhecidos. À direita, ficção científica e
policiais. À esquerda, seria a secção “arrumada” pela mulher:
restavam uns títulos “esquisitos”, relacionados com religião e
marianismo. As prateleiras cimeiras deviam corresponder a ciência,
propriamente dita, onde identifiquei nomes como Galileu, Crick,
Darwin, Freud, Jung. Surpreendi-me de ver História e Política a
partilhar uma prateleira e de uma inteira com livros sobre Arte e
outra com Poesia. Este Marteladas — não é fácil adaptar-me a
Francisco Gomes, depois de o ter tratado tanto tempo pela alcunha —
é um indivíduo surpreendente, pensei.
— E
o morto? Sempre era um que tinha tido uma rixa com ele, além no
café? Contaram-me… — disse eu, cautelosamente, com medo de
denunciar o pormenor do diário.
— Não,
veja lá! Era o vizinho aqui da cave. Então, se nós soubéssemos a
miséria em que ele vivia não lhe tínhamos dado as hortaliças que
quisesse? É a pobreza escondida. Olhe, tenho feito um esforço para
tomar atenção a algum caso parecido que haja por aí. E já tenho
dado aos vizinhos. Agora, sou eu que trato da horta, sabe? Temos que
nos desenrascar, não é?
— E
o chantagista, apanharam-no?
— Acho
que não, mas preferia não falar muito disso. Nunca se sabe. O meu
marido suspeitava de alguém que tem uma janela que dá lá para a
horta. Mas ainda fica desviada. Não sei.
Despedi-me
e prometi visitar o marido na prisão. Não só precisava de manter a
coerência da minha história, como fiquei verdadeiramente curioso
por conhecê-lo.
No
dia seguinte, fui a Pinheiro da Cruz, armado de bloco de notas e
minicâmara. E o último livro do João Magueijo, como prenda. O
Marteladas tinha uma tez levemente sanguínea, nariz um pouco
abatatado, era alto e bem constituído, aparentando menos idade do
que os 63 anos declarados. Estranhou a minha visita, por não me
conhecer, mas eu disse-lhe que era um jornalista do Correio da Manhã
e que estava a organizar uma reportagem que reabilitasse a imagem de
presos que tinham matado por acidente. Contou-me tudo o que eu já
sabia mas, quando lhe falei no chantagista, baixou a cabeça a
sorrir.
— Só
falo disso se for off the record — exigiu.
Anuí,
claro. Do meu lado era tudo off the record.
— Sabe,
eu vi-me muito apertado com a pressão dos remorsos, que vinha
somar-se à vida atarefada e de pouca qualidade que eu levava. Estava
farto. E cansado. Só queria sossego e descanso, mas o que me tinha
acontecido não me permitia nenhuma serenidade. Fui eu que escrevi as
cartas. Eu queria vir para a prisão, queria cumprir pena, para me
livrar dos remorsos. Queria deixar de calcorrear as ruas à procura
de metal. Queria deixar de ouvir novelas. Queria entregar-me, mas
queria deixar a minha mulher a pensar que eu não tinha outra saída.
Então escrevi as cartas, só para ela ler. Nem as mostrei à
Polícia. E tive sorte, muita sorte. Aqui, Pinheiro da Cruz, é uma
colónia penal agrícola. Os campos anexos da prisão são um paraíso
para alguém que gosta de trabalhos do campo, como eu. Estou bem.
A
minha capacidade de adaptação não me permitia mais surpresas.
Despedi-me. A última visão que tive dele foi a de um rosto em
grande serenidade. Antes assim!
Joaquim
Bispo
*
Imagem:
António Dacosta, Episódio com um cão, 1941.
MNAC
(Museu do Chiado)
*
* *
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